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Luís Jardim começou sua carreira de literato produzindo textos para jornais, como tantos outros contemporâneos. Seus primeiros contos foram publicados no Rio de Janeiro, na Lanterna Verde, no Diário de Notícias e no O Jornal. E muito da sua produção escrita

foi motivada pela participação em concursos literários, iniciada com o já referido concurso de literatura infantil, de 1937, acontecimento que o animou a seguir carreira literária.

Antológicos são os fatos envolvendo o concurso de livro de contos “Humberto Campos” promovido pela José Olympio, em 1938. Participavam do júri Graciliano Ramos, Marques Rebelo, Prudente de Morais Neto, Dias da Costa e Peregrino Júnior. Dois conjuntos de textos ficaram empatados: Maria Perigosa, de Jardim e um calhamaço de

Viator (do latim – o passageiro, o viajante). Após muita discussão, o prêmio foi concedido

à Maria Perigosa. Tempos depois, soube-se que o tal Viator era ninguém menos que Guimarães Rosa e sua versão primeira de Sagarana. O autor mineiro, inclusive, tornar-se-ia parceiro de Jardim, autor das capas de Tutaméia e de Primeiras estórias para o qual também elaborou o inventivo e divertidíssimo índice gráfico que alguns autores, como Pedro de Niemeyer Casarino (2002), atribuíram erroneamente a Poty e que a editora José

Olympio, em nota, explicita: “A pedido do autor Jardim fez desenhos-miniaturas com paciência chinesa, para cada uma das estórias, compondo o índice geral reproduzido no final do livro”. (1975, s/p.).

Paciência chinesa porque cada título é acompanhado por uma dinâmica mini-ilustração de

cada conto (Figura 94), possivelmente ditados pelo autor73, que gostava de desenhar e

estudar a história das religiões, do misticismo, esoterismo e da cabala: “Guimarães Rosa fazia

questão de participar da preparação editorial de qualquer livro seu, edição ou reedição. Sugeria o feitio das capas, rabiscava vinhetas ou ornatos (foram de sua escolha os cul-de-lamps de Tutaméia feitos por Luís Jardim: um deles, desenho de um caranguejo, é o símbolo do signo zodiacal do escritor), apresentava curiosos originais por ele mesmo rascunhados, depois devolvidos definitivamente, e com satisfação, pelos artistas que também escolhia” (Pereira, 2008, p. 121).

73 É famoso o envolvimento de Guimarães com a feitura gráfica dos seus livros. Dizem que ficou mais de sete

horas ao telefone com Poty discutindo sobre a capa de Corpo de baile, sendo sugestão sua o desenho das figuras vistas frontalmente na capa e de costas na contracapa do livro (Pereira, 2008, p. 120). O artista curitibano, por sua vez, parece ter-se contaminado pelo espírito irrequieto de Rosa. A 1ª edição ilustrada de

Sagarana, de 1968, trazia expressivos desenhos a bico de pena de Poty. Em 1971, a 13ª edição foi

Figura 94. Índice ilustrado de Luís Jardim para Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa.

Do ocorrido por ocasião do Concurso Literário Humberto de Campos, quem parece nunca ter-se perdoado foi o autor de Vidas secas. Na crônica “Conversa de bastidores”, de

194674, Graciliano relembra a situação conflituosa do julgamento:

Houve discussão e briga. No dia do julgamento, eliminadas composições menos sólidas, ficamos horas no gabinete de Prudente de Morais, hesitando entre esse volume desigual e outro, Maria Perigosa, que não se elevava nem caía muito. Optei pelo segundo – e, em conseqüência, Marques Rebêlo quis matar-me: gritou, espumou, fez um número excessivo de piruetas ferozes. Defendi-me com três armas: o doutor, a professora, as injeções antiofídicas.

- Ora essa! Discutimos literatura de ficção. Deixemos em paz o Instituto de Butantã.

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Dias da Costa apoiou-me. Prudente de Moraes sustentou Marques. E Peregrino Júnior, transformado em fiel de balança, exigiu quarenta e oito horas para manifestar-se. Escolheu Maria Perigosa – e assim Luís Jardim obteve o prêmio Humberto de Campos em 1938.

Viator desapareceu sem deixar vestígio. Desgostei-me: eu desejava sinceramente

vê-lo crescer, talvez convencer-me de que me havia enganado preterindo-o. Afi- nal os julgamentos são precários – e naquele tínhamos vacilado. Eu, pelo menos, vacilara.

Apesar de ofuscado por Sagarana, o volume despertou admiração de nomes como Mário de Andrade e Monteiro Lobato. Segundo Herman Lima (1963, p.1691-2) este último,

especialmente, “considerava Maria Perigosa um dos grandes livros de contos brasileiros

contemporâneos”.

Mário de Andrade, no texto Pintor contista (1972), entende que em Maria Perigosa subsiste uma aproximação maior entre o contista e o desenhista, do que com o pintor propriamente dito. Isto porque, “o desenho é na realidade mais uma caligrafia, mais um processo hieroglífico de expressar idéias e imagens, se ligando por isso muito estreitamente às artes da palavra, poesia e prosa” (p. 53). Partindo da análise de algumas passagens descritivas dos contos de

Maria Perigosa, chega à conclusão de que o “livro não demonstra instintividades de artista plástico. Em compensação, bem desenhísticamente, Luís Jardim é um ótimo contador” (p. 55). Especialmente no

conto “João Piolho”, Mário pressente uma “delicadeza saxônica e uma ironia condescendentemente

comovida” (p. 57), oriunda provavelmente do seu convívio com os livros de literatura

inglesa. Ressalta ainda que Jardim escreve a partir da “própria bôca do povo”, vindo a

“completar muito bem essa rica literatura de ficção nordestina” (p.56-7).

As ilustrações (Figuras 95 e 96) que Jardim fez para Maria Perigosa foram incluídas na segunda edição de 1959, junto a novos textos, e contribuíram para a sugestão da ambiência nordestina, com sua paisagem árida – mesmo quando exuberante – e seus retratos de tipos populares. Em 2003 a Confraria de Bibliófilos do Brasil reeditou Maria

Perigosa e mais cinco contos de Luís Jardim, com ilustrações do artista plástico

Figuras 95 e 96. Ilustrações de Luís Jardim para Maria Perigosa, de sua autoria.

Por sua peça Isabel do sertão (1959), Jardim recebeu o prêmio Cláudio de Souza conferido pela Academia Brasileira de Letras. Peça em três atos e que sintetiza com forte expressão as misérias decorrentes da seca, concentrando-se no êxodo da família de Isabel; na inocência e bruteza das relações entre homens e mulheres sertanejos; e no fantasma da fome que faz pai e filha comerem a indigesta planta mucunã – ato que os condenam à morte. Tanto o desenho da capa como as ilustrações internas (Figuras 97 e 98), poucos e minúsculos, de punho do autor, atendem ao espírito de concisão do texto. Atuam quase como vinhetas a abrir os atos e a inaugurar as partes. Voltam-se todas para o esboço cenográfico da cena, à paisagem árida do sertão, às árvores destorcidas e desfolhadas, aos rudes xiquexiques e mandacarus, numa alusão gráfica às xilogravuras de cordel.

Figuras 97 e 98. Capa e ilustração de Luís Jardim para Isabel do sertão, de sua autoria.

Na análise de Montenegro (1953), a literatura de Jardim se filia ao memoralismo com toques de abstração. Atesta que o artista-escritor possui um valioso domínio das palavras, mas um certo abstracionismo que o faz se desapegar por vezes do real. Isto se observa, segundo o autor, em algumas passagens de As confissões de meu tio Gonzaga, romance de 1949 para o qual o artista desenhou também a capa, da mesma forma como igualmente o fez para o seu O ajudante de mentiroso, de 1980.

Gilberto Freyre acredita que possa ter contribuído para infundir o gosto pela

autobiografia, não só em Jardim, mas também em José Lins do Rego: “aquele ânimo de „life

history‟ que eu próprio, por mim mesmo, começara a desenvolver como estudante universitário no estrangeiro” (Freyre, 1985, p. 15). O sociólogo entende ainda que se a ficção de Zé Lins é

superior à de Jardim, o mesmo não se pode dizer com relação às produções para criança e aos livros de memórias:

Luís Jardim, em livros para crianças, supera seu notável contemporâneo José Lins do Rêgo, da Velha Totônia, embora no puro setor da ficção especificamente novelística, não se verifique essa superação. Verifica-se, entretanto, não só no setor do livro para crianças como no do específico memorialismo e na sua literatura dramática – em Isabel do Sertão e em O meu pequeno mundo – que Luís Jardim é superior, em expressividade, tanto a Meus Verdes Anos como às memórias de Graciliano Ramos. (Freyre, 1985, p. 15)