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141 M AIS BELO , MAS DE MENOR VALOR

No documento Nietzsche - Aurora (páginas 140-143)

L IVRO S EGUNDO

141 M AIS BELO , MAS DE MENOR VALOR

Moralidade pitoresca: é a moralidade dos sentimentos que se elevam em linhas abruptas, atitudes e gestos patéticos, incisivos, terríveis e solenes. Esse é o grau semi-selvagem da moralidade: não nos deixemos tentar por seu encanto estético, para lhe conferir um grau superior.

142. SIMPATIA

Se, para compreender nosso próximo, isto é, para

reproduzir seus sentimentos em nós, remontamos muitas vezes

ao fundo de seus sentimentos, determinados desta ou daquela maneira, perguntando-nos, por exemplo: por que está triste? — a fim de nos tornarmos tristes nós mesmos pela mesma razão — é muito mais freqüente evitarmos agir assim e provocamos esses sentimentos em nós segundo os efeitos que suscitam e são visíveis em nosso próximo, reproduzindo em nosso corpo a expressão de seus olhos, de sua voz, de seu andar, de sua altitude (pelo menos até uma leve semelhança do jogo dos músculos e do enervamento) ou mesmo o reflexo de tudo isso na palavra, na pintura, na música. Então surge em nós um sentimento análogo, a partir de uma velha associação de movimentos e de sentimentos que é levada a agir nos dois

sentidos. Levamos muito longe essa habilidade em compreender os sentimentos dos outros e em presença de alguém exercemos sempre e quase involuntariamente essa habilidade: observe-se sobretudo o jogo dos traços num rosto feminino, como freme e se ilumina inteiramente sob o domínio de uma constante imitação, reproduzindo incessantemente os sentimentos que se agitam em torno dele. Mas é a música que nos mostra mais claramente como nos tornamos mestres na adivinhação rápida e sutil dos sentimentos e na simpatia: pelo menos se a música é efetivamente a imitação de uma imitação de sentimentos e se, apesar do que haja nisso de distante e vago, nos faz muitas vezes participar ainda desses sentimentos, de modo que nos tornamos tristes sem ter o menor motivo para tristeza, como fazem os loucos, simplesmente porque ouvimos sons e ritmos que lembram vagamente a entonação e o movimento daqueles que estão de luto ou mesmo seus costumes. Conta-se de um rei dinamarquês que ficou enlevado com a música de um menestrel e ficou possuído de tal entusiasmo guerreiro que se precipitou do trono e matou cinco pessoas de sua corte reunida em torno dele: não havia guerra nem inimigos, muito pelo contrário, mas a força que remonta do sentimento à causa foi suficientemente grande para vencer a evidência e a razão. Ora, esse é quase sempre o efeito da música (supondo, é claro, que ela tenha um efeito —) e não se tem necessidade de casos tão paradoxais para se dar conta disso: o estado sentimental em que a música nos mergulha está quase sempre em contradição com a evidência de nossa situação real e da razão que reconhece essa situação real e suas causas. — Se perguntarmos como se tornou tão corrente a representação dos sentimentos alheios, a resposta não deixa qualquer dúvida: uma vez que o homem é a criatura mais receosa de todas, graças à sua natureza delicada

e frágil, encontrou em sua disposição receosa a iniciadora dessa simpatia, dessa rápida compreensão dos sentimentos dos outros (mesmo dos animais). Durante milênios viu um perigo em tudo o que era estranho, em tudo o que se agitava: desde que semelhante espetáculo se oferecia a seus olhos, imitava os traços e a atitude daquilo que via diante dele e tirava suas conclusões sobre a natureza das más intenções escondidas por trás desses traços e dessa atitude. Essa interpretação de todos os movimentos e de todos os traços em função de intenções, o homem a aplicou à natureza das coisas inanimadas — levado como estava pela ilusão de que não existia nada de inanimado. Penso que tudo aquilo que chamamos sentimento da natureza e que nos toca ao aspecto do céu, dos campos, dos rochedos, da floresta, das tempestades, das estrelas, dos mares, das paisagens, da primavera, encontra aqui sua origem. Sem a velha prática do temor que nos forçava a ver tudo isso sob um sentido secundário e distante, estaríamos privados hoje das alegrias da natureza, precisamente como o homem e os animais nos deixariam sem prazer, se não tivéssemos tido essa iniciadora de toda compreensão, o temor. Por outro lado, a alegria e a agradável surpresa e, enfim, o sentimento do ridículo, são os filhos da simpatia, os últimos filhos e os irmãos muito mais jovens do temor. — A faculdade de compreensão rápida — que se baseia, portanto, na faculdade de simular

rapidamente — diminui nos homens e nos povos altivos e

soberanos, pois são menos temerosos: em compensação, todas as variedades de compreensão e de simulação são familiares aos povos temerosos; ali ainda se encontra a verdadeira pátria das artes de imitação e da inteligência superior. — Se, a partir dessa teoria da simpatia como a proponho aqui, penso na teoria, hoje gozando de favor e consagrada, de um processo místico,

por meio do qual a compaixão, de dois seres, faz um só e torna possível a um a compreensão imediata do outro: se recordo que um espírito tão lúcido como o de Schopenhauer se deliciava com semelhantes inutilidades exaltadas e miseráveis e que transmitiu esse prazer a outros espíritos lúcidos ou semi-lúcidos: minha estupefação e minha tristeza não têm limites. Como deve ser grande o prazer que nos proporcionam as incompreensíveis tolices! Como o homem se encontra ainda perto da insensatez ao auscultar seus secretos desejos intelectuais! — (Por que

razão se sentia Schopenhauer tão cheio de reconhecimento para

com Kant, tão profundamente agradecido? Uma vez o revelou sem equívocos. Alguém havia falado da forma pela qual a

qualitas occulta10 podia ser retirada do imperativo categórico de

Kant para torná-lo inteligível. Aí Schopenhauer explodiu: “Inteligibilidade do imperativo categórico! Idéia profundamente errônea! Trevas do Egito! Deus nos livre de que se torne inteligível Que existe justamente algo de ininteligível, que nosso

miserável juízo com seus conceitos seja limitado, condicionado,

finito, enganador: é essa certeza que é a grande aquisição de Kant.” — Deixo pensar, se alguém tiver a boa vontade de

conhecer as coisas morais, quando antecipadamente se exalta

com a crença em sua inteligibilidade! Alguém que ainda creia lealmente nas iluminações do alto, na magia e nas aparições e na feiúra metafísica do sapo!)

No documento Nietzsche - Aurora (páginas 140-143)

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