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PRINCIPAIS MARCOS INTERNACIONAIS NA GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS

A Gestão da Água e a Nova Cultura da Água

3.2 PRINCIPAIS MARCOS INTERNACIONAIS NA GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS

Por serem aquelas que mais directamente estão relacionadas com as actuais políticas de gestão de recursos hídricos, centraremos a nossa atenção apenas nas iniciativas internacionais ocorridas na parte final do século XX.

Refira-se, desde logo, a histórica e marcante “Carta Europeia da Água”, do Conselho da Europa, promulgada em Estrasburgo a 6 de Maio de 1968, que inclui 12 pontos. No Ponto II pode ler-se “Os recursos de águas doces não são inesgotáveis. É indispensável preservá-los, administrá-los e, se possível, aumentá-los. Em consequência da explosão demográfica e do acréscimo rápido das necessidades da agricultura e da indústria modernas, os recursos hídricos são objecto de uma solicitação crescente. Não se conseguirá satisfazê-la nem elevar os padrões de vida, se cada um de nós não aprender

a considerar a água como um recurso precioso que deve ser preservado e utilizado racionalmente.”. Por seu lado, no Ponto X lê-se “A água é um património comum, cujo valor deve ser reconhecido por todos. Cada um tem o dever de economizar e de a utilizar com cuidado. Cada indivíduo é um consumidor e um utilizador da água. Como tal, é responsável perante os outros. Utilizar a água inconsideradamente é abusar do património natural”.

Só na década de 70 do século XX é que se realizaram as primeiras conferências à escala global ligadas às questões da gestão e planeamento dos recursos hídricos.

A primeira grande iniciativa relacionada com a problemática dos recursos hídricos foi organizada pela Nações Unidas e teve lugar em Mar del Plata (Argentina) em 1977, donde emergiu o chamado “Plano de Acção de Mar del Plata” que sistematizava um conjunto de resoluções e recomendações no âmbito dos recursos hídricos. O tempo viria a provar que se tratava de um documento importante, até pelo seu pioneirismo, mas de difícil aplicação prática. Não obstante se terem verificado mudanças no que diz respeito à utilização dos recursos hídricos, não foi atribuída a urgência necessária à correcção dos problemas identificados.

Na sequência da Conferência de Mar del Plata resultou ainda a decisão de consagrar o decénio seguinte como o “Decénio Internacional de Abastecimento de Água Potável e Saneamento”, cujos resultados também se viriam a revelar insuficientes.

Dentro da mesma linha de orientação, foi lançado em 1987 o “Relatório Brundtland” sobre “O Nosso Futuro Comum”, que viria a ser de extrema importância e que se debruçava essencialmente sobre as relações entre desigualdades, pobreza e problemas ambientais.

A “Declaração de Nova Deli” (1990) vem considerar nomeadamente que as políticas de gestão da água se deverão basear nas bacias hidrográficas.

No ano seguinte, a ONU cria o Secretariado Internacional da Água.

Em 1992 teve lugar em Dublin (Irlanda) a “Conferência Internacional sobre a Água e o Ambiente”, organizada pela ONU, como reunião preparatória da Conferência do Rio de Janeiro, do mesmo ano. O documento final desta conferência salienta a importância da água para a vida, para o desenvolvimento e para o ambiente, estendendo o conceito de

desenvolvimento sustentável aos recursos hídricos. Ressalta a interligação entre utilizadores, planeadores e decisores, bem como considera a água com um “bem económico”. Recordem-se os chamados “Princípios de Dublin”:

 A água doce é um recurso finito e vulnerável, essencial para a manutenção da vida, o desenvolvimento e o ambiente;

 O desenvolvimento e a gestão da água devem assentar numa abordagem participada a todos os níveis, que envolva utilizadores, planeadores e decisores políticos;

 As mulheres desempenham um papel central no abastecimento, gestão e protecção da água;

 A água tem um valor económico nas suas diversas utilizações competitivas e deve ser reconhecida como um bem económico.

Alguns meses depois, realizou-se no Rio de Janeiro a Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, em cujo documento estratégico, a Agenda 21, se consolidava o conceito de desenvolvimento sustentável na gestão dos recursos hídricos, embora centre as atenções na poluição e biodiversidade, em detrimento de outras vertentes. Fixou o ano 2000 como horizonte para o estabelecimento de novas estruturas institucionais e jurídicas para o sector da água, delineadas, apoiadas e financiadas pelo FMI, pelo BM e por diversas instituições financeiras. Estas novas estruturas tenderiam a pressionar os Governos no sentido destes procederem a alterações nos respectivos corpos legislativos como forma de abrir caminho à criação do “mercado da água”. Em 1994, foi criada a Organização Mundial do Comércio (OMC), que veio substituir o Acordo GATT, organização em torno da qual se formariam outras cujo objectivo central era promover a intervenção privada no “mercado da água”, que será referida mais à frente.

A criação do Fórum Mundial da Água, em 1997, possibilitou que no seu seio, os Governos e as grandes empresas transnacionais a operar no sector da água e saneamento pudessem definir estratégias concertadas tendentes à privatização do “mercado da

água”. Entretanto, já tiveram lugar quatro edições do Fórum Mundial da Água, a primeira em Marrocos e as seguintes na Holanda, no Japão e no México.

Apesar de não se poder afirmar taxativamente que os diversos fora tinham esse objectivo declarado, estes têm-se constituído como um instrumento de pressão das multinacionais sobre os Governos.

Em paralelo com estes fora da água, têm-se realizado outros fora alternativos, com grande participação de ONGA, técnicos e cientistas, e que são uma expressão do movimento alterglobalização, e que apresentam uma visão alternativa da problemática. Em 1998, a Comissão de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas adoptou um texto estratégico, intitulado “Abordagens Estratégicas da Gestão da Água Doce” (ONU, 1998), onde se fazia referência aos aspectos técnicos, ecológicos e sócio-económicos da utilização da água, reconhecendo a necessidade de que os utilizadores da água paguem o seu custo real.

A água passaria então, pelo menos aparentemente, para segundo plano nas preocupações ambientais mundiais, apesar das inúmeras conferências internacionais dedicadas, na década de 90, a temas globais (ecologia, alimentação, segurança, aglomerados populacionais, etc.).

Foi necessário esperar até final dessa década para que tivesse lugar outra grande conferência relacionada com os recursos hídricos. O “1º Fórum Mundial da Água” teve lugar em 1997, em Marraquexe (Marrocos). Foi deste fórum que surgiu a chamada “visão mundial da água”, que se pretendia consciencializadora das problemáticas relacionadas com os recursos hídricos e com as soluções a adoptar. Preconizava a integração de todos os stakeholders – Governos, autarquias, entidades gestoras, consumidores (domésticos, agrícolas, industriais, etc. – na definição de políticas de gestão e de metodologias para a implementação e fiscalização das mesmas.

Também no final da década de 90 foi criado o Conselho Mundial da Água (em 1996) e a Comissão Mundial da Água para o Século XXI, que viria a publicar o seu relatório em 2000.

A “visão mundial da água” voltaria a estar na ordem do dia em Março de 2000, aquando da realização do “2º Fórum Mundial da Água”, realizado em Haia (Holanda). Este

evento marcaria o regresso das questões relacionadas com o planeamento e gestão de recursos hídricos ao primeiro plano das preocupações ambientais mundiais e viria a revelar-se como o mais importante desde a conferência de Mar del Plata, decorrida 25 anos antes.

Em Setembro de 2000, decorreu em Nova Iorque (EUA) a Assembleia do Milénio das Nações Unidas, que abordou diversas questões ligadas à água.

No ano de 2000 foi publicado o relatório da Comissão Mundial de Barragens, que vinha juntar-se à grande polémica à volta da construção e operações de grandes barragens e dos benefícios (por ex. económicos) e problemas (por ex. ambientais) decorrentes da sua utilização um pouco por todo o mundo.

No final de 2001, realizou-se em Bona (Alemanha) uma “Conferência Internacional sobre Água Doce”, organizada por iniciativa do Governo alemão e com a colaboração da ONU, que visava preparar recomendações para a “Cimeira Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável”, a realizar no ano seguinte em Joanesburgo (África do Sul). Desta conferência ressaltaria a necessidade de focalizar a acção em três domínios fundamentais:

i. governação, gestão integrada e novas parcerias; ii. mobilização de recursos financeiros;

iii. desenvolvimento de capacidades e transferência de tecnologias.

O ano de 2002 ficaria então marcado pela conferência de Joanesburgo, que tinha como objectivo o estabelecimento de medidas e mecanismos no sentido de actualizar e complementar as tarefas definidas 10 anos antes na conferência do Rio de Janeiro. Esta cimeira foi considerada, pela generalidade dos observadores internacionais, como um fracasso, a que não será alheio a tomada de posição de alguns países na defesa dos seus interesses económicos e industriais (por ex., EUA).

Em 2003, decorreu em Quioto (Japão) o “3º Fórum Mundial da Água”. De entre as conclusões deste Fórum, destaque para a afirmação da necessidade de protecção e conservação de aquíferos e ecossistemas, para as questões relacionadas com a poluição e a gestão da procura de água. Foram tomadas posições que apontam no sentido da

gestão integrada de recursos florestais, agrícolas, hídricos e outros de interesse para a vida no planeta.

Em Setembro de 2003 reuniu-se em Lisboa o World Business Council for Sustainable Development, de que fazem parte grandes empresas mundiais, que apresentou com objectivos centrais fazer chegar a água a 1200 milhões de pessoas e o saneamento básico de habitações a 2400 milhões de pessoas.

Como se pode constatar através da brevíssima revisão, atrás efectuada, muitas foram as ocasiões em que se debateu, a nível local, nacional e internacional, as questões relacionadas com os recursos hídricos. Porém, muito falta ainda fazer para assegurar uma correcta utilização dos recursos hídricos, ao nível da elaboração de políticas de gestão eficazes, bem como de medidas para concretizar a sua aplicação prática e a sua fiscalização.