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119 V IVER E IMAGINAR

No documento Nietzsche - Aurora (páginas 118-122)

L IVRO S EGUNDO

119 V IVER E IMAGINAR

Qualquer que seja o grau que alguém possa atingir no conhecimento de si, nada pode ser mais incompleto que a imagem que se faz dos instintos que constituem seu ser. Mal sabe citar por seus nomes os instintos mais grosseiros: seu número e sua força, seu fluxo e refluxo, seu jogo recíproco e, antes de tudo, as leis de sua nutrição permanecem inteiramente desconhecidos. Essa nutrição se torna, pois, obra do acaso: os acontecimentos cotidianos de nossa vida lançam sua presa ora a esse instinto, ora àquele; ele os toma avidamente, mas o vaivém desses acontecimentos se encontra fora de toda correlação racional com as necessidades nutritivas do conjunto dos instintos, de modo que ocorrerá sempre duas coisas — uns desfalecerão e morrerão de inanição, outros serão alimentados

em excesso. Cada momento de nossa vida faz crescer alguns tentáculos de nosso ser e faz secar alguns outros, conforme a nutrição que o momento trouxer ou não. Sob esse ponto de vista, todas as nossas experiências são alimentos, mas distribuídos às cegas, ignorando aquele que tem fome e quem já está satisfeito. Em conseqüência dessa nutrição de cada parte, deixada ao acaso, o estado do pólipo, em seu desenvolvimento completo, será algo também fortuito como seu desenvolvimento o foi. Falando mais exatamente: admitindo que um instinto chega ao ponto em que exige ser satisfeito — ou exercer sua força ou satisfazê-la ou preencher um vazio (para usar imagens): examinará cada acontecimento do dia para saber como pode utilizá-lo para seus próprios fins: qualquer que seja a condição em que o homem se encontre, que caminhe ou descanse, que leia ou fale, que se zangue ou lute ou que se alegre, o instinto alterado tateia de algum modo cada uma dessas condições e, na maioria dos casos, nada encontrará a seu gosto; deve então esperar e continuar a ter sede: um instante mais e vai enfraquecer, mais alguns dias ou meses, se não for satisfeito, secará como uma planta sem chuva. Talvez essa crueldade do acaso saltasse mais à vista com cores mais vivas se todos os instintos exigissem ser satisfeitos tão fundamentalmente como a fome, que não se contenta com

alimentos sonhados; mas a maior parte dos instintos, sobretudo

os chamados morais, se satisfaz precisamente assim — se for permitido supor que nossos sonhos servem para compensar, em certa medida, a ausência acidental de “alimento” durante o dia. Por que o sonho de ontem era cheio de ternura e de lágrimas, o de anteontem agradável e presunçoso, aquele outro, mais antigo ainda, aventuroso e cheio de buscas inquietas? Por que nesse sonho usufruo de indescritíveis belezas da música, por

que em outro plano e me elevo com a volúpia da águia até os cumes mais longínquos? Essas imaginações em que se descarregam e jogam nossos instintos de ternura ou de zombaria ou de excentricidade, nossos desejos de música e de cumes — e cada qual terá à mão exemplos mais chocantes ainda — são as interpretações de nossas excitações nervosas durante o sono, interpretações muito livres, muito arbitrárias da circulação do sangue, do trabalho dos intestinos, da pressão dos braços e dos cobertores, do som dos sinos de uma igreja, do rumor de um cata-vento, dos passos dos notívagos e de outras coisas do gênero. Se esse texto que em geral permanece o mesmo de uma noite para outra, recebe comentários variados do ponto que a razão inventiva imagina ontem e hoje causas tão diferentes para as mesmas excitações nervosas, isso resulta de que a motivação dessa razão é hoje diferente da de ontem — outro instinto quis se satisfazer, se manifestar, se exercer, se aliviar, se expandir — é esse instinto que estava no momento mais forte de seu fluxo, enquanto ontem era outro. — A vida desperta não dispõe da mesma liberdade de interpretação que a vida de sonho e é menos poética, menos desenfreada — mas será preciso dizer que durante o dia os instintos também não fazem mais do que interpretar as excitações nervosas e fixar- lhes as “causas” segundo suas necessidades? Que entre o estado desperto e o sonho não há diferença essencial? Que mesmo comparando níveis muito diferentes de cultura, a liberdade da interpretação desperta nunca é semelhante à liberdade do outro nível em sonho? Que nossas avaliações e nossos juízos morais são sempre imagens e fantasias que escondem um processo fisiológico desconhecido a nós, uma espécie de linguagem convencional para designar certas irritações nervosas? Que tudo o que chamamos consciência não

é outra coisa que o comentário mais ou menos fantasioso de um texto desconhecido, talvez incognoscível, mas pressentido? Tomemos o exemplo de uma pequena experiência vivida. Suponhamos que percebemos um dia, enquanto atravessamos a praça pública, que alguém ri de nós: segundo aquele de nossos instintos que esteja então em seu ponto culminante, esse incidente terá para nós esta ou aquela significação — segundo o tipo humano a que pertencemos será um incidente totalmente diferente. Um vai recebê-lo como uma gota de chuva, outro vai sacudi-lo para longe como um inseto; um vai procurar nisso um pretexto para discutir, outro vai examinar as roupas para verificar se se prestam ao riso, outro vai meditar sobre o ridículo em si; finalmente, haverá talvez aquele que vai se alegrar por ter contribuído sem querer para acrescentar um raio de sol à alegria do mundo — e em cada um desses casos um instinto conseguirá satisfação, que seja o de desprezo, o da combatividade, o da meditação ou o da benevolência. Esse instinto, qualquer que seja, se apoderou do incidente como de uma presa: por que precisamente esse? Porque, sequioso e esfomeado, estava à espreita. — Ultimamente, às onze horas da manhã um homem desfaleceu subitamente diante de mim, como fulminado por um raio; todas as mulheres da vizinhança começaram a gritar em desespero; eu mesmo o levantei e perto dele esperei que recobrasse a fala — durante esse tempo nenhum músculo de meu rosto se moveu, não fui tomado de nenhum sentimento, nem de temor nem de piedade, fiz simplesmente o que devia ser feito de mais urgente e razoável, continuando depois meu caminho friamente. Supondo que me tivessem anunciado na véspera que no dia seguinte às onze horas alguém cairia assim a meus pés, teria sofrido antecipadamente tormentos de toda espécie, não teria dormido

a noite toda e no momento decisivo teria ficado talvez semelhante a esse homem em vez de socorrê-lo. De fato, no intervalo todos os instintos possíveis teriam tido tempo de imaginar e comentar esse acontecimento diferente. — O que são, pois, os acontecimentos de nossa vida? Muito mais o que neles pomos do que neles se encontra! Ou deveríamos até mesmo dizer: são vazios em si mesmo? Viver, é imaginar?

No documento Nietzsche - Aurora (páginas 118-122)

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