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167 A S HOMENAGENS INCONDICIONAIS

No documento Nietzsche - Aurora (páginas 157-160)

L IVRO T ERCEIRO

167 A S HOMENAGENS INCONDICIONAIS

Quando penso no filósofo alemão mais lido, no músico alemão mais ouvido, no homem de Estado alemão mais considerado, sou obrigado a confessar: se atualmente se toma a vida muito dura para os alemães, esse povo dos sentimentos absolutos, isso é devido a seus grandes homens. Nos três casos, o espetáculo é esplêndido para contemplar: é cada vez um rio, tão poderosamente agitado no leito que ele próprio cavou, que se poderia muitas vezes acreditar que quer escalar a montanha. E, no entanto, por mais longe que seja levada a admiração, quem não gostaria de ser, no final das contas, de outro estilo que o de Schopenhauer2! E quem gostaria de compartilhar

agora, nas grandes e nas pequenas coisas, as opiniões de Wagner3? — por mais justa que possa ser a observação daquele

que disse que, sempre que Wagner dá ou toma um impulso, um problema está escondido — vamos adiante, não é ele que vai trazê-lo à luz. — E, finalmente, quantos não haveria que gostariam, de todo o coração, estar de acordo com Bismarck4,

com a condição que ele estivesse de acordo consigo mesmo ou que pelo menos aparentasse sê-lo doravante! Certamente: não

há princípios, mas instintos, um espírito flexível a serviço de

violentos instintos dominantes e por isso sem princípios — isso não deveria ser nada surpreendente num homem de Estado, mas deveria antes ser considerado como justo e normal. Ai! isso foi até agora tão pouco alemão! Tão pouco como o ruído em torno da música, as dissonâncias e o mau humor em torno do músico! Tão pouco como a nova e extraordinária posição escolhida por Schopenhauer: nem acima das coisas, nem de joelhos diante delas — nos dois casos, isso teria sido ainda alemão — mas contra as coisas! Incrível e desagradável! Colocar-se no mesmo nível das coisas, mas ser, apesar disso, seu adversário e, no final das contas, o adversário de si próprio! — Que deve fazer o admirador incondicional com semelhante modelo? E sobretudo de três desses modelos que nem mesmo mostram o desejo de estar em paz entre si! Aí está Schopenhauer, adversário da música de Wagner, e Wagner, adversário da política de Bismarck, e Bismarck, adversário de todo wagnerismo e de todo schopenhauerismo! Que resta fazer? Onde se refugiar com sua sede de “veneração em bloco”? Seria possível talvez escolher na música do compositor algumas centenas de boas medidas que toquem o coração e que se goste de ter no coração porque têm coração — seria possível ir embora com esse pequeno espólio e esquecer todo o resto? E procurar semelhante arranjo com o filósofo e com o homem de Estado — escolher, guardar no coração e, sobretudo, esquecer o

resto? Sim, se não fosse tão difícil esquecer! Era uma vez um

homem muito orgulhoso que, a nenhum preço, queria aceitar nada que não fosse de si próprio, tanto no bem como no mal: mas quando teve necessidades do esquecimento, não pôde dá-

lo a si próprio e foi forçado a conjurar os espíritos por três vezes; eles vieram, ouviram seu pedido e disseram no fim: “E justamente a única coisa que não está em nosso poder!” Os alemães não deveriam tirar proveito da experiência de

Manfredo? Para que conjurar primeiro os espíritos! É inútil, não

se esquece quando se quer esquecer. E como seria importante “o resto” para esses três grandes homens de nosso tempo, a fim de poder permanecer seu admirador em bloco! Seria, portanto, preferível aproveitar a ocasião para tentar algo de novo: quero dizer, progredir na lealdade para consigo mesmo e tornar-se, em vez de um povo que repete de uma forma crédula e que odeia maldosa e cegamente, um povo de aprovação condicional e de oposição benevolente; mas aprender antes de tudo que as homenagens incondicionais para com as pessoas são algo de ridículo, que mudar de opinião a respeito não seria desonroso, mesmo para os alemães, e que existe uma máxima profunda, digna de ser seguida: “O que importa não são as pessoas, mas

as coisas.” Esta máxima é, como aquele que a pronunciou,

grande, honesta, simples e silenciosa — assim como Carnot5,

soldado e republicano. — Mas pode-se agora falar assim de um francês a alemães, e mais ainda de um republicano? Talvez não e talvez não se tenha até mesmo o direito de lembrar o que Niebuhr6 pôde dizer outrora aos alemães: que ninguém como

Carnot lhe tinha dado a impressão da verdadeira grandeza.

168. UM MODELO

De que é que gosto em Tucídides7, que é que faz com que

eu o estime mais que Platão8? Ele tem o prazer mais amplo e

mais livre de preconceitos com tudo o que há de típico no homem e nos acontecimentos e acha que a cada tipo corresponde certa quantidade de bom senso: é esse bom senso

que ele tenta descobrir. Possui uma maior justiça prática que Platão; não calunia nem rebaixa os homens que não lhe agradam ou que lhe causaram dano na vida. Pelo contrário: acrescenta e introduz algo de grande em todas as coisas e em todas as pessoas, vendo em toda parte apenas tipos; com efeito, que importa à posteridade, à qual ele dedica sua obra, o que não é típico! É assim que essa cultura do mais livre conhecimento do mundo chega nele, o pensador-homem, a um florescimento maravilhoso, essa cultura que tem em Sófocles9

seu poeta, em Péricles10 seu homem de Estado, em Hipócrates11

seu médico, em Demócrito12 seu sábio naturalista: essa cultura

que merece ser batizada com o nome de seus mestres, os

sofistas, e que infelizmente, desde o momento de seu batismo,

começa a se tornar de repente pálida e inacessível para nós — porque desde logo suspeitamos que essa cultura, por ter sido combatida por Platão e por todas as escolas socráticas, devia ser bem imoral! A verdade é tão complicada e enredada que nos repugna desenroscá-la: que o velho erro (error veritate

simplicior13) siga pois seu velho caminho!

No documento Nietzsche - Aurora (páginas 157-160)

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