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2.2 A DISTRIBUIÇÃO DA ÁGUA NO PLANETA

2.2.2 A SEGURANÇA HÍDRICA

No princípio do século XXI, os problemas relacionados com as ameaças terroristas sem rosto, os violentos conflitos armados, os arsenais nucleares, o comércio ilícito de material radioactivo, o aumento do tráfico ilegal de armas, entre outros, têm ganho destaque na agenda internacional, em matéria de segurança.

Perante este cenário de incerteza e perigo constantes, em que a tónica está invariavelmente na segurança dos países e dos respectivos interesses económicos, não é difícil esquecer alguns imperativos essenciais de segurança humana, mormente os que têm a ver com a água e o saneamento.

O certo é que nenhum acto terrorista tem o poder de gerar problemas económicos e sociais tão graves, de consequências imprevisíveis à escala global, como os relacionados com a falta de acesso a água potável e a condições adequadas de saneamento. Pode ler-se no Relatório de Desenvolvimento Humano de 2006 da ONU que “morrem mais crianças devido à falta de água potável e de instalações sanitárias

do que por qualquer outra causa. A exclusão do acesso à água potável e ao saneamento básico destrói mais vidas humanas do que qualquer conflito armado ou acção terrorista” (PNUD, 2006: 27).

As ameaças ambientais para a saúde – de entre as quais as relacionadas com a falta de acesso a água potável e a adequadas condições sanitárias – são geralmente classificadas em três grandes grupos: as tradicionais, as modernas e as globais. As questões relacionadas com a água e saneamento são geralmente incluídas nas ameaças tradicionais, embora assumam claramente contornos globais. De entre as ameaças modernas contam-se a contaminação da água, do ar e do solo por agentes contaminantes criados pelo Homem. No rol das ameaças globais estão a redução da camada de ozono, as alterações climáticas, a desflorestação e a desertificação – todas elas intimamente relacionadas com a água.

Continuam a morrer anualmente cerca de 1,8 milhões de crianças em todo o mundo devido à ingestão de água imprópria para consumo humano e a péssimas, ou mesmo totalmente inexistentes, condições de saneamento. Este número impressionante deve fazer-nos pensar mais do que tem feito.

É intolerável para uma sociedade que se deseja dinâmica, próspera e solidária que sejam os seus membros mais vulneráveis (as crianças, os idosos, os mais carenciados) os que mais sofrem com os danos ambientais – para os quais não contribuíram, saliente-se –, e que paguem o preço da incapacidade de todos para proteger a saúde desses perigos ambientais.

O conceito de segurança humana foi introduzido no debate à escala global sobre o desenvolvimento há pouco mais de uma década, em 1994. A ideia tradicional de segurança está habitualmente mais ligada à segurança nacional, estabelecida em torno de ameaças militares e da prossecução de objectivos estratégicos do foro da política externa de países ou de blocos económicos e militares. O alargamento do conceito de segurança à segurança humana teve como objectivo primordial construir uma nova visão de segurança, agora centrada no ser humano, nas suas condições de vida e aspirações.

Do abrangente conceito de segurança humana faz parte integrante a segurança hídrica, aquela que se relaciona com a água. Para a ONU, a “segurança da água consiste em assegurar que cada pessoa disponha de um acesso fiável a água suficiente a um preço acessível para levar uma vida saudável, digna e produtiva, não deixando de manter os sistemas ecológicos que fornecem água e que também dependem da água” (PNUD, 2006: 3).

Nas situações em que o acesso seguro à água é interrompido ou mesmo cancelado, por diversas razões, as populações ficam expostas a sérios riscos em termos da segurança humana, causados pelas deficientes condições sanitárias e pela quebra dos fluxos produtivos, pondo em causa a sua própria sobrevivência. O que hoje podemos constatar é que outros problemas de saúde pública ao nível planetário – como o VIH/SIDA ou a gripe das aves – têm mobilizado os esforços da comunidade internacional de uma forma mais institucional, operante e atempada do que as questões relacionadas com a água e o saneamento. Mas a que se ficará a dever o facto de as respostas à crise global da água e do saneamento não merecerem tanta atenção por parte da comunidade internacional? Apesar da tragédia que se vive em muitos locais do planeta, as respostas continuam a ser fracas, e por vezes atabalhoadas e desconexas. As prioridades são claramente outras.

Uma tentativa de explicação que tem sido aventada para esta situação prende-se com o facto de ao contrário do VIH/SIDA e da gripe das aves, a crise da água e do saneamento representar uma ameaça mais imediata e directa às populações mais carenciadas dos países pobres, populações essas que não têm visibilidade na formação das percepções internacionais em matéria da segurança humana (PNUD, 2006: 3).

A crise da água e do saneamento põe claramente em causa alguns dos princípios mais básicos da justiça social. A ideia da água enquanto “direito humano” básico reflecte justamente todas estas preocupações. Os princípios de justiça social mencionados estão elencados no Relatório do Desenvolvimento Humano 2006 da ONU (PNUD, 2006: 3):

 Cidadania igual

Cada ser humano tem direito a um conjunto igual de direitos civis, políticos e sociais, incluindo o acesso aos meios indispensáveis para os exercer de forma eficaz. A falta de segurança hídrica compromete estes direitos. Uma mulher que ocupa uma grande parte do seu tempo recolher água para a sua família terá certamente uma menor capacidade de intervenção na sociedade, apesar de poder ter direito de voto.

 O mínimo social

O acesso a recursos suficientes para satisfazer as suas necessidades básicas é condição indispensável para que os todos os seres humanos possam ter uma vida digna. Cada pessoa deverá ter direito a 20 litros de água potável por dia.

 Igualdade de oportunidades

A igualdade de oportunidades, questão fulcral para a justiça social, é fortemente condicionada pela falta de segurança hídrica. O acesso à educação é condição essencial para a igualdade de oportunidades. Mas as crianças que se vêem impossibilitadas de frequentar a escola devido às doenças transmitidas por via hídrica não usufruem desse direito.

 Distribuição justa

As vincadas desigualdades existentes em termos do acesso a água potável ou a água para rega viola claramente os critérios de distribuição justa, fundamentalmente quando ligadas aos tragicamente elevados níveis de morte infantil ou de pobreza extrema.

Com o desiderato da redução das desigualdades, o Relatório de Desenvolvimento Humano 2006 da ONU preconiza que os Governos devam assumir como objectivo mínimo um gasto de 1% do PIB para água e saneamento. Lê-se no documento que “lidar com a desigualdade exigirá um compromisso com estratégias de financiamento – incluindo transferências fiscais, subsídios cruzados e outras medidas – que ofereçam às pessoas pobres água e saneamento a um custo acessível” (PNUD, 2006: 8).