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O PRIMEIRO CRISTÃO

No documento Nietzsche - Aurora (páginas 69-73)

L IVRO P RIMEIRO

NOSSA NATUREZA DEFINITIVAMENTE PERECÍVEL

68. O PRIMEIRO CRISTÃO

Todos acreditam ainda nas produções literárias do “Espírito Santo”, ou se ressente dos contragolpes dessa crença: quando alguém abre a Bíblia, é para “se edificar”, para encontrar em sua própria miséria, grande ou pequena, uma palavra de consolo — em resumo, nela ele se procura e se encontra a si mesmo. Que ela traga também a historia de uma alma das mais ambiciosas e impertinentes, de um espírito tão cheio de superstição como de astúcia, a história do apóstolo Paulo — quem a conhece, exceto alguns sábios? Entretanto, sem essa história singular, sem as perturbações e as explosões de tal espírito, de tal alma, não haveria mundo cristão: teríamos apenas ouvido falar de uma pequena seita judaica, cujo mestre morreu na cruz. É verdade que, se se tivesse compreendido a tempo essa história, se se tivesse lido, lido realmente, os escritos de são Paulo, não como são lidas as revelações do “Espírito Santo”, mas com um espírito independente, real e

livre, sem pensar em qualquer angústia pessoal — durante mil e quinhentos anos não houve semelhantes leitores — há muito tempo que não se falaria mais do cristianismo: tanto isto é verdade que essas páginas do Pascal judeu põem a nu as origens do cristianismo como as páginas do Pascal francês nos desvelam o destino e as razões do aniquilamento fatal. Se o navio do cristianismo lançou por cima de sua borda boa parte do lastro judeu, se entrou, se pôde entrar nas águas do paganismo — é à história de um só homem que o deve, um homem profundamente atormentado, digno de compaixão, desse homem desagradável aos outros e a si mesmo. Ele vivia com uma idéia fixa, ou melhor: com uma pergunta fixa, sempre presente e sempre candente: o que era feito da Lei judaica? Do

cumprimento dessa Lei? Em sua juventude, tinha querido segui-

la, ávido dessa distinção suprema que os judeus souberam imaginar — esse povo que impeliu a imaginação do sublime moral mais alto do que qualquer outro povo e que só ele reuniu a criação de um Deus santo, com a idéia do pecado considerado como falta contra essa santidade. São Paulo se havia tornado a um só tempo o defensor fanático e o guarda de honra desse Deus e de sua Lei. Incessantemente em luta e à espreita contra os transgressores dessa Lei e contra aqueles que a punham em dúvida, era duro e implacável contra eles e disposto a puni-los da forma mais rigorosa. Eis que ele próprio faz a experiência em sua pessoa, pois, um homem como ele — violento, sensual, melancólico, como era, refinado no ódio — se sentia incapaz de cumprir essa Lei; mais ainda e o que lhe pareceu mais estranho: percebeu que sua ambição desenfreada era continuamente tentada a transgredir a Lei e que se sentia premido a ceder a esse aguilhão. Que dizer? Era de fato a “inclinação carnal” que sempre e de novo o forçava a transgredir a Lei? Não estaria

antes, como suspeitou mais tarde, por trás dessa inclinação, a própria Lei que devia incessantemente provar seu caráter irrealizável e impelia à transgressão com um encanto irresistível? Mas nesse tempo não dispunha ainda dessa escapatória. Talvez tivesse na consciência, como o faz entrever, o ódio, o crime, a bruxaria, a idolatria, a luxúria, a embriaguez, o prazer na libertinagem e na orgia — e quanto mais pudesse fazer para aliviar essa consciência, mais ainda seu desejo de dominação, pelo extremo fanatismo que colocava na defesa e na veneração da Lei, tinha momentos em que se dizia: “Tudo é em vão! A tortura do descumprimento da Lei é insuperável.” Lutero deve ter experimentado um sentimento análogo quando quis tornar-se, em seu claustro, o homem do ideal eclesiástico e o que aconteceu a Lutero — que se pôs um dia a odiar o ideal eclesiástico, o papa, os santos e todo o clero com um ódio tanto mais mortal que não ousava confessá-lo — aconteceu também a são Paulo. A Lei se tornou a cruz sobre a qual se sentia pregado: como ele a odiava! Como lhe guardava rancor! Como começou a remexer por todos os lados para encontrar um meio próprio para aniquilá-la — para não ter de cumpri-la nunca mais! Eis senão quando a luz eclodiu de repente em seu espírito, graças a uma visão, como não podia ser de outra maneira nesse epiléptico: ele, o fogoso zelador da Lei que, no fundo de sua alma, estava cansado dela até a morte, vê aparecer numa estrada deserta esse Cristo com um brilho divino no rosto e são Paulo ouve estas palavras: “Porque me persegues?” Ora, em resumo, eis o que aconteceu: seu espírito ficou repentinamente iluminado e disse para si mesmo: “O absurdo é precisamente perseguir esse Jesus! Aí está a saída que eu procurava, aí está a vingança completa, aí e em nenhum outro vou ter entre as mãos o destruidor da Lei!” Aquele que sofre os piores tormentos de

orgulho sente-se subitamente restabelecido, o desespero moral se evaporou, pois, a própria moral se volatilizou, aniquilada — isto é, cumprida, lá no alto, na cruz! Até o presente essa morte ignominiosa lhe havia servido de principal argumento contra essa “vocação messiânica” de que falavam os discípulos da nova doutrina: mas que aconteceria se ela tivesse sido

necessária para abolir a Lei? — As enormes conseqüências

dessa idéia súbita, dessa solução do enigma, redemoinham diante de seus olhos e se torna repentinamente o mais feliz dos homens — o destino dos judeus, não, o destino da humanidade inteira, lhe parece ligado a esse segundo de iluminação súbita, tem a idéia das idéias, a chave das chaves, a luz das luzes; em torno dele gravita doravante a história! Desde então ele é o apóstolo do aniquilamento da lei! Morrer para o mal — isso quer dizer morrer para a Lei; viver segundo a carne — é viver segundo a Lei! Ter-se tornado um com o Cristo — isso quer dizer ter-se tornado, como ele, destruidor da Lei; morrer em Cristo — isso quer dizer também morrer para a Lei! Mesmo que fosse ainda possível pecar, não seria pelo menos contra a Lei; “eu estou fora dela”, disse e acrescenta: “Se eu quisesse agora reconhecer de novo a Lei e submeter-me a ela, tornaria Cristo cúmplice do pecado”; pois a Lei existia somente para gerar sempre o pecado, como o sangue corrompido faz surgir a doença; Deus jamais teria podido decidir a morte de Cristo se o cumprimento da Lei tivesse sido possível sem essa morte; doravante, não somente todos os pecados são remidos, mas o próprio pecado é abolido; agora a Lei morreu, agora morreu o espírito carnal em que ela habitava — ou pelo menos esse espírito está prestes a morrer, a entrar em decomposição. Só mais alguns dias para viver no seio dessa decomposição! — esse é o destino do cristão, antes que, unido com Cristo,

ressuscite com Cristo, participando com Cristo da glória divina, doravante “filho de Deus” como Cristo. — Aqui a exaltação de são Paulo está em seu auge e com ela o atrevimento de sua alma — a idéia da união com Cristo o fez perder todo pudor, toda medida, toda submissão, e a indomável vontade de dominação se revela num inebriamento que antecipa a glória

divina. — Esse foi o primeiro cristão, o inventor do cristianismo!

Antes dele, só havia alguns sectários judeus.

No documento Nietzsche - Aurora (páginas 69-73)

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