• Nenhum resultado encontrado

207 C OMO SE COMPORTAM OS ALEMÃES DIANTE DA MORAL

No documento Nietzsche - Aurora (páginas 196-200)

L IVRO T ERCEIRO

207 C OMO SE COMPORTAM OS ALEMÃES DIANTE DA MORAL

Um alemão é capaz de grandes coisas, mas é pouco provável que as realize, pois ele obedece onde pode, como convém aos espíritos preguiçosos por natureza. Se for colocado numa situação perigosa de ficar só e sacudir sua preguiça, se não lhe for mais possível esconder-se como um número numa soma (nessa qualidade tem infinitamente menos valor que um francês ou um inglês) — descobrirá suas forças: torna-se então perigoso, mau, profundo, audacioso, e traz à luz do dia o tesouro de energia latente que conserva em si, um tesouro no qual, por outra, ninguém acredita (nem sequer ele próprio). Quando, num caso desse gênero, um alemão obedece a si próprio — é a grande exceção — ele o faz com o mesmo peso, a mesma inflexibilidade, a mesma resistência que aplica habitualmente a obedecer a seu soberano e a seus deveres profissionais: embora, como dizíamos, ele tenha então envergadura para fazer grandes coisas que não têm qualquer relação com a “fraqueza de caráter” que ele julga possuir. Mas habitualmente receia depender apenas de si, receia improvisar (é por isso que a

Alemanha consome tantos funcionários e tanta tinta). — A leveza de caráter lhe é estranha, é muito temeroso para se abandonar a ela; mas em situações totalmente novas, que o arrancam de seu torpor, é quase de espírito frívolo; usufruí então da raridade de sua nova situação como de uma bebedeira, e ele se reconhece na bebedeira! Assim, o alemão é hoje quase frívolo em política: se bem que aí também ele tenha por si o preconceito da profundidade e da seriedade, que ele não deixa de explorar em suas relações com as outras forças políticas, e está, contudo, cheio de uma arrogância secreta, com a idéia de poder finalmente divagar, seguir os caprichos e seus gostos de novidades, mudar pessoas, partidos e esperanças como se fossem máscaras. — Os sábios alemães, que pareciam ser até agora os mais alemães dos alemães, eram e são talvez ainda tão bons como os soldados alemães, graças à sua tendência profunda e quase infantil para a obediência em todas as coisas exteriores, graças também à necessidade de se encontrarem muitas vezes isolados na ciência e de terem de responder a muitas coisas; se eles sabem proteger seu estilo orgulhoso, simples e paciente, e sua independência das loucuras políticas em tempos em que o vento sopra em outras direções, é ainda possível esperar deles grandes coisas; tal como são (ou eram) representam, em estado embrionário, qualquer coisa de

superior. — A vantagem e a desvantagem dos alemães, mesmo

entre seus sábios, é que se encontravam até agora mais próximos da superstição e da necessidade de crer que os outros povos; seus vícios continuam a ser, hoje como ontem, a embriaguez e a tendência ao suicídio (este último é um sinal do peso de um espírito que se deixa facilmente levar a abandonar as rédeas); o perigo para eles reside em tudo o que bloqueia as forças da razão e desencadeia as paixões (como o uso excessivo

da música e das bebidas alcoólicas): pois a paixão alemã se volta contra o que lhe pessoalmente útil, é por si mesma destrutiva, como aquela da embriaguez. O próprio entusiasmo tem menos valor na Alemanha que em outros lugares, pois é estéril. Se um alemão realizou qualquer coisa de grande, foi sob a pressão do perigo, num momento de bravura, com os dentes cerrados, o espírito tenso e muitas vezes com uma inclinação à generosidade. — Poder-se-ia aconselhar a colocar-se em contato freqüente com os alemães — pois cada alemão tem qualquer coisa a dar, se se souber conduzi-lo a encontrá-la, a reencontrá-

la (pois ele é fundamentalmente desordenado). — Mas se um

povo desse gênero se ocupa de moral: qual será a moral que justamente o haverá de satisfazer? Antes de tudo, ele vai querer certamente que sua tendência cordial a obedecer pareça idealizada. “O homem deve ter qualquer coisa a que possa

obedecer sem condições” — esse é um sentimento alemão, uma

conseqüência da lógica alemã: é encontrado na base de todas as doutrinas morais alemãs. Como é diferente a impressão que se sente diante de toda a moral antiga! Todos os pensadores gregos, por diversa que seja a imagem que nos é proposta, parecem semelhantes, enquanto moralistas, a esse professor de ginástica que exorta um jovem: “Vem! Segue-me! Confia-te à minha disciplina! Chegarás talvez então a alcançar um mérito maior do que todos os gregos.” A distinção pessoal — esta é a virtude antiga. Submeter-se, obedecer publicamente ou em segredo — esta é a virtude alemã. — Muito tempo antes de Kant e de seu imperativo categórico, Lutero havia dito, guiado pelo mesmo sentimento, que devia existir um ser no qual o homem pudesse confiar de modo absoluto — esta era sua prova da existência de Deus; ele queria, mais rude e mais plebeu que Kant, que se obedecesse cegamente não a uma idéia, mas a

uma pessoa e, no final das contas, Kant efetuou seu desvio pela moral apenas para chegar à obediência para com a pessoa: é exatamente o culto do alemão, qualquer que seja o traço imperceptível de culto que tenha restado em sua religião. Os gregos e os romanos tinham outros sentimentos e teriam ridicularizado um tal “deve haver um ser”: era próprio de sua liberdade de sentimento totalmente meridional se precaverem contra a “confiança absoluta” e conservar no último reduto do coração um leve ceticismo em relação a tudo e a todos, fosse ele deus, homem ou idéia. O filósofo antigo vai mais longe ainda! Nil admirari38 — nesta frase ele vê toda a filosofia. E um

alemão, penso em Shopenhauer, chega ao ponto de dizer o contrário: Admirari, id est philosophari39. — Que se passará

então, se um dia, como acontece às vezes, o alemão se encontrar na situação em que é capaz de grandes coisas? Se chegar a hora da exceção, a hora da desobediência? — Não creio que Schopenhauer tenha razão ao dizer que a única vantagem dos alemães sobre os outros povos reside no fato de que entre eles há mais ateus do que entre os outros — mas sei de uma coisa: quando o alemão está na situação em que é capaz de grandes coisas, ele se eleva sempre acima da moral! E por que não o faria? E agora está na situação de fazer alguma coisa de novo, isto é, comandar — a si ou aos outros! Ora, é justamente comandar que sua moral alemã não o ensinou! A arte de comandar está nele esquecida!

1 Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo e escritor suíço; entre suas

obras, O contrato social e A origem da desigualdade entre os homens já foram publicadas nesta coleção da Editora Escala (NT).

3 Richard Wagner (1813-1883), compositor alemão (NT). 4 Otto Bismarck (1815-1898), estadista alemão (NT).

5 Lazare Carnot (1753-1823), político e cientista francês (NT).

6 Berthold Georg Niebuhr (1776-1831), diplomata e historiador alemão (NT). 7 Tucídides (465-395 a.C), historiador grego (NT).

8 Platão (427-347 a.C), filósofo grego; dentre suas obras, A república já foi

publicada nesta coleção da Editora Escala (NT).

9 Sófocles (496-406 a.C), poeta trágico grego (NT). 10 Péricles (495-429 a.C), estadista ateniense (NT). 11 Hipócrates (460-377 a.C), médico grego (NT). 12 Demócrito (460-370 a.C), filósofo grego (NT).

13 Expressão latina que significa “o erro é mais simples que a verdade” (NT). 14 Histórica cidade grega do sul da Itália, fundada no século VII antes de

Cristo; pertencia à Magna Grécia e foi conquistada pelos romanos no ano 273 a.C; inexistente hoje como centro urbano, a lembrança grega, contudo, persiste em suas ruínas, destacando-se os templos, considerados os mais bem conservados da época da colonização helênica da Itália meridional. A cidade de Pompéia, citada a seguir, foi fundada pelos oscos no século VI antes de Cristo, mas foi dominada também pelos gregos e pelos etruscos; anexada a Roma em 290 a.C, foi totalmente destruída no ano 79 de nossa era por uma violenta erupção do Vesúvio (NT).

15 Expressão latina que significa “homem comilão”; na realidade, o termo

latino phago, phagonis (tomado do grego phágon, derivado de phágein, comer) já significava comilão; composto com o prefixo grego pan (tudo),

pamphagus significa Concretamente “come tudo” (NT).

16 Ésquilo (525-456 a.C), poeta trágico grego (NT). 17 Vocábulo latino que significa “indivíduo” (NT).

18 Frase extraída da obra Satirae (I, 5, 100) do poeta latino Quintus Horatius

Flaccus (65-8 a.C.) e que significa “O judeu Apella que o creia” ou “Que o judeu Apella acredite nisso” (NT).

19 Hesíodo (séc. VIII a.C), poeta grego (NT).

20 Friedrich von Schiller (1750-1805), escritor alemão; Wilhelm von

Humboldt (1767-1835), lingüista e político alemão; Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834), teólogo protestante alemão; Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), filósofo alemão; Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854), filósofo alemão (NT).

21 Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), escritor alemão (NT).

22 Pierre Corneille (1606-1684), poeta dramático francês (NT).

23 Marie de Rabutin-Chantal, madame de Sévigné (1626-1696), escritora

francesa (NT).

24 Blaise Pascal (1623-1662), matemático, físico e filósofo francês;

escapando da morte num acidente de carruagem quando tinha 31 anos, largou a vida mundana e decidiu entregar-se inteiramente a Deus, passando a viver como um místico, embora nunca tenha deixado de lado

No documento Nietzsche - Aurora (páginas 196-200)

Documentos relacionados