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É possível iniciar a discussão sobre a teoria do capital humano por várias entradas, tais como o mundo do trabalho, do comportamento humano ou mesmo ao tratar da participação dos indivíduos como recursos intelectuais produtivos, ou seja, como ativos, na formação da renda de um Estado ou nação. Neste trabalho, sigo pensando sobre sua influência no campo da segurança pública, a partir de uma citação da Matriz curricular nacional para ações formativas dos profissionais da área de segurança pública, publicada pela

SENASP(2014). Tal entrada permite discutir como esta teoria resolve problemas e dilemas da atividade policial, visto que, como explica Foucault (2008b), traz sua principal inovação na forma como compreende o trabalho humano. O documento da SENASP, ao tratar da estratégia de formação dos policiais, afirma o seguinte:

É cada vez mais necessário pensar a intencionalidade das atividades formativas, pois o investimento no capital humano e a valorização profissional tornam-se imprescindíveis para atender as demandas, superar os desafios existentes e contribuir para a efetividade das organizações de segurança pública. (BRASIL, 2014, p. 17, grifo nosso).

Outro ponto pouco problematizado,pelo qual se faz necessário compreender a influência desta teoria, é justamente o trabalho policial. Há quem afirme, especialmente em certo campo de esquerda – talvez partidário de alguma corrente do marxismo126

–, que policiais não são trabalhadores “por não produzirem nada” ou por serem apenas “agentes opressores do Estado”. A teoria do capital humano, ao partir de outro ponto de vista, que não o da economia clássica, para explicar o trabalho e o trabalhador, acaba trazendo contribuições importantes neste debate.

A teoria do capital humano pode ser considerada a grande contribuição neoliberal introduzida primeiramente no pensamento econômico, mas que também teve grande impacto nas Ciências Humanas, do comportamento e, por fim, em todo o pensamento contemporâneo, modificando-o de maneira decisiva. Segundo Lopez-Ruiz (2007), ela nasce da necessidade de repensar as teorias clássicas para explicar a abundância dos países centrais após a Segunda Guerra Mundial. Para ele,

Esquematicamente, se os fatores originários da produção definidos pela economia clássica eram a terra, o capital e o trabalho, a soma do incremento experimentado em cada um deles durante esses anos não dava conta da totalidade do crescimento econômico registrado no mesmo período. (LOPEZ-RUIZ, 2007, p. 184).

Se os fatores clássicos de produção de riqueza – terra, capital e trabalho – não davam conta de fornecer as respostas para o crescimento desses países, novos fatores tinham de ser acrescidos. É aí que entra certo “conjunto de capacidades, destrezas e talentos” (LOPEZ-RUIZ, 2007, p. 183) dos indivíduos de uma população, como elemento de produção de riqueza de uma sociedade, ou seja, como capital. Desta forma, a teoria do capital humano explicava o crescimento da economia ao mesmo tempo em que apontava a forma de promover o desenvolvimento econômico, como prossegue Lopez-Ruiz (2007).

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Foucault (2008b, p. 304), afirma que os “neoliberais praticamente não discutem nunca com Marx, por razões que talvez possamos ver como sendo as do esnobismo econômico”.

Esse “conjunto” que forma o capital humano, embora também possa ter elementos inatos, é fruto de aplicação de recursos, com vistas à geração de rendimentos. O primeiro efeito, portanto, é a consideração da educação como esse investimento com promessa futura. Entretanto, como acrescenta Costa, R. (2011, p. 87) “outros fatores como a saúde, a atenção familiar, por exemplo, também influem na forma de aquisição de conhecimentos e aptidões dos indivíduos”. Foucault (2008b) utiliza alguns exemplos, como as relações de afeto entre mãe e filho, e o casamento. Todos esses fatores, aos quais poderia ser acrescentado o conhecimento, ou a preocupação com a própria segurança, passam a ser interpretados como investimentos em capital humano. Como esse capital tem também elementos inatos, o patrimônio genético passa a ser capitalizado, sendo considerado implícito não apenas no cálculo para escolha de um parceiro ou parceira para reproduzir, mas com uma análise, ainda por fazer, que cruza esse patrimônio biológico com o próprio capital humano, podendo dar ensejo, no futuro, a uma nova eugenia, com verniz econômico.

O que vale ressaltar é que a acumulação de capital humano, tal como o lucro de uma empresa, deve tender ao crescimento e, para que isso ocorra, depende da alocação de tempo, esforço, dinheiro, entre outros recursos. A renda se encontra nos salários recebidos, ou melhor, produzidos pelos sujeitos detentores do capital humano. Daí a grande mudança nas teorias clássicas sobre o trabalho, bem como o encaixe da pergunta dessa microeconomia neoliberal, ligada ao comportamento humano, a quem interessa “que cálculo fez que, dados certos recursos raros, um indivíduo ou indivíduos tenham decidido atribuí-los a este fim e não àquele”, como explica Foucault (2008b, p. 307).

O problema fundamental, essencial, em todo caso primeiro, que se colocará a partir do momento em que se pretenderá fazer a análise do trabalho em termos econômicos será saber como quem trabalha utiliza os recursos de que dispõe. Ou seja, será necessário, para introduzir o trabalho no campo da análise econômica, situar-se do ponto de vista de quem trabalha; será preciso estudar o trabalho como conduta econômica praticada, aplicada, racionalizada, calculada por quem trabalha. (FOUCAULT, 2008b, p. 307).

Se o autor das ideias que deram origem à teoria do capital humano não é consenso127, o certo é que o desenvolvimento desta teoria, realizado pelos economistas da

Escola de Chicago128,ocasionou transformações no próprio conceito de homem com o qual se

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Talvez o mais antigo texto em que o conceito de capital humano aparece seja o artigo de Jacob Mincer, de 1958, intitulado Investiment in human capital and personal income distribution, originalmente publicado em

The Journal of Political Economy (vol. 66, ago. 1958, p. 281-302). Esse artigo é qualificado por Theodore

W. Schultz, em 1971, como pioneeringpaper. Ver Foucault (2008b, p. 304, 324).

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Gadelha (2009, p. 145) explica que: “Originalmente, o termo ‘Escola de Chicago’ surgiu na década de 1950, aludindo às ideias de alguns professores que, sob influência do paradigma econômico neoclássico e sob a

opera no capitalismo neoliberal, dentro de um esquema geral de interpretação do mundo social sob um viés economicista. Esta nova concepção também é a base da compreensão que será aplicada às novas políticas criminais e de segurança pública. Para Gary Becker, grande referência para a interpretação econômica de um comportamento considerado criminoso, esta ideia não está isolada, mas compõe um universo teórico muito maior. Nesse universo, o indivíduo faz cálculos para tomar suas decisões e aplicar seus recursos. É essa a racionalidade do homo oeconomicus neoliberal, do empresário de si mesmo,que faz investimentos em seu próprio capital,calculando o custo e o benefício de suas ações. Esta é a chave de explicação para a tomada de decisão pelos atos que são classificados como crime.