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Em Nascimento da Biopolítica, curso ministrado em 1979, Foucault (2008b), após descrever os modelos de liberalismo alemão (ordoliberalismo), francês e estadunidense, diferenciando-os entre si, concentra-se em problematizar o tipo de(neo)liberalismo que se desenvolveu nos Estados Unidos, principalmente a partir da década de 1960, deixando claro que este se apresenta, desde o início de sua história, não apenas como um modelo político- econômico ou como uma discussão secundária em relação a temas como a independência, a unidade da nação, ou o direito. Muito além disso, para Foucault (2008b, p. 301), ele é “toda uma forma de ser e de pensar”. Desta forma, o neoliberalismo norte-americano não se constitui apenas como mais uma alternativa política,

Mas digamos que é espécie de reivindicação global, multiforme, ambígua, com ancoragem à direita e à esquerda. É também uma espécie de foco utópico sempre reativado. É também um método de pensamento, uma grade de análise econômica e sociológica. (FOUCAULT, 2008b, p. 301).

Foucault (2008b)explica que não se trata apenas de mais um modelo político- econômico de governo, mas de um estilo de vida e de pensamento que se pretende universal. Neste novo modelo, a economia é vista não mais como em sua forma liberal clássica, resumida por Foucault (2008b, p. 306) como o “estudo dos mecanismos de produção, dos mecanismos de troca e dos fatos de consumo no interior de uma estrutura social dada, com as interferências desses três mecanismos”. Na abordagem neoliberal, cabe à economia a interpretação de fenômenos que não eram originalmente considerados econômicos. Assim, o objeto de análise nesta nova economia política passa a ser “propriamente a sociedade, as relações sociais, as sociabilidades, os comportamentos dos indivíduos etc.”, como afirma Gadelha (2009, p. 144), ou seja, o próprio comportamento humano e sua racionalidade, o que significa compreender “qual cálculo fez que, dados certos recursos raros, um indivíduo ou indivíduos tenham decidido atribuí-los a este fim e não àquele” (FOUCAULT, 2008b, p. 307). Isso significa alterar toda a interpretação liberal clássica sobre o trabalho: “será preciso estudar o trabalho como conduta econômica, como conduta econômica praticada, racionalizada, calculada por quem trabalha”, continua Foucault (2008b, p. 307).

Esse tipo de racionalidade econômica e sua análise – de cálculo constante da relação custo/benefício – que também implica uma série de políticas de subjetivação, será estendido a todas as outras esferas do comportamento humano, inclusive, a da conduta criminosa. Essa abordagem, em última instância, culmina no movimento que Gadelha (2009, p. 143) explica ter ocorrido no desenvolver dessa governamentalidade neoliberal:

Determinados valores econômicos, à medida que migraram da economia para outros domínios da vida social, disseminando-se socialmente, ganharam um forte poder normativo, instituindo processos e políticas de subjetivação que vêm transformando sujeitos de direito em indivíduos microempresas – empreendedores.

Foucault toma dois elementos que mostram, ao mesmo tempo, métodos de análise e tipos de programação emblemáticos nessa concepção: a teoria do capital humano e o programa da análise da criminalidade e da delinquência. Estes dois campos de estudos, que servem de objeto para Foucault, estão intrinsecamente ligados –como detalho adiante.

É importante discutir essas teorias de cunho neoliberal porque, ao contrário do que se possa pensar, elas não estão distantes da realidade brasileira. Pelo contrário, vê-se que seus modos de pensar e produzir subjetividades, interpretar a realidade, criticar e programar políticas públicas estão em franca ascendência no Brasil. O curioso a se observar é que tais discursos neoliberais – a exemplo do discurso da eficiência e da eficácia na gestão – acabam se tornando atraentes e encontram ressonância nas reivindicações de diversos setores do

pensamento político identificados, seja como de esquerda, seja como de direita, justamente por ocuparem as lacunas existentes na reflexão feita por esses setores e se apresentarem como globais, científicos e neutros.

Dieter (2013, p. 30) afirma que a implementação da agenda neoliberal na administração pública brasileira é um processo complexo que introduz nela valores da lógica privada de mercado. Segundo ele, tal acontecimento “remete inevitavelmente à Emenda Constitucional no 19 de 04/06/1998, que insere o princípio da eficiência da administração

pública no Artigo 37 da Constituição da República de 1988”.Embora este marco jurídico seja

importante, percebe-se que a mudança na lei apenas positivou o processo que já estava em curso bem antes, desde a década de 1980, no campo das novas teorias e doutrinas neoliberais aplicadas às diversas áreas de atuação do Estado, percolando, de modo que me interessa especialmente neste trabalho, o campo da educação122 e das políticas de segurança pública.

Para Santos (2006), esse processo se consolida nos anos de 1990, quando os partidários de tais ideias assumem o comando do poder executivo federal:

Na última década do século XX o Brasil passou a ser governado por uma equipe de políticos e burocratas largamente comprometidos com a versão fundamentalista da tese de que o Estado é o principal responsável por toda sorte de deficiências socioeconômicas e, por simetria dogmática, de que uma política permissiva em relação às instituições do mercado seria a terapêutica adequada àqueles males. (SANTOS, 2006, p. 27).

Mais recentemente, a partir dos anos 2000, houve substancial ganho de força, por parte de um grupo de pesquisadores, na interpretação das questões referentes à criminalidade. Eles traziam ideias diferentes da simples e irrefletida repressão policial, mas, ao mesmo tempo, distanciavam-se das abordagens reconhecidas como progressistas, as quais eram pensadas como solução para conter a violência. Estas ideias tradicionais “de esquerda” para a segurança pública poderiam ser resumidas utilizando as palavras de Rolim (2006, p. 18-19), que as cita como aquela “opção preferencial em favor de políticas sociais que reduzam as desigualdades e as injustiças sociais”. Essas ideias se constituíram, ainda segundo Rolim, em uma simples e enviesada maneira de dizer que “nada de significativo poderá ser feito em segurança pública enquanto as injustiças sociais não forem superadas”. Sapori e Soares (2015, p. 8) também colocam a questão de forma semelhante, afirmando que a explicação tradicional

122 Sobre a influência das ideias neoliberais no campo da educação, vale registrar as palavras de Saviani (2007, p.

426), para quem as ideias pedagógicas, no contexto brasileiro a partir da década de 1980 sofrem uma grande mudança de direção: “passa-se a assumir no próprio discurso o fracasso da escola pública, justificando sua decadência como algo inerente à incapacidade do Estado de gerir o bem comum. Com isso se advoga, também no âmbito da educação, a primazia da iniciativa privada regida pelas leis do mercado”.

da criminalidade, utilizando a pobreza e as desigualdades sociais como causas, não deriva de pesquisas criteriosas, mas de “cacoetes teóricos e metodológicos”. O diagnóstico brasileiro no campo da segurança pública, em que os dois autores tentam demonstrar a inconsistência entre determinadas teorias e a realidade brasileira, é o seguinte:

O Brasil está se tornando mais violento ao mesmo tempo em que melhoram as condições de vida da população, particularmente de seus segmentos mais pobres, uma tendência documentada, presente desde 1994, com o controle da inflação, reforçado pelas políticas sociais implementadas nos anos 2000 e pelo crescimento econômico experimentado entre 2004 e 2011. (SAPORI; SOARES, 2015, p. 8). De fato, após os 13 anos de governo petista, houve melhoria substancial da maioria dos indicadores sociais brasileiros – pobreza, coeficiente de Gini123

, IDH, empregos,etc. (MARIANI; LUPION; ALMEIDA, 2016), mas as taxas de criminalidade não diminuíram, antes, ao contrário do que se acreditava, aumentaram vertiginosamente. Ou seja, as narrativas criminológicas tradicionais da esquerda visando à explicação do crime e do criminoso começaram a enfraquecer. Por outro lado – é importante deixar claro desde já –, as teorias mais conservadoras da direita também não tiveram eficácia comprovada, a exemplo do aumento do número de policiais e de prisões, defendido por alguns grupos com tal orientação política, como solução para o problema. Tanto a quantidade de prisões quanto o contingente policial no Brasil foram crescentes no mesmo período citado124 e, da mesma forma, não

redundaram em efetiva diminuição das taxas de criminalidade.

Esses fatos parecem ter incentivado pesquisadores, tanto à direita quanto à esquerda, a pesquisar novos referenciais teóricos e explicações para o fenômeno do crime no campo da economia, cedendo à já velha tentativa de, buscando maior efeito de verdade, matematizar os fenômenos125 e, a partir daí, realizarem a crítica e a avaliação dos programas

de segurança pública, apresentando soluções supostamente mais eficientes para o problema.Mendonça e Cerqueira (2014), por exemplo, apesar de reconhecerem que a

123

O coeficiente ou índice de Gini é uma forma de medição criada pelo estatístico italiano Corrado Gini, comumente utilizada para aferir a desigualdade na distribuição de renda entre a população de um determinado local, variando de uma escala de zero, que seria a igualdade perfeita entre os salários ou rendimentos, a um, que designaria a total desigualdade, quando apenas uma pessoa teria toda a renda e os demais nada teriam.

124 Quanto aos números absolutos da população carcerária e a taxa de encarceramento – equivalente à quantidade

de presos a cada 100 mil habitantes – utilizo aqui os dados disponibilizados pelo International Center for

Prison Studies – ICPS ([2017?]), que publica o World Prison Brief. Segundo esse documento, o Brasil tinha

uma população carcerária de 239.345 pessoas em 2002, e chegou, em 2014, a 622.202 presos. A taxa de encarceramento era, em 2002, de 133 por cada 100 mil habitantes, chegando a 307 em 2014.

125A tentação de matematizar fenômenos sociais, com intuito de conferir às Ciências Humanas um status de

cientificidade não é nova, sendo um movimento típico dos anos 70 do século passado. Como exemplo, podemos citar, no campo da Geografia, a corrente teorético-quantitativa, certo tipo de Behaviorismo, na Psicologia, e em vários outros saberes das Humanidades.

literatura existente no campo da criminologia tem como ponto consensual o fato de que o crime é um “fenômeno complexo, com causas multidimensionais”, acabam fazendo opção pela explicação econômica, pois, segundo eles, os trabalhos desenvolvidos sob essa perspectiva “têm contribuído para mudar o tom do debate das políticas públicas, que passou a incorporar um maior quociente de racionalidade” (MENDONÇA; CERQUEIRA, 2014, p. 588). Há muitos outros pesquisadores seguindo este mesmo caminho. Compreender as atualizações e mutações do pensamento neoliberal e suas virtuais implicações, especialmente no Brasil, é, portanto, uma tarefa ainda a ser desempenhada pelos intelectuais que pensam a segurança pública por um viés crítico ou progressista.

Explicações econômicas para o fenômeno do crime e do criminoso já estão presentes nos discursos de muitos autores brasileiros, bem como em alguns institutos oficiais de pesquisa econômica, que vêm funcionando como verdadeiros think tanks dessas teorias. Dentre eles, é possível citar pelo menos dois: o IPEA, uma fundação pública ligada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, do governo federal, e o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará(IPECE), uma autarquia vinculada à Secretaria do Planejamento e Gestão do Estado do Ceará. Ambos possuem publicações sobre segurança pública em que fazem referência a análises com fundamentação na economia.

Os acadêmicos envolvidos com a teoria econômica do crime ocupam variadas posições no campo político ideológico. Alguns parecem identificados com um pensamento mais à direita, e outros, com um mais à esquerda; entretanto,a maioria utiliza, basicamente, os estudos dos economistas da Escola de Chicago como referência, especialmente aqueles do estadunidense e ganhador do prêmio Nobel de Economia em 1992, Gary Stanley Becker. Este, com outros autores, tem como principal contribuição ao pensamento econômico a extensão de certo modo economicista de pensar ao campo do comportamento humano, o que conduz à teoria do capital humano.