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A segurança pública brasileira em tempos de biopolítica: fazer viver é deixar morrer!

Entender os resultados concretos de uma “biopolítica à brasileira”, seus efeitos sobre os indivíduos da população, e no campo da segurança pública, exige o conhecimento de outras investigações realizadas por pesquisadores brasileiros.Passo agora a alguma dessas análises já realizadas sobre as relações entre biopolítica, seus mecanismos de segurança e as práticas concretas de policiamento e segurança pública que ocorrem no Brasil.

Ao pensar a sociedade brasileira, especialmente a população urbana e sua relação com o medo e a (in)segurança pública, Souza, M. (2008) criou o termo fobópole, cunhado a partir dos vocábulos gregos phóbos, que significa medo, e pólis, que designa cidade. Para além da origem etimológica, o autor define assim o conceito que criou:

Penso que a palavra condensa aquilo que tento qualificar como cidades nas quais o medo e a percepção do crescente risco, do ângulo da segurança pública, assumem uma posição cada vez mais proeminente nas conversas, nos noticiários da grande imprensa etc., o que se relaciona, complexamente, com vários fenômenos de tipo defensivo, preventivo ou repressor, levados a efeito pelo Estado ou pela sociedade civil – o que tem claras implicações em matéria de desenvolvimento urbano e democracia (lato sensu). (SOUZA, M., 2008, p. 9, grifo do autor).

104 O nome oficial do pacote de leis, aprovado em 26 de outubro de 2001, logo após os atentados ao World Trade Center e ao Pentágono, em 11 de setembro do mesmo ano, é Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act – USA PATRIOT ACT.

Embora o termo fobópole possa ser aplicado a qualquer cidade do mundo cujo medo da criminalidade violenta seja uma característica marcante, para Souza, M. (2008, p. 9), “as grandes metrópoles brasileiras podem ser vistas como ‘laboratórios’ privilegiados a esse respeito, a começar pelas suas duas metrópoles nacionais, São Paulo e Rio de Janeiro”. Essa característica de laboratório privilegiado tem a ver com as peculiaridades do Brasil, “um incrivelmente heterogêneo e contraditório ‘país subdesenvolvido industrializado’, nem tipicamente periférico nem muito menos central” (SOUZA, M., 2008, p. 21), o que exige algo além da simples absorção dos conceitos criados por escritores europeus. É necessário torcer e moldar, quando necessário, as palavras que designam o estado das coisas neste país. Isto inclui o conceito de biopolítica.

Em sua tese de doutorado, intitulada Estado de exceção e vida nua: violência

policial em Porto Alegre entre os anos de 1960 e 1990, Rosa (2007), ao comentar as relações

entre o conceito foucaultiano de biopolítica e os escritos de Agamben, afirma: “se antigamente o soberano detinha o poder de ‘deixar morrer’ e ‘fazer viver’, no estado de exceção, ‘fazer viver’ mais do que nunca é, também, ‘deixar morrer’” (ROSA, 2007, p. 2). Em suas considerações finais, ao pensar sobre os assassinatos cometidos pela instituição policial em Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, ela afirma algo sobre seu objeto de estudo, que, ao mesmo tempo, traz uma importante contribuição para o pensamento das relações entre biopolítica e o modelo de segurança pública brasileiro. Para ela, aqueles que morreram por ação da polícia são:

Vidas descartáveis no ordenamento biopolítico do estado de exceção em que a polícia, entrelaçada à política, é atualmente o rosto mais apropriado do biopoder. Vidas que se podem ‘deixar morrer’ num país onde a polícia exerce cotidianamente o direito soberano de decidir a vida e a morte da vida nua. (ROSA, 2007, p. 205- 206).

Na mesma linha de pensamento, o delegado da polícia civil do Rio de Janeiro e pesquisador Orlando Zaccone (2015), que analisou a forma jurídica do que chamou de “política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro”, também tratou do problema da biopolítica no campo da segurança pública brasileira a partir de um diálogo entre os escritos de Foucault e Agamben. Ele afirma, como uma de suas principais hipóteses, o fato de que “existe uma política pública, na forma de razões de Estado, a ensejar os altos índices de letalidade do sistema penal brasileiro.” (ZACCONE, 2015, p. 24). Assinalando que “no interior da ordem jurídica, surge violenta e congruente a função assassina do Estado: fazer viver é deixar morrer”, Zaccone (2015, p. 97) marca, junto com Rosa (2007), uma atualização no famoso brocardo biopolítico enunciado por Foucault. Contudo, tal atualização não

contradiz o filósofo francês, pois o mesmo já afirmara em seus escritos que “jamais as guerras foram tão sangrentas como a partir do século XIX e nunca, guardadas as proporções, os regimes haviam, até então, praticados tais holocaustos em suas populações” (FOUCAULT, 1990, p. 128-129). Esses assassinatos são realizados agora em nome do corpo social, em defesa da sociedade, como efeito colateral de uma eficiente política empresarial de segurança pública. São pessoas matáveis deixadas, pelos próprios mecanismos de segurança e aparelhos policiais do Estado, para morrer. Foucault (1990, p.129) já resumia bem esta questão, da seguinte forma:

se o genocídio é, de fato, o sonho dos poderes modernos, não é por uma volta, atualmente, ao velho direito de matar; mas é porque o poder se situa e exerce ao nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos maciços de população.

A segurança pública, colocada como valor fundamental acima dos demais direitos sociais, reforça a tendência de expansão do Estado policial que está contido no Estado de Direito. Como resultado prático das políticas de segurança, sob o mote da “guerra ao crime”, “guerra às drogas” ou “combate à criminalidade”, o exército passa a funcionar cada vez mais como polícia – tanto ao nível global como local – e a polícia se militariza para agir de modo semelhante a um exército.

O efeito disso é também pedagógico para policiais e para os indivíduos das populações, visto que estes passam a considerar cada vez mais um fato normal a militarização da segurança pública, que é o auge da gestão policial da vida social.Um dos virtuais resultados, no Brasil,dessas permanências autoritárias oriundas do período de ditadura militar, especialmente no campo da segurança pública, é, como adverte Soares Júnior (2010, p. 104), que “a sociedade brasileira irá regredir de sua condição democrática e a Polícia deixará de ser polícia para ser uma força de ocupação, um grupo armado ou uma milícia”. Esse efeito ocorre por meio da militarização das políticas de segurança que tem impactos “insalubres para a democracia”105, uma vez que aumenta exageradamente a confiança nos militares para a

execução “eficiente” das políticas públicas, em detrimento dos agentes civis.

Essa militarização do território ocasionada pelas políticas de segurança pública encontra uma calorosa recepção pelo empresariado que atua nos mercados. Um exemplo é o caso das UPP no Rio de Janeiro, instaladas nas favelas cariocas a partir do ano de 2008. Sob a denominação do policiamento comunitário, destacamentos da PM ocuparam permanentemente espaços no interior das favelas, sendo a primeira delas instaladas no morro

Santa Marta, no bairro de Botafogo. Não é possível afirmar que houve aí um intencional conluio entre o Estado e os grandes empresários do setor da construção civil. Entretanto, uma publicação especializada desse setor traz informações, oriundas do Sindicato Patronal dos Construtores da Habitação do Rio de Janeiro (Secovi-Rio)106,mostrando que uma das

consequências da ocupação militar das UPP’s foi o aumento do valor dos imóveis no mercado, o que se traduziu em lucro aos investidores:

Um levantamento feito pelo Secovi-Rio mostra que, entre abril de 2006 e dezembro de 2008, a valorização dos apartamentos de dois quartos no Botafogo foi de apenas 24,95%, enquanto de 2008 a agosto de 2011 os preços subiram 105,32% e chegaram à média de R$ 676 mil. Com o sucesso da primeira experiência, a pacificação seguiu por outras comunidades da zona Sul, sempre com efeitos positivos sobre os preços dos imóveis ao redor, principalmente nas ruas mais próximas à favela. O Secovi acompanhou as primeiras ocupações e calculou uma valorização média de 30% a 40% nos bairros vizinhos. (REIS, 2012).

Mas não foi apenas no mercado imobiliário que a militarização da segurança brasileira caminhou ao lado do empresariamento. Quando Graham (2016), ao falar do “novo urbanismo militar”, apresenta o conceito de “efeito bumerangue” – com base em uma passagem do curso de Foucault, chamado de Em defesa da sociedade107

–, ele se refere à capacidade dos países centrais de utilizarem tecnologias militares experimentais, em suas ações de intervenção em países periféricos, para posteriormente aplicá-las em ações de guerra contemporânea no seu próprio território,justamente nas chamadas ações de polícia:

O novo urbanismo militar se alimenta de experiências com estilos de objetivos e tecnologia em zonas de guerra coloniais, como Gaza ou Bagdá, ou operações de segurança em eventos esportivos ou cúpulas políticas internacionais. Essas operações funcionam como um teste para a tecnologia e as técnicas a serem vendidas pelos prósperos mercados de segurança nacional ao redor do mundo. Por processos de imitação, modelos explicitamente coloniais de pacificação, militarização e controle, aperfeiçoados nas ruas do Sul do globo, se espalham pelas cidades dos centros capitalistas do Norte. (GRAHAM, 2016, p. 30).

106

O nome oficial é Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis e dos Condomínios Residenciais e Comerciais do Rio de Janeiro. Ver: <https://www.secovirio.com.br/quem- somos/>

107 O conceito de “efeito bumerangue”, extraído por Graham (2016) de uma passagem da aula de Foucault do dia

4 de fevereiro, no curso de 1976, não foi traduzido nesses termos na edição brasileira que disponho. Nesta versão, tem-se a seguinte passagem: “Nunca se deve esquecer que a colonização, com suas técnicas e armas políticas e jurídicas, transportou, claro, modelos europeus para outros continentes, mas que ela teve numerosas repercussões sobre os mecanismos de poder no Ocidente, sobre os aparelhos, instituições e técnicas de poder. Houve toda uma série de modelos coloniais que foram trazidos para o Ocidente e que fez com que o Ocidente pudesse praticar também em si mesmo algo como uma colonização, um colonialismo interno” (FOUCAULT, 2002, p. 120-121). Já a mesma passagem, citada por Graham (2016, p. 21, grifos nossos), afirma que “enquanto a colonização, com suas técnicas e suas armas políticas e jurídicas, obviamente transportou modelos europeus para outros continentes, ela também teve um considerável efeito

O Brasil, como se sabe, não pode ser considerado exatamente um país central. Entretanto, é possível observar não apenas o efeito bumerangue dessas políticas militarizadas de segurança, mas também a utilização desse efeito pelo empresariamento. O fato pode ser descrito a partir da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH) e de sua relação com a implantação das UPP’s. Segundo o Ministério da Defesa, “o Brasil sempre comandou o componente militar da Missão (2004-2017), que teve a participação de tropas de outros 15 países”, além da Força Aérea e da Marinha. O maior contingente foi sempre o brasileiro. Com tal ação, segundo Mathias, Campos e Santos (2016, p. 129, tradução minha), o governo queria “reafirmar sua capacidade de negociação para demonstrar aos setores internacionais que é um líder confiável na região americana” (p. 129)108. Essa estratégia

começou no governo Lula e teve continuidade no governo Dilma Rousseff, sendo um dos braços da política militar desses dois presidentes, ao lado das UPP’s109. Ainda segundo os

autores, considerando que a missão no Haiti se dava em um ambiente urbano e as próprias forças armadas, antes de seguirem para aquele país, fizeram treinamento com as polícias militares, “passou-se a utilizar um discurso no qual o Haiti poderia funcionar como um laboratório para o treinamento dos militares no território brasileiro” (p. 131)110. Desta forma,

uma ação militar das forças armadas em país estrangeiro serviu, ao mesmo tempo, para afirmar a relevância regional do Brasil nas Américas, bem como para treinar efetivos para as ações nos morros e favelas do Rio de Janeiro, como resume Gombata (2014):

Apesar de os conflitos terem motivações diferentes – enquanto as favelas do Rio são disputadas por narcotraficantes, as de Porto Príncipe são rivalizadas por grupos de tendências políticas opostas – há quem diga que entender a realidade de uma cidade ajudou na busca por soluções dos problemas da outra. A experiência que o Brasil adquiriu no Haiti, defendem especialistas, contribuiu diretamente para o know how que originou em 2008 as chamadas Unidade de Polícia Pacificadora (UPPs).

A captura das ações militarizadas de segurança pelo empresariamento veio em seguida. Em 2016 foi anunciada a criação da primeira empresa nacional de segurança militar

108 “reafirmar su capacidad de negociación para demostrar a los sectores internacionales que es un líder confiable

en la región americana”.

109 Também se pode citar megaeventos como a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de

2016 como parte dessa estratégia de reconhecimento internacional do Brasil, mas que, ao final, culminou com uma maior militarização da segurança pública, especificamente nas periferias e favelas do estado do Rio de Janeiro. Cocco (2014, p. 21) destaca que “os megaeventos, conquistados pelo prestígio internacional dos governos Lula, são usados contra os pobres”.

110

“Se pasó así a utilizar un discurso en el que Haití podría funcionar como un laboratorio para el entrenamiento de los militares en el territorio brasileño”.

privada, concebida para atuar no exterior. Os serviços prestados por essa empresa são resumidos em sua página na Internet111

, da seguinte forma:

Nosso negócio é oferecer assessoramento, treinamento e apoio operacional altamente especializado a governos, embaixadas, organizações internacionais, organizações não governamentais e empresas multinacionais que atuam em ambientes operacionais complexos, ou seja, com real ou potencial existência de instabilidade, crise ou conflito armado.

O fato a ser ressaltado é que o fundador e diretor-presidente dessa empresa, um general de brigada do Exército Brasileiro, apresenta no seu currículo as funções que desempenhou: tanto esteve no Haiti, participando da MINUSTAH, como também foi “o primeiro Comandante da Força de Pacificação do complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro – RJ”. Isso demonstra que, na lógica do empresariamento da segurança pública, a militarização e a violência são utilizadas sempre que consideradas necessárias, ao mesmo tempo em que aquelas atividades próprias do Estado, que não podem ser privatizadas passam a seguir a lógica da gestão empresarial. Ao final das contas, as ações da polícia e do Exército se confundem cada vez mais; da mesma forma, as fronteiras entre o público e o privado, Estado e mercado, corporações policiais e empresas, tornam-se borradas e imprecisas, visto que até os indivíduos passam a se conduzirem como microempresas.