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Em Recife, convivendo com as rodas de artistas e intelectuais que se encontravam para conversar dentre outras coisas sobre literatura e as novas tendências estéticas, Jardim pode enfim mergulhar nas discussões e nas variadas práticas artísticas (Figuras 87 e 88). Paralelamente ao trabalho de ilustrador, inicia, na década de vinte, a carreira de pintor, produzindo especialmente paisagens. Em entrevista a Eugênio Gomes (1974, p. xiv), evidenciou a sua trajetória autodidática: “Jamais tive professor de desenho e pintura. Li livros, já homem, sobre técnica, óleo, aquarela, guache, mas descobri cedo que a verdadeira técnica é a prática”.

Revelou também seu fascínio pela paisagem citadina do Recife: “O aspecto antigo, com os casarões bonitos, do Recife, sempre me seduziu, plasticamente, e dele me servi muitas vezes como motivo”.

Figuras 87 e 88. Luís Jardim. Pitando na rede, 1934. Nanquim s/papel, 22 x 13 cm e Cabeça de homem gordo (caricatura), 1940. Lápis s/papel, 22 x 16,1 cm. Col. Mário de Andrade. Instituto de Estudos Brasileiros/USP.

Junto com Joaquim Cardozo, Manoel Bandeira (o pintor) e Augusto Rodrigues organizou sua primeira mostra de artes plásticas e que mal foi registrada pela imprensa local.

É possível ainda que tenha visto em 1930, no Salão Nobre do Teatro Santa Isabel, a importante mostra da “Escola de Paris”, representada por obras de Picasso, Braque, Dufy, Gris, Léger, Miró, Severini, Vlaminck, entre outros, e trazida a Recife e, posteriormente, ao Rio de Janeiro e São Paulo, pelo empenho do também expositor Vicente do Rego Monteiro. Em 1936, por intermédio de Freyre, recebeu o convite da Sociedade Felippe

d‟Oliveira para fazer uma exposição de aquarelas no Rio de Janeiro. Mostra de grande

Em crônica publicada em 09 de julho de 1943 em A Manhã, sobre as aquarelas de Luís Jardim expostas na loja Le Connoisseur, Manuel Bandeira (2009, p. 398) descreve a temática e o frescor nordestino que delas emana:

Palmozinhos de aquarela, de fatura rápida, verdadeiras pochades com toda a frescura e outras graças do gênero – naturezas-mortas, paisagens desoladas do Nordeste, ondulações de colinas pernambucanas com a chaminé do bangüê fumegando nos longes, tipos populares – a rendeira diante de sua almofada de bilros, o carreiro, o menino de engenho a caminho da escola. Para mim, que sou da mesma terra, aquilo tem um encanto indefinível, e logo espetei o meu cartão de visita num amor de bangüê que lá vi. (...) A composição repousante, os coloridos combinados com um bom gosto que raia pelo sibaritismo, um sentimento de nostalgia do rincão (bastante esperto para ficar prudentemente sem lágrimas nem suspiros nos limites do mozarlesco), eis as qualidades que me fazem recomendar estas aquarelas a quem queira possuir uma impressãozinha poética e enternecida do nosso Pernambuco rural.

Embora não tenha investido a fundo na carreira de pintor – a própria aquarela liga- se mais ao desenho do que à pintura – não deixou de chamar a atenção de muitos dos seus

contemporâneos, pela versatilidade artística72 como também em sua época o foram Pedro

Nava, Cornélio Penna, Lúcio Cardoso, Rego Monteiro, conforme atesta Olívio Montenegro (1953, p. 302-3):

Curioso caso o dêste pintor de tanto realismo visual e que possuindo sua técnica de desenho não quisesse fazer desta arte de tão sólida expressão a sua arte única, não quisesse a linguagem mais sensível e ardente das côres para nela somente gravar a sua consciência de artista. Pois, com Luís Jardim, a princípio não foi o verbo, como nas escrituras santas, mas a côr; só depois a côr se faz verbo. Muito conhecida e admirada foi a flama da sua pintura na decoração, em Pôrto Alegre, da grande exposição ali realizada para comemorar o centenário da guerra Far- roupilha. Ninguém então ouvia falar de Luís Jardim escritor. Sabiam os seus íntimos que às vêzes êle procurava prolongar no verso as emoções poéticas do pintor, mas uma coisa tão secreta e silenciosa que mal respirava fora: tinha-se como uma higiene particular do seu espírito – uma maneira comum a todo artista de desafogar-se de certos resíduos emocionais que o exercício de uma só e mesma arte nunca dá para absorver completamente. Mas o pintor que podia desdobrar-se no poeta acaba desdobrando-se no autor de histórias para crianças e de histórias para adultos.

72 Os anos de 1930, 40 e 50 foram marcados pela pluralidade artístico-cultural. Nesse período, além dos

chamados pintores-poetas ou escritores-artistas, havia um diálogo escrito entre pintores, poetas, músicos e intelectuais, praticado através de textos para jornais, catálogos, cartas, etc.

Figura 89. Luís Jardim. Telhados do Recife, 1936. Têmpera s/papel, 25,8 x 42,8 cm. Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.

Figura 90. Luís Jardim. Veleiros de Pernambuco, 1936. Guache s/papel, 20,9 x 29,9 cm. Col.Mário de Andrade. Instituto de Estudos Brasileiros/USP.

Figura 91. Luís Jardim. Casario e ponte, 1936. Guache s/papel, 19,4 x 26,9 cm. Col. Mário de Andrade. Instituto de Estudos Brasileiros/USP.

Os três únicos guaches/têmporas (Figuras 89, 90 e 91) que conseguimos localizar no Museu Nacional de Belas Artes e no Instituto de Estudos Brasileiros/USP datam da década de 1930 e, apesar da figuração tradicional, surpreendem pelo uso inesperado da cor. Nota- se a presença de uma paleta de cores vivas, chapadas, que se dão ao contraste – sem medo – e que remetem ao mar, aos casarios e telhados de Recife. Paisagens estas que apresentam alguma aproximação com certas obras do artista e crítico inglês Roger Fry (Figura 92) do

Bloomsbury Group, formado em torno de Virginia Woolf, e que contava com os pintores

Duncan Grant (Figura 93) e Vanessa Bell. Essa suposição advém não somente do uso luminoso da cor no exercício da paisagem, mas também pela proclamada admiração de Jardim pelos escritos de Fry. Escritos que, inclusive, o ajudaram a estabelecer um posicionamento frente à arte, como é possível observar nesse trecho de “A pintura decorativa de algumas igrejas antigas de Minas”, publicado em 1939, na Revista do

SPHAN:

Há sempre, como assinala Roger Fry, uma verdade ou realidade artística que não está sujeita a interpretações históricas, quaisquer que sejam os pontos de vista

por que se analisem. O fenômeno artístico transcende às normas e às formas estabelecidas, não se esclarece rigorosamente pelas datas, e só tem explicação cabal em si mesmo. Por esse critério, mais amplo e por isso mesmo mais de acordo com a própria arte – livre, independente, expressiva e criadora – a pintura em questão mostra até que ponto chegou entre nós a capacidade de criar: Não se procure na obra de arte outra verdade que não a plástica. (...) Daí resultou, como noutros casos, quasi que uma nova ordem de relações, absurdas para a lógica, mas perfeitamente justas para a arte, a que pouco importa a lei da perspectiva, o império das cores espectrais ou a rigidez das proporções. (Jardim, 1978, p. 211)

Figuras 92 e 93. Roger Fry. River with poplars, cerca de 1912. Óleo s/madeira, 56,5 x 70, 8 cm e Duncan Grant. Landscape, Sussex, 1920. Óleo s/tela, 45,7 x 76,2 cm. Tate Gallery, Londres.

Além destes três originais e dos muitos estudos a cores de ilustrações de livros guardados pela Fundação Rui Barbosa do Rio de Janeiro, encontramos ainda, no livro- catálogo Artistas de Pernambuco (Silva, 1982, s/p.), duas reproduções em preto e branco de uma têmpera intitulada Estudo para mural (publicado na revista Arquivos em nov. de 1942) e de um Retrato de Figura Feminina (Guache s/cartão, 30 x 18 com, Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco). Reproduzidas com qualidade insuficiente para permitir uma apreciação mais objetiva, ambas as imagens apontam para uma composição bastante livre e próxima de um primitivismo geometrizado, com alguma afinidade formal com a obra de Cícero Dias, especialmente notada no Estudo para mural.

Por insuficiência de registros, não há também como determinar, ao certo, como o artista encaminhou a sua atividade pictórica no Rio de Janeiro, uma vez que as informações que pudemos reunir são um tanto quanto dispersas e obscuras.

Na introdução de Região e Tradição, de 1941 (p. 27), Gilberto Freyre, ao discutir a contribuição do “Norte” para renovação das artes brasileiras, além de Cícero Dias e M.

Bandeira e suas pesquisas dos assuntos regionais e tradicionais do Nordeste, faz referência

à Jardim e sobre uma possível ascendência na carreira, graças a “seu gosto pela interpretação e

pela estilização desses mesmos assumptos em que vem se affirmando, com um vigor cada dia mais pessoal

(...)”.

Em sua Pequena história das Artes Plásticas no Brasil, também de 1941, Carlos Rubens inclui tanto o nome de Jardim como o de Santa Rosa no rol dos artistas modernos salientes de então.

Já Clara Ramos (1979, p. 185) chega a mencionar que Jardim teria abandonado a pintura para sobreviver: “Luís Jardim abandonara os pincéis, por necessidade econômica e por

insistência de José Lins concorrera com os maiores nomes da literatura infantil brasileira e os vencera com o

Boi Aruá. E no Humberto de Campos, mais uma vez embolsou os cobres suplementares que o desapertaram”. No pequeno acervo de impressos e recortes de jornais e revistas sobre o artista pertencente à biblioteca do Museu Nacional de Belas Artes encontramos ainda duas pistas valiosas que poderiam atestar continuidade na ação pictórica: um convite para uma exposição de pinturas realizada em 1983 na Sociedade de Cultura Inglesa e uma reportagem do Correio da Manhã, de 01 de agosto de 1965, sobre uma mostra de retratos femininos, como os de Tônia Carreiro, realizada por Jardim.

Enfim, estas parcas anotações sobre o trabalho em pintura do artista pernambucano, fazem-se incompletas e carecem ser aprofundadas em novos estudos. É realmente lastimável não encontrarmos as aquarelas de Jardim, tão exaltadas por Freyre e Bandeira, ou o projeto de decoração do pavilhão pernambucano para a exposição comemorativa do centenário da Guerra da Farroupilha, realizada em 1935, em Porto Alegre, da qual fala Montenegro.