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A segunda edição de Cacau (Ariel, 1934)62, eleita como objeto desse estudo, na ausência da primeira que não conseguimos ter em mãos, apresenta, em suas 197 páginas, capa e ilustrações de Santa Rosa.

Em nota nessa segunda edição de 3000 exemplares63, Jorge Amado chega a creditar

boa parte do sucesso do livro ao ilustrador Santa Rosa e a Gastão Cruls64, escritor e sócio

de Agripino Grieco da Editora Ariel:

A saida da 2ª edição deste romance vem provar que já existe um publico para os escriptores novos no Brasil. Livro discutido, “Cacáu” provocou escandalo quando da sua apparição, chegando a ser apprehendido pela policia como pornografhico. Não é pornografhico nem contém allusões pessoaes, como disseram. Apenas um documentario da vida dos trabalhador rural do norte do Brasil, que foi bem recebido pelo publico.

Porém, o motivo desta nota não é explicar o livro. É deixar os meus agradecimentos a Gastão Cruls, que me animou a escrever “Cacáu” e o editou, e a Santa Rosa, que fez as notaveis illustrações do volume. Aos dois devo todo o successo de “Cacáu”. (nota datada de abril de 1934, 2ª ed.).

Cabe ressaltar que Jorge e Santa Rosa se conheceram em Maceió e foram amigos nesse início de vida no Rio de Janeiro, conforme indicam suas biografias. Amado mudou-se definitivamente para a capital carioca em 1930 e, Santa, em junho de 1932. Tinham respectivamente 21 e 24 anos de idade quando Cacau fora editado em 1933. Ao contrário de Menino de engenho, de 1932 e Vidas secas, de 1938, publicados em versões ilustradas

condenáveis e desagradáveis em si mesmas, ou mediante qualquer escrúpulo moral, mas pela falta de bom gosto e senso crítico com que são lançadas”.

62 A consulta a outras edições, como se deu com inúmeros outros títulos dos autores pesquisados, revela

diferenças substanciais no que tange à ortografia, ao planejamento gráfico e à apresentação das imagens, principalmente. Na edição conjunta com Suor e O país do carnaval, por exemplo, (13ª ed. São Paulo:

Martins, 1963) a última imagem desloca-se para o penúltimo capítulo do livro. Já a 47ª edição (Rio de

Janeiro: Record, 1987) reproduz uma imagem de página inteira junto a uma página de texto, visando, talvez, a economia de papel.

63 A partir de 1941 o livro passou a ser editado pela “Livraria Martins Editora, de São Paulo, conservando as

ilustrações originais, e integrava o primeiro tomo da coleção “Obras ilustradas de Jorge Amado”, até a 30ª edição, em 1975. Já de novo em volume separado como era inicialmente, o romance passou a ser publicado sem as ilustrações originais mas reproduzindo a capa primitiva de Santa Rosa, pela Editora Record, do Rio de Janeiro” (Tavares, 1980, p. 61). A 51ª edição, de 1998, a mais recente, traz sobrecapa e ilustrações de

Santa Rosa em “vinhetas recuperadas” por Pedro Costa.

64 “Lembro-me sempre do que me disse Gastão Cruls, o diretor de Ariel, quando lhe levei Cacau e ele decidiu

em 1956 e 1968, Cacau saiu do forno com ilustrações já em sua primeira edição. As primeiras do artista paraibano, segundo Jorge (1994, p. 183).

Na orelha das edições das “Obras ilustradas de Jorge Amado” da editora Martins,

Cacau é apontado igualmente como a primeira incursão de Santa na área:

Homenageando a memória de outro admirável artista já morto, foram reproduzidas nesta edição das “Obras ilustradas de Jorge Amado’ as ilustrações de Santa Rosa realizadas para a 1ª edição de “Cacau”. Além de seu valor artístico, possuem esses desenhos um valor histórico: “Cacau” foi o primeiro livro ilustrado por Santa Rosa, renovador da arte da ilustração no Brasil.

Apesar da pouca idade, as imagens produzidas por Santa Rosa prenunciam uma carreira brilhante de capista, ilustrador e planejador visual de livros. No texto Santa Rosa:

um designer a serviço da literatura, Edna Lúcia Cunha Lima e Márcia Christina Ferreira

(2005, p. 205) levantam a suposição de que da mesma forma como o êxito de Cacau lançou definitivamente o nome do escritor baiano:

o mesmo aconteceu com Santa Rosa, que daí por diante se faria cada vez mais presente no setor editorial. Cacau pode ser considerado seu melhor e mais completo trabalho dessa fase, com uma solução harmônica para a capa e miolo ilustrados.

O livro é dividido em 18 capítulos. Todos são abertos com uma ilustração pequena e retangular impressa no topo da página, acima do título, em diferentes dimensões. Seis deles contam ainda com uma segunda ilustração, de página inteira, mesmo estas reproduzidas em tímida escala.

As 24 ilustrações de Santa para o livro são inesquecíveis, perduram na memória do leitor de forma surpreendente e ajudam a fixar passagens marcantes do enredo. Impõem-se pelo número e a força narrativa e expressiva, advinda, principalmente, da linha branca sobre o preto intenso de fundo e o teor poético de muitas delas.

Um fato instigante diz respeito à possível técnica empregada na composição das ilustrações de fundo preto chapado e linhas orgânicas brancas. A princípio, pensamos tratar-se de linoelogravuras. Mesmo porque, nos momentos de mais declarada sensualidade e decorativismo, lembram um pouco os linóleos de Matisse para livros como Pasiphaé,

declarada paixão de Santa pela arte da gravura, defendida no texto Sobre a arte da

ilustração (1952), e pela prática pessoal da calcogravura, xilogravura, litogravura e

linóleogravura, a exemplo do linóleo Homem trabalhando, sob a guarda do Museu Nacional de Belas Artes. Obra esta cujo tema é igualmente voltado para o trabalhador braçal, citadino é verdade, como pode ser observado na Figura 46.

Figura 45 e 46. Ilustração de Matisse para Pasiphaé, chant de Minos (Les Crétois) e Santa Rosa, Homem trabalhando, 1941/50(?). Linoleogravura, 18 x 13,1 cm (área impressa). Museu Nacional de Belas Artes.

Além da linoleogravura, poderíamos pensar em outras duas hipóteses passíveis de resultar nas ilustrações de fundo preto de Cacau: scraperboard, técnica empregada com certa frequência por Di Cavalcanti (Figura 49) – artista por quem Santa apresentava grande admiração e afinidade – e que consiste no uso de um papel branco recoberto com uma camada de massa preta que o artista vai subtraindo por meio de raspagem; ou com mais propriedade, porque menos trabalhoso, do desenho a nanquim impresso de maneira

invertida, bastante usual na época, como Jayme Cortez demonstra com o exemplo abaixo extraído do seu Curso completo de desenho artístico (Figuras 47 e 48).

Figuras 47 e 48. Projeto de ilustração de Jaime Cortez (s/d, p.238-9, v. 2), em nanquim, feito para ser impresso em negativo.

Alexandre Eulálio (1992, p. 475), frente às imagens que Santa Rosa produziu para O

anjo (1934), de Jorge de Lima (Figura 49), cuja proximidade temporal e artística com as

imagens de Cacau é mais do que evidente, sugere mesmo o uso do desenho em negativo de inspiração germânica:

A fábula da solidão do homem perdido no vasto aglomerado urbano, nostálgico das origens, mas incapaz de já agora as recuperar senão sentimentalmente, que se encontra e desencontra com o pacato e submisso anjo da guarda dele mesmo, conseguiria aliás perfeita transposição visual nas excelentes ilustrações que Tomás Santa Rosa desenhou em negativo para a edição original, inspirado em certo grafismo germânico anos 20 (os primeiros Ernst e os primeiros Grosz).

Figuras 49 e 50. Di Cavalcanti. Sem título (O circo), 1952. Scraperboard s/papel, 48,6 x 30,1 cm. MAC/USP e ilustração de Santa Rosa para O anjo, de Jorge de Lima.

Depois de muitas suposições (linoleogravura, scraperbord, desenho em negativo), somente após consulta aos originais do artista na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro foi possível concluir que as ilustrações de Cacau foram produzidas com tinta branca sobre cartão preto. Em “Negros” (Figura 51), muito similar às ilustrações do livro – a ponto de poder compor série com elas –, Santa Rosa utilizou pigmento branco sobre papel preto, talvez guache diluído em pena e pincel para as áreas mais amplas de branco, que apresentam craquelamentos, inclusive. Ao que tudo indica, portanto, Santa igualmente empregou a mesma técnica no projeto ilustrativo de Cacau.

Figura 51. Santa Rosa. Negros, s/d. Guache s/papel, 24 x 18 cm. Acervo Iconográfico da Biblioteca Nacional.

Enfim, este adendo a respeito da técnica/materiais empregados para compor as imagens de Cacau permite entrever uma questão-chave em se tratando de ilustrações de material impresso em escala comercial. Pelo fato desses volumes raramente explicitarem as técnicas empregadas pelo artista, acabam induzindo o leitor mais atento a fazer o caminho de volta: do impresso para a mesa do artista. E mesmo que não haja uma busca sistemática de resultados como esta realizada para a tese, resta ainda o exercício reflexivo, a busca de associações com outras imagens armazenadas na memória.

Mas voltemos ao estudo das ilustrações de Cacau. Talvez Santa Rosa tenha escolhido este mergulho profundo na noite, este negro reluzente – como negra é a Bahia – e

que tanto se destaca e atrai nosso olhar, possivelmente inspirado no seguinte trecho do romance:

A noite envolvia tudo. Choravam violas, pássaros piavam. Os fructos amarellos dos cacaueiros e as cobras que silvavam. As estrellas brilhavam no céo. Fifós na estrada pareceriam almas penadas que voassem. A noite nas fazendas é triste, sombria, dolorosa. É à noite que a gente pensa... (p. 108).

O alto contraste em preto e branco, tão característico da arte panfletária dos anos de 1930 e 1940 parece mesmo ideal para representar a necessidade de buscar uma consciência política e de instaurar o clima de revolta necessário à transformação das condições do trabalho na roça.

O tom modernista do conjunto, misto minimalista, pós-cubista e surrealista, observa-se no uso de uma figuração espontânea e rápida; no uso de uma perspectiva livre

das amarras tradicionais; das sobreposições em transparências; das distorções65... Se o traço

orgânico e sem hesitação nos remete aos desenhos de um Picasso, de um Matisse ou de uma Tarsila, a representação da figura humana lembra Portinari, do qual Santa Rosa foi amigo, assistente e um grande conhecedor do estilo.

Ao mesmo tempo em que subsiste uma preocupação com a síntese linear, com a economia de detalhes e com as parcas sobreposições de planos, percebe-se, em alguns momentos, uma profusão de elementos decorativos (pontos, bolas, trançados, ondas...) e simbólicos (Lua, estrela, auréola, coroa...). Enquanto algumas ilustrações dão conta, em poucas linhas, de comentar uma passagem do texto, em outras, há uma sobreposição de cenas num mesmo espaço gráfico.

Pode-se dizer que tanto a linha precisa e sinuosa, o desenho estilizado e o corte nas figuras podem ser tomados como os elementos mais característicos do projeto de Santa Rosa para Cacau. Linhas que variam de espessura, indo da mais fina e delicada à carregada de espontaneidade e mesmo àquela retocada tendo em vista o adensamento visual. Destaque para o traço dentado recorrente em 13 ilustrações do romance, bem como em

65 Em texto de 1939, o historiador e ilustrador F. Acquarone, ao escrever sobre a ilustração modernista, cujos

artistas “deturpam, deformam, alongam ou achatam as proporções codificadas na arte de todos os tempos,

enaltecendo a liberdade extrema do traçado e da interpretação” (p. 264), destacou os nomes de Santa Rosa,

vários outros trabalhos, a exemplo de O anjo, de Jorge de Lima, mencionado anteriormente (Figura 50). Efeito serrilhado que poderia ter origem no exercício prático da gravura, quando da manipulação de suas ferramentas de ponta.

Já o corte, tão característico da fotografia e do cinema, muitas vezes necessário em se tratando de imagens de pequenas dimensões, impõe-se como recurso estético na medida em que são inseridos em pontos estratégicos: fragmentam, escondem e revelam partes e identidades, tornando as personagens-figuras mais misteriosas e atemporais, porque anônimas.

O desenho estritamente linear da figura humana é praticado com variedade, deixando de constar em apenas duas ilustrações. Ora focaliza em close o rosto das personagens, ora as mostra da cintura para cima ou para baixo, raramente inteiras, empreendidas nas mais variadas ações (trabalhando na roça, pisando o cacau, empunhando arma de fogo, comendo, dançando, escrevendo, lendo, viajando de trem, caminhando, tocando, etc.).

Fato intrigante é que do cacau mesmo só vemos imprecisos caroços sendo pisados

pelos alugados66. Nenhuma outra menção visual aparece ao fruto do cacaueiro. Sabemos

que Santa morou alguns meses na Bahia em 1931, por conta de seu trabalho de contabilista no Banco do Brasil. Mesmo que não tivesse tido contato direto com o cacau, seria fácil realizar uma pesquisa sobre o fruto, consultando algum arquivo fotográfico – prática bastante comum entre os ilustradores. Ou seja, essa ausência iconográfica pode ter se dado pelo simples fato do ilustrador ter entendido que Jorge Amado tenha esgotado verbalmente o tema, no que tange à descrição da fruta e do seu valor simbólico ou, então, pela sua predileção em focar o drama da gente simples; os retratos dos trabalhadores, das rameiras, dos meninos pobres; e as aventuras amorosas de Mária e Sergipano e de Magnólia e Osório.

66 “Alugado” foi um termo que Sergipano estranhou ao ser contratado para trabalhar para o Coronel Misael,

como podemos conferir no diálogo entre ele e um morador de Ilhéus: “– Está você alugado do Coronel.

/Estranhei o termo: /– A gente aluga machina, burro, tudo, mas gente não./ – Pois nessas terras do Sul, gente também se aluga./O termo me humilhava. Alugado... Eu estava reduzido a muito menos que homem...”. (p.