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MI 3. Semântica e Semiótica

3.2. A semântica da arquitetura

Uma análise da semântica da arquitetura implica em localizar precisamente sua relação com a linguística, ou seja, estabelecer o paralelo entre o discurso arquitetônico e o discurso linguístico. "A conjectura modernista da necessidade do tempo na arquitetura guarda semelhança com o conceito de arquitetura como escrita (numa visão ortodoxa): um objeto com significado inscrito que requer tempo para ser lido."101

Atualmente encaramos a arquitetura diferentemente, ou seja, enquanto discurso. Seu significado depende não só da intenção que é passível de inscrever-se, mas da interpretação do usuário, sua experiência acumulada, seu ponto de vista no momento da fruição. O significado é revelado dinamicamente, enquanto evento. Recorremos novamente à correspondência apresentada por Muntañola:102

Lugar Linguagem

Arquitetura Língua

Desenhos Escrita

Habitar (agir/apreciar) Falar (falar/ouvir)

Construir/compor fonologia/fonética

Conforme nos propôs Muntañola, a arquitetura é entendida como a língua, o código estabelecido, e 'habitar' é entendido enquanto o discurso, a fala.

"Uma ponte, o hall de um aeroporto, um estádio ou uma central elétrica são construções, não habitações; uma estação ou uma auto-estrada, uma barragem, um mercado estão no mesmo caso. No entanto, essas construções entram no domínio de nossa habitação, domínio que excede

101"The modernist conjecture of the necessity of time in architecture resembled the concept of

architecture as an writing (in the ortodox view): an object with meaning inscribed which requires time to be read." CABRAL FILHO, José dos Santos. Formal games and interactive design. Tese de PhD - Sheffield University, England, UK, 1996. pág. 17

102THORNBERG, J. Muntañola. Topogénesis tres - ensayo sobre la significación en arquitectura.

Barcelona: Oikos-Tau Ediciones, 1980. pág. 116

Lugar Lenguaje

Arquitectura Lengua

Diseño Escritura

Habitar (actuar/contemplar) Hablar (hablar/escuchar)

essas construções e que tampouco se limita à morada.(...) Habitar [é] (...) o fim que preside qualquer construção."103

Estamos considerando a arquitetura enquanto evento, ou seja um discurso com duração, um acontecimento. O que estamos chamando arquitetura é também o que Muntañola e Heidegger chamam 'Habitar', que depende da relação espaço tempo e da interação do usuário - a dimensão comportamental.

Se considerássemos a arquitetura em sua relação de autoria, enquanto projeto do arquiteto que é construído, não como 'habitar', estaríamos considerando-a uma inscrição, no tempo e no espaço. Neste caso a arquitetura seria a escrita e o arquiteto seu autor. Ricoeur considera a possibilidade da "autonomia semântica"104 neste caso, onde não seria

considerado o discurso do arquiteto, mas o significado implícito na obra, por ser a obra a inscrição, e não o que fala ou escreve o seu autor.

"Hoje sabemos, que o texto não é uma sequência de palavras que veicula um único sentido 'teológico' (a 'mensagem' de um Autor-Deus), mas um espaço multidimensional, no qual uma variedade de escrituras, nenhuma delas original, se combina e se choca. [Barthes] nos incitou, com algum efeito, que estudássemos os textos e não os autores."105

Não desconsideramos a necessidade da 'autonomia semântica' da arquitetura sob a luz da relação arquiteto/intenção/obra. Porém nosso estudo foca a arquitetura não como o produto do arquiteto, mas como o evento de habitar. O que nos interessa registrar não é a intenção do autor, mas a intenção da obra, ou seja, o que está expresso na obra, que pode ser fruído, vivido fenomenologicamente, o que é experienciável enquanto evento/significação, sentido/referência. Aqui não nos interessa a 'autonomia semântica', interessa que a arquitetura

103HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. In: CHOAY, Françoise. O urbanismo: utopias e

realidades - uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 1979. pág. 346.

104"autonomia semântica (…)resulta da desconexão da intenção mental do autor relativamente ao

significado [da obra] (...)" RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de

significação. Lisboa: Edições 70, 1987. pág. 41.

105CULLER, Jonathan. As Idéias de Barthes. São Paulo: Cultrix: Editora da Universidade de São

'fale', sendo habitada, e não que seja inscrita, apenas projetada e construída. São duas relações de referências diferentes. Nosso objetivo é registrar a arquitetura enquanto discurso, enquanto evento, enquanto 'habitar'.

Para uma análise semântica adequada da arquitetura devemos esclarecer ainda a relação entre significante e significado. A diferença que Ricoeur faz entre semiótica e semântica, que foi apontada na seção anterior, nos desperta para o fato do reducionismo do signo na sua relação interna, sem referência externa. Na verdade, observamos tal reducionismo como uma tendência geral nas aplicações semióticas. Porém se tomarmos este cuidado, os conceitos da semiótica nos servirão paralelamente à semântica de Ricoeur. Entendemos melhor a preocupação de Ricoeur em separar a semiótica da semântica quando Broadbent levanta a possibilidade de analisar semioticamente um edifício segundo a relação significante/significado.106 A princípio

Broadbent considera um edifício como significante e a abstração que ele propicia quando apreendido é considerada seu significado. Se consideramos essa proposta conforme nossa tricotomia significante/significado/interpretante, teremos então a seguinte relação:

interpretante significante

edifício

significado conceito abstrato

Mas Broadbent também levanta a hipótese de que essa idéia pode ser uma simplificação excessiva, e propõe o inverso. "Suponhamos por exemplo que o significante fosse um conceito abstrato e que o edifício fosse seu significado."107

Teríamos então:

106BROADBENT, Geoffrey. El Significado en la arquitectura. In: JENCKS, Charles & BAIRD,

George. El Significado en arquitectura. [Traduzido por Tereza Muñoz]. Madrid: H. Blume, 1975. págs. 59-60.

107BROADBENT, Geoffrey. El Significado en la arquitectura. In: JENCKS, Charles & BAIRD,

George. El Significado en arquitectura. [Traduzido por Tereza Muñoz]. Madrid: H. Blume, 1975. pág. 60.

interpretante significante

conceito abstrato

significado edifício

Ora, não nos parece possível esta relação, visto que o interpretante não tem acesso ao que seria o significante sem o edifício. O que o interpretante vê é o edifício, o significante, cujo significado pode ser denotativo ou conotativo, porém só tem como significar a partir do edifício enquanto significante. O que Ricoeur nos alerta quanto à semiótica é a atenção aos signos em suas relações internas, o que permite a inversão proposta por Broadbent. Porém, se considerarmos a relação entre significante e significado à luz dos conceitos de evento e referência, possivelmente evitaríamos o equívoco apontado acima, quando da presença de um mesmo interpretante. Na proposta de Broadbent o interpretante não é o mesmo, ou seja, no primeiro caso, quando o edifício é significante e o conceito abstrato é seu significado, o interpretante é um observador qualquer, que vê o edifício e faz a conexão. No segundo caso, quando o significante - o que aparece para ser interpretado e ganhar significado - é uma idéia abstrata, o interpretante é o próprio arquiteto, que dá significado à idéia projetando o edifício, e não um observador qualquer, sem que o edifício seja sua referência enquanto significante.

observador arquiteto significante edifício significado abstração significante idéia significado edifício A referência, o contexto em que os conceitos são colocados é de extrema importância para que não cometamos enganos como sugerimos no segundo exemplo. Tomando esse cuidado, a análise semântica proposta por Ricoeur se aproxima muito da aplicação dos conceitos da semiótica.

Contudo, a relação significante/significado não é tão simples como acabamos de exemplificar. Enquanto discurso, a arquitetura tem um sentido explícito e um sentido implícito, é denotativa e conotativa simultaneamente. O sentido denotativo é o que o observador interpreta na relação direta significante/significado, quando da presença do edifício. Mas esse sentido denotativo é também um significante conotativo, que induz a um significado conotativo, e automaticamente um sentido conotativo, que consideramos num nível de interpretação mais profunda, como sentido simbólico. Barthes ilustra essa relação através de seu mapa do funcionamento dos signos108 (fig. 8):

1. Significante 2. Significado 3. signo denotativo

4. SIGNIFICANTE CONOTATIVO 5. SIGNIFICADO CONOTATIVO