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Nos debates que ocorrem no meio político institucional brasileiro, a segurança pública também tem obtido grande destaque e suscitado vários discursos, boa parte deles de cunho conservador e mesmo violento. A Câmara Federal, por exemplo, passou a contar, a partir do ano de 2015, com 21 deputados oriundos de diversas corporações policiais do Brasil, sendo cinco deles os mais votados em seus estados. No dia 25 de fevereiro daquele mesmo ano, esses deputados e vários outros relançaram a Frente Parlamentar da Segurança Pública. A

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Concordando com o que Vasconcelos, F. (2014) apresenta no capítulo VI de sua tese, a partir de sua leitura do conceito de saber-poder em Foucault.

Frente é composta por mais de duzentos deputados que, segundo notícia da própria Câmara dos Deputados, tem objetivos definidos: “redução da maioridade penal, a diminuição de benefícios a detentos e a revogação do Estatuto do Desarmamento”(RELANÇADA..., 2015). Nota-se uma articulação por parte desses parlamentares no intuito de modificação e até extinção de certos direitos e políticas sociais. Tudo isso ocorre em nome da segurança pública.

O Brasil é hoje, segundo publicação da Anistia Internacional (2015, p.5), o país com o maior número de homicídios do mundo. Além disso, segundo essa mesma organização, a polícia brasileira alcança a maior taxa de letalidade do mundo inteiro. Diante desta última informação, o deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro, Jair Messias Bolsonaro, membro da citada Frente Parlamentar da Segurança Pública, em uma entrevista, comentou o seguinte: “Eu acho que essa Polícia Militar do Brasil tinha que matar é mais” (ARAÚJO, 2015). Este deputado obteve o maior número de votos no estado do Rio de Janeiro, nas últimas eleições para a Câmara Federal, ocorridas em 2014, e fala em concorrer às eleições presidenciais de 2018, chegando a figurar na segunda colocação em algumas pesquisas de intenção de voto.

Ainda sobre a segurança pública no âmbito político-institucional, há que se registrar a recente mudança na denominação do Ministério da Justiça e Cidadania, que, a partir do dia 3 de fevereiro de 2017, por meio de uma medida provisória, passou a se chamar Ministério da Justiça e Segurança Pública (Medida Provisória no 768, de 2 de fevereiro de 2017). Nada mais emblemático: quando a segurança pública é utilizada como objetivo urgente e prioritário, visando a uma melhor forma de governo da população e não à redução da violência, meios provisórios e extraordinários funcionam como permanentes e a discussão sobre os direitos de cidadania se torna secundária, ou mesmo inexistente.

O fato é que o tema da segurança pública tem afetado profundamente a população brasileira, sendo constantes as reclamações concernentes à insegurança e as reivindicações por ações estatais mais efetivas neste campo.Atualmente,há uma profusão dessas pesquisas de opinião que mostram esse incômodo, entre as quais cabe citar pelo menos duas. A primeira foi realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE, 2013)e interrogava sobre as maiores preocupações do brasileiro, mostrando que a segurança pública foi considerada a segunda área em que o Brasil tem os maiores problemas conforme 39% dos

entrevistados, atrás apenas da saúde pública, maior preocupação (59% da população consultada)46

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A segunda pesquisa de opinião também apresenta dado preocupante, apontando para uma possível mudança das posições da maioria da população: o Instituto Datafolha mostrou, em pesquisa encomendada pelo FBSP (2015), publicada no 9o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, na qual foi perguntado se “bandido bom é bandido morto”, que 50% dos entrevistados concordaram com a afirmação, levando o Instituto a concluir que esse é o pensamento de metade da população brasileira47. Aparece aí, além da preocupação com a

segurança, um novo componente. O desejo de se sentir seguro se mostra superior ao respeito às questões legais. A morte de alguns parece ser colocada como um meio possível para a diminuição da criminalidade e aumento da qualidade de vida.

Essa opinião não é concernente apenas a indivíduos com baixa escolaridade ou das classes mais pobres. Pelo contrário,Gadelha (2012) mostra a virtual participação de acadêmicos, inclusive daqueles que trabalham no campo “do social” em um movimento que, ainda que involuntariamente, desqualifica vidas e dá um testemunho real e assustador de como esse sentimento tem acometido pessoas de várias camadas da população:

é de causar espanto a naturalidade com que estudantes universitários, inclusive alguns que trabalham na ‘área social’, defendem a eliminação pura e simples do que eles chamam de ‘maus elementos’ – leia-se: indivíduos pobres e negros que moram nas favelas e cortiços das grandes cidades. Para esses estudantes, o capitão Nascimento, do filme Tropa de Elite (2007), é a um só tempo o herói e a panaceia para vários dos males que assolam o Brasil. (GADELHA, 2012, p. 66).

Essas concepções tocantes aos assuntos de segurança pública, especialmente quanto ao tratamento a ser dado àqueles chamados “bandidos”, que atingem uma parte dos indivíduos da população, são determinadas por práticas discursivas e não discursivas, culminando em ações cotidianas que ocorrem nos mais diversos espaços urbanos e rurais do país.A questão dos linchamentos ilustra bem esse diagnóstico. O Brasil é um dos países que mais lincham pessoas em todo o mundo. Segundo Martins (2015, p.11), “nos últimos 60 anos, cerca de um milhão de brasileiros já participou de, pelo menos, um ato de linchamento ou de tentativa de linchamento”. O autor, partindo da afirmação de que estes atos crescem numericamente à medida em que a aumenta a insegurança em relação à proteção que a sociedade deve receber do Estado,faz um diagnóstico das transformações que vêm ocorrendo

46A pesquisa foi realizada pelo IBOPE entre os dias 23 de novembro e 02 de dezembro de 2013 e contou com

15.414 entrevistas em 727 municípios brasileiros.

atualmente no imaginário e na subjetividade dos indivíduos da população brasileira, mostrando que a morte de alguns já é uma realidade aceita como natural, quiçá salutar, para parte desses indivíduos. Para ele,

O veto da censura da consciência social ao justiçamento praticado pela multidão foi aparentemente levantado e sua prática está sendo incorporada como um fato natural na vida rotineira da sociedade, a justiça da rua disputando autoridade com a justiça dos tribunais. Esse número também confirma que o linchamento é hoje um componente da realidade social e vem perdendo sua eventual caracterização como fato anômalo e excepcional. (MARTINS, 2015, p. 12).

Como exemplo que ilustra a afirmação de Martins, cito dois casos de linchamentos ocorridos no ano de 2014, e que repercutiram bastante nos meios de comunicação. No primeiro deles, ocorrido no dia 31 de janeiro, um adolescente de 17 anos, que supostamente cometia crimes no bairro do Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro, foi capturado, agredido a pauladas e acorrentado nu a um poste por um grupo autodenominado “Justiceiros”48(BRITO, 2014). Neste caso específico, já aparece a ação pedagógica da

mídia,justificando o linchamento ao mesmo tempo em que demonizando a vítima e criando conceitos que serão utilizados e “compartilhados” por milhares de pessoas nas redes sociais. Poucos dias depois, em4 de fevereiro, a ação foi considerada “compreensível”, em um extenso comentário feito, em rede nacional e horário nobre, pela jornalista mais famosa de uma grande empresa de televisão, conhecida por suas posições identificadas com o campo político da direita conservadora. Ainda que o Sindicato de Jornalistas do mesmo município em que ocorreu o linchamento tenha se manifestado “radicalmente contra a grave violação de direitos humanos e ao Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros representada pelas declarações da âncora” (SINDICATO DOS JORNALISTAS PROFISSIONAIS DO RIO DE JANEIRO, 2014), notou-se que parte da população apoiou a posição da jornalista, passando a usar termos e expressões empregados por ela em seu editorial de opinião49

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Em setembro do mesmo ano de 2014, quatro integrantes, de um grupo de aproximadamente 20 homens, foram presos e denunciados pelos crimes de cárcere privado, lesão corporal e formação de quadrilha. Eles costumavam “patrulhar” as ruas de bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro, como Flamengo e Copacabana, para “vingar” os crimes de roubo cometidos naquela região. Segundo a peça da denúncia do Ministério Público, os quatro rapazes “se associaram com outros indivíduos, com objetivo específico de praticar crimes movidos por um sentimento de ‘vingança privada’, posto que entendiam que não estavam sendo devidamente protegidos pelas autoridades estatais” (GRUPO..., 2014).

49 Reproduzo aqui, na íntegra, o comentário da jornalista Rachel Sheherazade, feito no dia 4 de fevereiro de 2014

no Jornal do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT): “É, o marginalzinho amarrado ao poste era tão inocente que, ao invés de prestar queixa contra seus agressores, preferiu fugir antes que ele mesmo acabasse preso. É que a ficha do sujeito está mais suja do que pau de galinheiro. No país que ostenta incríveis 26 assassinatos a cada 100 mil habitantes, que arquiva mais de 80% de inquéritos de homicídios e sofre de violência endêmica, a atitude dos vingadores é até compreensível. O Estado é omisso, a polícia desmoralizada, a justiça é falha. O que é que resta ao cidadão de bem que ainda por cima foi desarmado? Se defender, é claro! O contra-ataque

O segundo caso de linchamento ocorreu no dia 3 de maio de 2014, na cidade de Guarujá, no litoral paulista. Uma mulher de 33 anos foi amarrada, espancada e arrastada pelas ruas por um grupo de moradores do bairro Morrinhos. Toda a agressão foi registrada em vídeo, posteriormente divulgado nas redes sociais. O caso ocorreu depois da divulgação, nas redes sociais da Internet, de uma foto da vítima, como se a mesma fosse suspeita de realizar sequestros de crianças na cidade. Tratava-se de um boato. (MULHER..., 2015).

Não pretendo me aprofundar na questão dos linchamentos, como fez Martins (2015), mas considero importante destacar que o crescimento desse tipo de ocorrência no Brasil parece demonstrar uma operação de mudança na subjetividade dos indivíduos do corpo social. Segundo esse autor, “a partir de certo momento da ditadura militar até hoje, os linchamentos vêm constituindo uma peculiar e crescente forma de violência coletiva” (p. 45). Ele levanta uma suspeita sobre uma das possíveis origens dos linchamentos, associando-os à difusão de ideias que, ao longo do tempo, perduram no imaginário da população. Para ele, não seria salutar deixar de “considerar a hipótese de que os esquadrões da morte contribuíram para difundir a ideia da legitimidade da punição extralegal de crimes em relação aos quais as autoridades são lentas e complacentes” (p.50). Tais ideias e afetos podem ter sido produzidos nos indivíduos da população, segundo o autor, com a participação desses grupos, em uma espécie de efeito pedagógico. Além disso, ressalta, esses linchamentos não são simplesmente o resultado de um desejo de aplicação da pena de morte, como interpretam alguns “setores autoritários da opinião pública” e a classe média urbana (p. 51). Esse fenômeno deveria ser interpretado, acima de tudo, como “a proclamação da vontade de justiça, de não ser vítima inerte do roubo, do estupro, do assassinato, do pouco caso” (p. 51). Em todo caso, isso denota que há deliberadamente um abandono dessas vidas das classes mais pobres por parte dos governos, que simplesmente as deixam morrer, não sem antes utilizar o próprio fato dos linchamentos como notícia, como demonstração da necessidade de uma melhor gestão da segurança pública e como apoio à aplicação de penas mais duras, e até mesmo da pena capital.

aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite. E aos defensores dos direitos humanos que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil, adote um bandido!”. Cabe ressaltar que o referido vídeo, apenas na versão do Canal da Direita (2014a, 2014b), conta com 432.545 visualizações no YouTube e 4.369 compartilhamentos no Facebook (consulta em 15 de setembro de 2017), bem como que a expressão “adote um bandido!” se disseminou definitivamente nas redes sociais, após o referido acontecimento midiático.

2.4 A produção de subjetividades policialescas pelo empresariamento da segurança