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Em 17 de março de 1976, Foucault ministrou a última aula do curso Em defesa da

sociedade (2002). Ocorrida entre o lançamento do livro Vigiar e punir (fevereiro de 1975) e o

primeiro volume de sua História da sexualidade, chamado de A vontade de saber (outubro de 1976), nela Foucault trazia novos e importantes elementos para a análise de nossas sociedades ocidentais. A partir deste intervalo, pode-se dizer que o tema da biopolítica e o olhar sobre suas formas de exercício de poder estaria posto em discussão de forma mais marcante.

É importante, entretanto, tomar o cuidado de não apontar data específica para a emergência do conceito de biopolítica, buscando uma origem única. Gadelha (2009) explica que a problemática que envolve esse conceito não é apresentada de uma vez por todas, desenvolvida e acabada, em um único momento ou em uma mesma obra de Foucault, sendo possível localizar traços desse conceito em diversas obras do autor. No entanto, há um adensamento das teorizações feitas pelo pensador sobre o tema em um determinado interstício de tempo:

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Na narrativa bíblica, o apóstolo Pedro faz sua confissão sobre quem seria Jesus, afirmando ser ele o Cristo. Tal momento está descrito nos evangelhos de Mateus 16:13-20, Marcos 8: 27-30 e Lucas 9:18-20 da Bíblia cristã. Posteriormente, durante o martírio do seu mestre, o mesmo discípulo nega por três vezes conhecê-lo, arrependendo-se depois e sendo considerado, até os dias atuais, o primeiro papa da Igreja Católica Apostólica Romana. Já o apóstolo Judas decide colaborar com as autoridades romanas que procuravam Jesus, vendendo a informação sobre sua localização e ajudando a identificá-lo, por 30 moedas.

Em torno do período que se estende de 1974 a 1979, por vias diversas e complementares, o problema da biopolítica vai se delineando, assumindo diferentes contornos, maior complexidade e importância nas pesquisas empreendidas por Michel Foucault. (GADELHA, 2009, p. 81).

Feita a ressalva, volto à aula do curso de 1976. Nela, o filósofo se dedica a iniciar uma genealogia da noção de biopolítica, definindo-a, inicialmente, a partir de uma transformação que ocorre no velho direito de soberania, no século XIX58. Foucault não fala de

uma mera substituição desse direito, mas do acréscimo de um novo direito que o vem completar: “O direito de soberania é, portanto, o de fazer morrer ou de deixar viver. E depois, este novo direito é que se instala: o direito de fazer viver e de deixar morrer” (FOUCAULT, 2002, p. 287). O poder de soberania, categoria fundamental da teoria política clássica, tinha como característica o direito de vida e de morte sobre os súditos. Esse direito do soberano não se manifestava igualmente sobre a vida e a morte, pois o “efeito do poder soberano sobre a vida só se exerce a partir do momento em que o soberano pode matar” (FOUCAULT, 2002, p. 287). A vida do súdito poderia ser tirada pelo monarca a qualquer momento. O poder do soberano poderia ser simbolizado por sua espada mortal, nesse contexto. Era um poder de deixar viver, mas principalmente de fazer morrer quando fosse necessário demonstrar tal poder.

Essa ênfase no poder soberano, aos poucos, dá espaço a outras formas de exercício de poder, que o complementam e o transformam. O foco, a partir de agora, será o controle e a gestão da vida. Em A vontade de saber, Foucault (1990, p. 130) afirma: “Pode-se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte”, resumindo bem a mudança, que demandará novos mecanismos e técnicas que serão ainda detalhadas.

Marcada a diferença existente entre o poder soberano e a biopolítica, é importante, neste ponto, recuperar as distinções feitas por Foucault entre a biopolítica e outra tecnologia de poder, que é a disciplina ou poder disciplinar. Também aqui não podemos falar de uma mera substituição das disciplinas pela biopolítica, mas de duas formas complementares de poder sobre a vida, portanto componentes do biopoder, formas estas que “não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois pólos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações” (FOUCAULT, 1990, p. 131). Em ambas as tecnologias, trata-se do poder sobre a vida, exercido sobre diferentes aspectos. As disciplinas, com sua ênfase nos investimentos sobre o corpo individual, o “corpo-máquina”, caracterizando uma “anátomo-

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Já em A vontade de saber, Foucault (1990, p. 131) situa a formação da biopolítica por volta da segunda metade do século XVIII.

política do corpo humano” (FOUCAULT, 1990, p. 131). A biopolítica, por sua vez, tem como foco o corpo-espécie da população e trata principalmente da vida sob seus aspectos biológicos. É uma tecnologia de poder cujas preocupações e problemas que se colocam são os fenômenos relacionados à vida das populações a serem governadas. A ênfase não está mais no fazer viver o corpo individual, mas na própria vida da espécie humana, entendida como um conjunto, uma massa de indivíduos vivos, o corpo vivo da população. Neste sentido, o poder deverá, em relação a esta população, “qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, mais do que se manifestar em seu fausto mortífero” (FOUCAULT, 1990, p. 135). A preocupação com os fenômenos globais dos indivíduos, especialmente aqueles considerados indefinidos e incertos, cuja organização em série se faz necessária, começa a aparecer já aí, dando causa ao nascimento de novos mecanismos de controle. Essa era a nova questão colocada para a arte de governar as populações no contexto das sociedades liberais da Europa59, cujo modelo

disciplinar entra em crise60 – questão que se estende até os dias de hoje, até mesmo no

contexto brasileiro, com as devidas adaptações.

Delineadas as diferenças entre cada tecnologia de poder e seus recursos específicos, é possível partir para uma definição de biopolítica, a qual será central para compreender os problemas levantados por este trabalho. Segundo Foucault (2002), ela pode ser definida como

uma tecnologia que agrupa os efeitos de massas próprios de uma população, que procura controlar a série de eventos fortuitos que podem ocorrer numa massa viva; uma tecnologia que procura controlar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso em compensar seus efeitos. (FOUCAULT, 2002, p. 297).

Uma vez que os problemas que afetam a população são da ordem do coletivo, do aleatório e do imprevisível, serão exatamente eles que o governo biopolítico vai tentar analisar, controlar, fazer prognósticos e mesmo intervir, produzindo saberes para tais finalidades. Servirão de instrumentos para esse objetivo os saberes e as técnicas que procuram dar conta desses dados flutuantes da população, descrevê-los e utilizá-los em técnicas de manejo da população.Entre esses saberes está a demografia – ciência que tem entre as suas

59 Segundo Lemke (2014, p. 110), “é a partir do liberalismo, e não antes, que emerge a questão de como devem

ser governadas as pessoas legais e os seres vivos”.

60 Em uma entrevista concedida em 1978, no Japão, chamada de “A sociedade disciplinar em crise”, Foucault

(2010, p. 268) afirmava claramente a mudança da sociedade industrial de seu tempo, em relação ao modelo de uma sociedade disciplinar. Ele chega a fazer um prognóstico e afirmar que é “evidente que devemos nos separar, no futuro, da sociedade de disciplina de hoje”, indicando, de certa forma, a emergência de uma

preocupações as taxas de natalidade, mortalidade, migrações e longevidade –, ea estatística61,

ciência utilizada inicialmente pelo Estado, como indica seu nome, como meio de organização de eventos aleatórios em séries, com vistas ao domínio sobre os fatos, por meio de estimativas e cálculos prognósticos.

Há vários outros saberes utilizados em uma gestão biopolítica da população, entre eles a segurança pública. Aqui, particularmente, destaco a intercessão que se dá no uso da estatística no campo da segurança pública ou, conforme a sua designação considerada mais adequada, na análise estatística criminal. Carvalho Jr. (2011), que também foi consultor da SSPDS na área de estatística62, fala sobre a importância do uso desse saber para uma política

de intervenção sobre uma população:

A informação sobre violência e criminalidade é fundamental para o avanço no entendimento dos seus determinantes e para o desenvolvimento de políticas e intervenções que atenuem os seus fatores deletérios. Como discutir criminalidade e violência, se sequer sabemos precisamente quantos crimes ocorrem em uma região? Como discutir formas de combate à criminalidade se não sabemos quando, quanto, quais e onde ocorrem os diferentes tipos de delitos? (CARVALHO JR., 2011, p. 228-229).

O conjunto formado por esses saberes, em suma, constitui um tipo de dispositivo

de segurança, que se estabelece para regular, normalizar e, enfim, governar melhor esta

sociedade disciplinar em crise. Em Segurança, território, população, Foucault (2008c), segundo Gadelha (2009, p. 119),inclina-se “a ampliar a compreensão da biopolítica, reinscrevendo-a numa questão mais ampla, a da arte de governar”. Mas o que, exatamente, pode-se entender por segurança? É a pergunta que faz Foucault (2008c, p. 6), em sua aula de 11 de janeiro 1978. A resposta encontrada por ele é um modelo de três faces: uma lei penal, na forma de proibição, um sistema de vigilância com vistas à prevenção e coerção e, por último, o dispositivo de segurança, ou seja, o conjunto de cálculos e saberes acerca das taxas de criminalidade, no qual se destacam as séries estatísticas. De maneira bastante didática, o autor diferencia soberania, disciplina e segurança, relacionando as três tecnologias ao modo e objeto de atuação de cada uma:

Podemos dizer, à primeira vista, e de uma maneira um tanto quanto esquemática: a soberania se exerce nos limites de um território, a disciplina se exerce sobre o corpo dos indivíduos e, por fim, a segurança se exerce sobre o conjunto de uma população. (FOUCAULT, 2008c, p. 15-16).

61 Para Dieter (2013, p. 46, grifos do autor), “a incorporação da ciência estatística pelos órgãos governamentais

sinaliza o nascimento da biopolítica, conforme significado foucaultiano”.

Ao tratar do conceito de segurança, Foucault (2008c) utilizou o exemplo de um simples roubo, para mostrar como esse fenômeno será analisado e cuidado em uma gestão própria da segurança. Neste caso, o ato não será tomado apenas como uma violação a um preceito legal cuja lei comina uma pena, que é o “mecanismo legal ou jurídico” de tratamento do fato, próprio da soberania. Também não será visto apenas pelo olhar disciplinar, que cuida da figura do sujeito culpado por meio de uma série de saberes e técnicas “que são do domínio da vigilância, do diagnóstico, da eventual transformação dos indivíduos” (FOUCAULT 2008c, p. 8). Sob o domínio da segurança, as questões agora serão as seguintes:

inserir o fenômeno em questão, a saber, o roubo, numa série de acontecimentos prováveis. Em segundo lugar, as reações do poder ante esse fenômeno vão ser inseridas num cálculo que é um cálculo de custo. Enfim, em terceiro lugar, em vez de instaurar uma divisão binária entre o permitido e o proibido, vai-se fixar de um lado uma média considerada ótima e, depois, estabelecer os limites do aceitável, além dos quais a coisa não deve ir. É portanto toda uma outra distribuição das coisas e dos mecanismos que assim se esboça. (FOUCAULT, 2008c, p. 9).

A segurança, neste contexto, pode ser definida como um conjunto de saberes, cálculos e intervenções, que visa à administração das vidas como fato biológico, mas também das condutas, delituosas ou não, dos indivíduos de uma população, com vistas a melhor governá-los. No governo liberal, as pessoas devem se considerar livres e, por isso mesmo, sujeitas às regulamentações e procedimentos de gestão dessa liberdade. Neste tipo de governo, não ocorre apenas o controle dos desvios e crimes por meio do aparato policial e judiciário, mas também uma série de modulações relativas às subjetividades dos indivíduos, nas quais o medo é utilizado como elemento da governamentalidade, visando à condução das condutas dos governados, que devem aceitar e executar voluntariamente os comandos dos mecanismos de segurança, em nome da própria liberdade.

No Brasil, como disse anteriormente, é possível identificar de traços de uma biopolítica a partir do século XIX, ainda no período imperial. A criação da Divisão da Guarda Real de Polícia, em 13 de maio de 1809, pode também ser vista como um passo na direção de um maior controle e uma efetiva regulação da população, tendo em vista que suas preocupações não eram apenas com a criminalidade, mas também com aspectos urbanísticos, de trânsito e de organização das atividades econômicas da nova sede do Império Português. Os motivos pelos quais a polícia foi criada, expressos no decreto imperial, mostram claramente o objetivo de que ela funcionasse como um dispositivo de segurança, em uma racionalidade biopolítica:

Sendo de absoluta necessidade prover a segurança e a tranquilidade pública desta cidade, cuja população e tráfico têm crescido consideravelmente e se aumentará

todos os dias pela influência de negócios, inseparável das grandes capitais, [...]

sou servido de criar uma Divisão da Guarda Real de Polícia desta Corte, com possível semelhança daquela que com tão reconhecidas vantagens estabeleci em Lisboa [...]. (BRASIL, 1809, p. 54, grifo nosso).

A compreensão das políticas de segurança pública como parte das estratégias de gestão das vidas permite ver como os planos de segurança que se generalizam no Brasil já há algumas décadas, com foco no controle estatístico rigoroso de vidas “salvas” e “perdidas”, configuram de forma inequívoca uma biopolítica. Neste tipo de política, a taxa de homicídios é um dos principais dados levados em consideração e, por isso mesmo, em constante avaliação. Esse fato ocorre especialmente porque as vítimas de mortes violentas no Brasil são,prioritariamente, homens em idade considerada “produtiva”, ou seja, em condições de trabalhar. Durante coletiva de imprensa realizada por ocasião do lançamento do Atlas da Violência de 201663, pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas do Governo Federal

(IPEA), o técnico de planejamento e pesquisa, Daniel Cerqueira, ao comentar o fato de que 46,4% dos homens que são mortos por homicídios estão na faixa etária de 15 a 29 anos, afirmou que “as mortes apresentam consequências na produtividade futura do país em geração de renda” (TAXA..., 2016), chamando a atenção para preocupação do Estado com a implicação econômica do crescimento do número de homicídios. Evidencia-se, portanto, que o governo biopolítico, ao visar ao controle sobre a vida, possui motivações econômicas e é fundamental ao capitalismo.