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4 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EXERCIDO PELOS

4.1 A Súmula n° 347 do Supremo Tribunal Federal

Dentre as competências constitucionais atribuídas aos Tribunais de Contas, pode se perceber que não se encontra no rol a competência para apreciar a constitucionalidade de leis ou atos normativos. Tal prerrogativa encontra fundamento na súmula n° 347 do Supremo Tribunal Federal, cujo enunciado dispõe: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público”.

O texto do enunciado é claro e objetivo. No entanto, o cerne da divergência doutrinária e jurisprudencial desta competência das Cortes de Contas reside no contexto histórico-jurídico em que a referida Súmula foi editada.

O enunciado sumular n° 347/STF foi aprovado em Sessão Plenária do dia 13 de dezembro de 1963, e conforme o Supremo Tribunal Federal teve como base o julgado do Mandado de segurança n° 8.372 – CE, de 11 de dezembro de 1961, cuja ementa dispõe que:

“Não ofende direito líquido e certo o ato do Tribunal de Contas que nega registro a aposentadoria fundada em lei revogada. Recurso não provido”.

Ao analisar o relatório, percebe-se que a questão refere-se à aposentadoria do Sr. José Maria Catunda como Delegado de Polícia Substituto, com base Leis Estadual n° 4.316/1958. A partir dos documentos acostados à dissertação de Simone Coêlho Araújo (2012, p. 117- 139), a aposentadoria do servidor foi julgada ilegal pelo Tribunal de Contas do Ceará, que de acordo com o relator à época, o Conselheiro Brasil Pinheiro, era manifesta a inconstitucionalidade da referida Lei que reduzia para 25 anos o tempo de serviço para fins de concessão de aposentadoria, considerando que o inciso X do art. 160 da Constituição do Estado do Ceará preceituava a necessidade de 35 anos de tempo de serviço.

Ao ter sua aposentadoria julgada ilegal pela Corte de Contas, o servidor impetrou o Mandado de Segurança supracitado, que foi negado provimento, cabendo ressaltar o voto do Min. Relator Pedro Chaves:

Nego provimento ao recurso. Considerando sem efeito a lei que serviria de fundamento ao ato de aposentadoria do recorrente, não poderia ser feito o registro por falta de supedâneo jurídico. A meu ver o acórdão recorrido bem decidiu a espécie, mas não posso deixar de lhe opôr um reparo de ordem doutrinária, pois não quero ficar vinculado a uma tese que tenho constantemente repelido.

Entendeu o julgado que o Tribunal de Contas não poderia declarar a inconstitucionalidade da lei. Na realidade, esta declaração escapa à competência específica dos Tribunais de Contas.

Mas há que distinguir entre declaração de inconstitucionalidade e não aplicação de leis inconstitucionais, pois esta é obrigação de qualquer tribunal ou órgão de qualquer dos poderes do Estado. Feita essa ressalva, nego provimento ao recurso. (STF, Recurso em Mandado de Segurança nº 8372. Recorrente: José Maria Catunda. Recorrido: Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Relator: Min. Pedro Chaves, Data de Julgamento: 11/12/1961, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 26/04/1962)

Cabe fazer uma ressalva quanto ao posicionamento do relator, que distinguiu “declarar inconstitucionalidade da lei” de “não aplicar lei inconstitucional.” O relator entendeu que declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo é ato privativo do Poder Judiciário, porquanto, afastar a aplicação de lei reputada inconstitucional é dever de todos os órgãos que compõe a Administração Pública. Neste sentido, Mariana Sodré (2006, p. 15) faz uma observação:

No entanto, deve-se recordar que ao afastar a aplicação ou declarar a inconstitucionalidade de uma norma, não estará o Tribunal, no sentido técnico- processual, declarando a inconstitucionalidade em tese da norma, mas sim resolvendo o incidente de inconstitucionalidade como pressuposto para resolução do caso concreto que lhe foi submetido. Isso porque, no controle difuso de constitucionalidade a que compete o Tribunal de Contas, declarar a nulidade ou

inconstitucionalidade, não se confunde com anular ou revogar a norma entendida inconstitucional, mas simplesmente consignar a sua incompatibilidade com a Constituição, inaplicando-a ao caso concreto.

A autora ressaltou que esse questionamento ressurgiu com discussão sobre a obediência dos Tribunais de Contas à cláusula de reserva de plenário disposta no art. 97 da Constituição de 1988 quando exercerem o controle de constitucionalidade, tendo em vista que este afasta a incidência de lei ou ato normativo reputado inconstitucional e não declarariam a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo.

Resta pacificado, todavia, na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que não há diferença entre afastar a aplicação de lei considerada inconstitucional e declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. De acordo com Ronaldo Poletti (apud Cláudio Spalla, 2008, p. 437) não há “diferença ontológica” entre a sentença declaração de inconstitucionalidade e a sentença que não aplica lei formalmente válida por entendê-la inconstitucional. Neste sentido, segue a jurisprudência:

Segunda Câmara Cível Embargos de Declaração na Apelação Voluntária nº. 059.040.007.953 Recorrente: Estado do Espírito Santo Recorrida: Helizete do Carmo Verneque Relator: Desembargador Namyr Carlos de Souza Filho ACÓRDAO EMENTA: CONSTITUCIONAL E DIREITO PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇAO NO RECURSO DE APELAÇAO. AÇAO DE COBRANÇA. ARTIGO 97 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. SÚMULA VINCULANTE Nº 10 DO STF. RESERVA DE PLENÁRIO. OMISSAO. QUESTAO DE ORDEM PÚBLICA. SUBSTITUIÇAO NO CARGO DE ESCRIVAO JUDICIÁRIO. PERÍODO NAO EXCEDENTE À 30 (TRINTA) DIAS. AFASTADA A INCIDÊNCIA DA RESOLUÇAO Nº 041/2002. LEI COMPLEMENTAR Nº 234/2002. ANULAÇAO DO ACÓRDAO. RECURSO PROVIDO. I. A despeito do disposto na Resolução nº 041/2002, vigente à época dos fatos, que expressamente excluía dos pagamentos de substituição os períodos de férias e licenças iguais ou inferiores à 30 (trinta) dias, esta Egrégia Segunda Câmara Cível, em conformidade com os fundamentos externados na Sentença de Primeiro Grau, entendeu por ser devida à Recorrida a diferença remuneratória entre os vencimentos do cargo efetivo e daquele exercido de fato, em observância ao princípio da vedação ao enriquecimento sem causa da Administração Pública, diante da necessidade de remuneração a qualquer trabalho e, por via oblíquo, ao princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da CRFB/88). (fl. 112).II. Consoante entendimento sedimentado na jurisprudência do Excelso Supremo Tribunal Federal, equivale à própria declaração de inconstitucionalidade a decisão de Tribunal, que, sem proclamá-la, explícita e formalmente, deixa de aplicar, afastando-lhe a incidência, determinado ato estatal subjacente à controvérsia jurídica, para resolvê-la sob alegação de conflito com critérios resultantes do texto constitucional. (STF; AI 591.373 - AgR, Relator Ministro Celso de Mello, Julgamento: 18/09/07. No mesmo sentido: AI 577.771-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 18/09/07, DJE de 16/05/08; RE 509.849-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 04/12/07, DJE de 1º/02/08)[...] TJES, Classe: Embargos de Declaração Ap Civel, 59040007953, Relator : NAMYR CARLOS DE SOUZA FILHO, Órgão julgador: SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data de Julgamento: 02/08/2011, Data da Publicação no Diário: 16/08/2011) (TJ-ES - ED: 59040007953 ES 59040007953, Relator: NAMYR CARLOS DE SOUZA

FILHO, Data de Julgamento: 02/08/2011, SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 16/08/2011) (grifou-se)

O disposto na Súmula n° 347/STF foi questionado pela liminar concedida em sede do Mandado de Segurança n° 25.888 – DF, da relatoria do Min. Gilmar Mendes, impetrado pela Petrobras em face da decisão do TCU n° 663/2002. Em harmonia com o entendimento sumular, o TCU determinou que a Petrobras não utilizasse seu Regulamento de Procedimento Simplificado (Decreto n° 2.745/1998) por ser ilegal e inconstitucional, conforme se percebe ao ler a ementa da Decisão n° 663/2002 - TCU:

Auditoria. Petrobrás. Área de licitação e contratos. Aplicação ilegal do regulamento do procedimento licitatório simplificado, a partir da edição do Decreto 2.745/98, que regulamentou o art. 67 da Lei 9.478/97, por serem inconstitucionais, abstendo a entidade da observância dos preceitos da Lei 8.666/93. Contratação sem licitação sob alegação de emergência e sem caracterização da inviabilidade de competição. Contratação das plataformas P38 e P40 sem licitação. Ausência de dados na página contas públicas na internet. Audiência dos responsáveis. Determinação. Remessa de cópia ao Congresso Nacional e órgãos de supervisão e controle. - Licitação e contratos. Empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias. Obediência à Lei 8.666/93. Análise da matéria. (TCU- Acórdão 663/2002 - Plenário. Relator: Min. Ubiratan Aguiar. Data de Julgamento: 19/06/2002. Ata 21/2002. Data da Publicação: 08/07/2002)

A partir da decisão do TCU, a Petrobras impetrou o Mandado de Segurança, MS n° 25.888-DF, com o pedido de liminar, justificando que os Tribunais de Contas não detém competência para apreciar a constitucionalidade de leis ou atos normativos, considerando que a Súmula n° 347/STF estaria ultrapassada, em face de ter sido editada em 1963, sob a égide de outra Constituição. Carrilho Chaves (2009, p. 189) afirma que o Min. Gilmar Mendes corroborou do entendimento da impetrante ao conceder a liminar com a seguinte ementa:

[...] Não me impressiona o teor da Súmula nº 347 desta Corte, segundo o qual "o Tribunal de Contas, o exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público". A referida regra sumular foi aprovada na Sessão Plenária de 13.12.1963, num contexto constitucional totalmente diferente do atual. Até o advento da Emenda Constitucional nº 16, de 1965, que introduziu em nosso sistema o controle abstrato de normas, admitia-se como legítima a recusa, por parte de órgãos não-jurisdicionais, à aplicação da lei considerada inconstitucional.No entanto, é preciso levar em conta que o texto constitucional de 1988 introduziu uma mudança radical no nosso sistema de controle de constitucionalidade. Em escritos doutrinários, tenho enfatizado que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato, com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma mudança substancial no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil. Parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. A amplitude do direito de propositura faz com que até mesmo pleitos tipicamente individuais sejam submetidos ao Supremo Tribunal Federal mediante ação direta de inconstitucionalidade. Assim, o processo de controle abstrato de normas cumpre

entre nós uma dupla função: atua tanto como instrumento de defesa da ordem objetiva, quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas.Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988.(STF - MS: 25888 DF , Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 22/03/2006, Data de Publicação: DJ 29/03/2006 PP-00011)

Pode-se aferir que a validade da súmula foi posta em dúvida com o argumento ter sido editada na vigência de outra Carta Política, superada pela Constituição vigente. As decisões que deram ensejo ao disposto na Súmula n° 347/STF, tanto a decisão do Tribunal de Contas do Estado do Ceará quanto do Tribunal de Justiça, bem como sua promulgação aconteceram sob a égide da Constituição de 1946.

Na vigência da Constituição Federal de 1946 persistia o controle de difuso de constitucionalidade, onde cabe a qualquer juiz ou tribunal declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Somente, com Emenda Constitucional n° 16, de 26 de novembro de 1965, foi introduzido o sistema de controle concentrado de constitucionalidade, delegando a competência exclusiva para julgamento ao Supremo Tribunal Federal.

Eduardo Carrilho Chaves (2009, p. 189) destaca que a decisão do Min. Gilmar Mendes foi fundamentada na noção que o controle de constitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro evoluiu desde a promulgação da referida Súmula, não amparando os Tribunais de Contas:

O argumento contra a aplicabilidade da Súmula n° 347/STF é de que a CF 88 ampliou em muito o rol de legitimados para ingressar com ADIs, sem incluir o TCU. Sendo assim, o Min. Gilmar Mendes defende que o constituinte, ao não permitir que o Tribunal provoque o controle direto de constitucionalidade, pretende mais: que a Corte de Contas não exerça qualquer atividade de controle de constitucionalidade.

Em favor do teor contido na súmula, Jacoby (2012, p. 381) expõe o art. 71, inciso I e II, entendendo que dentro destas competências o Tribunal não pode isentar-se de apreciar a constitucionalidade de lei ou ato normativo, quando for necessário:

Nesse passo, se o Tribunal juga determinado ato, frente a determinada lei e, atuando em maior amplitude, verifica que esta lei encontra-se em atrito com aquela de maior hierarquia – Constituição Federal – e partindo do pressuposto lógico de que não pode eximir-se do julgamento, deverá dizer do conflito de normas e de suas consequências no caso concreto, tratando-se tal dicção de um juízo de constitucionalidade.

Ademais, cabe salientar que, além da Súmula n° 347/STF, a competência do Tribunal de Contas da União para exercer o controle de constitucionalidade encontra fundamento

também na Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, art. 66 da Lei n° 8.443/92, cominado com o seu Regimento Interno, art. 15, inciso I, alínea “e”.

Apesar do dissenso remontar ao ano de 2006, ainda persistem muitas dúvidas sobre o exercício do controle de constitucionalidade pelos Tribunais de Contas no âmbito de suas atribuições. Nas palavras de Carrilho Chaves (2009, p. 188): “A discussão é viva e atual”. No entanto, para o alcance dos objetivos propostos pelo próprio texto constitucional, o controle de constitucionalidade torna-se um mecanismo indispensável.