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MI 4. Representação e Simulação

4.1. A representação da arquitetura

4.1.3. O limite da representação

Podemos estabelecer o limite da representação na descrição poética, capaz de revelar uma 'verdade' que não a exatidão e a precisão científica. Uma descrição poética pode evocar muito mais sensações que qualquer imagem de um lugar, mas não podemos deixar de considerar que tais sensações não estão diretamente relacionadas a uma realidade, elas fazem parte de um mundo imaginário compartilhado entre quem descreveu e quem lê a descrição. As sensações ou emoções propiciadas pela descrição evocam uma imagem que nunca será vista, que só reside na imaginação. A descrição poética permite que o mundo comece a ser revelado, embora não permita que se apreenda sua totalidade. Mesmo quando consideramos sua capacidade de simular, não é possível que se compreenda a totalidade, não há como interagir de fato com tal descrição. Por mais que nossa imaginação seja capaz de captar o sentido implícito numa descrição poética, jamais seremos capazes de vivenciar

155"(...)challenging representation in a radical way, since representation is the crucial element in the

establishement of the 'perspectival paradigm' in the architectural field." CABRAL FILHO, José dos Santos. Formal games and interactive design. Tese de PhD - Sheffield University, England, UK, 1996. pág. 34.

156Ver CABRAL FILHO, José dos Santos. Formal games and interactive design. Tese de PhD -

Sheffield University, England, UK, 1996; e também ALEXANDER, Christopher. Un Lenguage de

patrones: ciudades, edificios, construciones. [Traduzido por Justo C. Beramedi]. Barcelona: Gustavo Gili, 1980.

a 'verdade' da arquitetura através de tal descrição, por ser a representação de um único ponto de vista.

Assim como na representação perspectívica, na descrição poética, o 'olhar' de quem descreve está presente na descrição, não sendo passível de autonomia. O observador, leitor, jamais interpreta livremente o mundo a partir de uma descrição, sua percepção é direcionada e influenciada pela percepção do autor. A 'verdade' da descrição pode ser desvelada numa leitura, mas não a 'verdade' do mundo. "Na escrita há a separação da significação relativamente ao evento."157 A descrição poética é uma inscrição que enfatiza

o 'sentido' e a 'significação', porém não traz as características de evento e referência, por ser uma entre as interpretações possíveis, e não o discurso da arquitetura, mas a inscrição de um discurso de um ponto de vista. Embora aproxime o observador da arquitetura, é ainda um fragmento, não pretende ser a arquitetura, mas sim um olhar.

Para Paul Ricoeur o texto poético não é descritivo nem ostensivo, não traz referência de tempo nem de espaço, mas é capaz de dizer de nosso ser-no-mundo como os outros textos não são.

"O apagamento da referência ostensiva e descritiva liberta um poder de referência para aspectos do nosso ser-no-mundo que não se podem dizer de um modo descritivo direto, mas só por alusão, graças aos valores das expressões metafóricas e, em geral, simbólicas."158

Ainda que consideremos que a descrição poética seja alusiva e não uma descrição objetiva - permitindo a interação do leitor com o objeto através dos "afetos"159 que são comuns na

157RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa:

Edições 70, 1987. pág. 37.

158Ibdem. pág. 48.

159O conceito de 'afeto' ou 'afecto' foi primeiramente desenvolvido por Gilles Deleuze e Félix

Guattari e posteriormente vem sendo empregado nos estudos da virtualidade. 'Afeto' é definido como uma sensação que não é mais apenas um sentimento ou afeição, mas como "(...)seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido." Considera-se como característica da arte a capacidade de 'conservar', isso diante da sensação de um sentimento, de uma afeição, permite que esse sentimento ou afeição seja conservado, tornando-se assim um 'afeto'. O 'afeto' seria assim independente de seu modelo, aquilo que está inscrito na obra poética e que basta que se volte a

descrição do autor e na leitura - assim como a representação a descrição poética é limitada, não permitindo a interação do leitor com a totalidade do objeto. Mesmo que permita uma interação bastante rica no nível do imaginário, ainda assim essa interação encontra um limite que é estabelecido pelo filtro, ou interpretação primeira, do 'olhar' de quem descreveu, recontextualizando o objeto. Segundo a citação de Pérez-Gómez, no primeiro capítulo,

"[n]ós 'entendemos' Paris por simplesmente pisar fora do trem, e compreendemos a absurdidade de expressar julgamentos 'estéticos' sobre edifícios depois de 'descontextualizá-los', como se eles pudessem realmente existir enquanto objetos, destituídos de qualquer contexto."160

A descrição poética, embora evoque sentimentos, permitindo, de certa forma, uma interação entre o observador e o objeto, também reduz a totalidade da arquitetura, por ser uma dentre suas possíveis interpretações, que quando 'sistematizada' pela descrição, recontextualizando o objeto arquitetônico, desconsidera a necessidade da presença da totalidade para a existência do objeto arquitetônico.

Numa descrição poética não há a presença da totalidade da arquitetura para que possamos interpretar-lhe as 'différances', ou seja, não existe nada presente além da descrição e o sentido que fica em suspenso jamais será esclarecido por não ser possível uma complementação além do que se encontra na descrição. A 'verdade' da arquitetura começa a ser 'desvelada' pela fruição de sua descrição, porém esbarra em diversas possibilidades de interpretação que não lhe permitem seu desvelamento, senão a dúvida. Essa dúvida é que situa a descrição poética na 'zona limite ou devir' da representação com a simulação. A arquitetura faz- página e leia de novo, e a sensação será então repetida. DELEUZE, Gilles. & GUATTARI, Felix. O

que é a filosofia? [Traduzido por Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz]. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. pág. 213. Ver também LÉVY, Pierre. O Que é o virtual? [Traduzido por Paulo Neves]. São Paulo: Editora 34, 1996.

160"We understand Paris by simply stepping off the train, and grasp the absurdity of expressing

'aesthetic' judgements about buildings after 'decontextualizing' them, as if they could really exist as objects, devoid of any context whatsover." PÉREZ-GÓMEZ, Alberto. Architecture as speech. In

se representada por não estar completa, presente em sua totalidade, permitindo a dúvida com relação à qualquer característica que lhe prove a existência; mas ao mesmo tempo, existe enquanto possibilidade de ser imaginada e experienciada por complementação, quando o leitor acrescenta elementos imaginários, a partir de sua experiência, para superar a dúvida e fruir a descrição, já que a descrição traz a possibilidade do sentimento provocado pela arquitetura. A simulação torna-se então possível, porém não pretende desvelar a totalidade da arquitetura. Com a possibilidade da simulação, o observador é colocado diante de um novo objeto, que guarda referências e instiga sentimentos provocados pela arquitetura que lhe deu origem - enquanto representação - porém a simulação possível pela descrição poética ainda não permite uma 'imagem relativa' dessa arquitetura, possibilita uma imagem imaginária que vai além da 'imagem absoluta', mas ainda não é suficiente para 'desvelar' a totalidade da arquitetura, por ser autônoma com relação a qualquer objeto.

As Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino161 são descrições

poéticas que podem ultrapassar a possível zona limite entre representação e simulação, podendo ser consideradas simulações. São cidades que não existem, e sua descrição não pretende representar uma 'verdade', senão instigar a sua 'criação' no imaginário do leitor, sua 'verdade' é dada por sua interpretação. Se por um lado, tomarmos sua 'existência' por sua criação primeira no imaginário de Calvino, passamos a considerá-las 'representações' das cidades imaginadas, e como tal sua totalidade não é passível de interação pelo leitor, que pela falta da referência de imagem, acrescentará, a partir de sua própria experiência, as referências que julgar necessárias para sua apreensão. Embora exista uma interação entre o leitor e as cidades descritas, esta interação se dá com a representação das cidades através de sua descrição e não com as cidades como imaginadas por

161CALVINO, Ítalo. As Cidades invisíveis. [Traduzido por Diogo Mainard]. São Paulo:

Calvino. Se por outro lado, tomarmos sua 'existência' enquanto obra aberta, cuja leitura define-lhe a imagem, já que sua imagem nunca foi vista por ninguém, podemos considerá-las simulações, por serem 'experienciadas' a partir da leitura, sendo possível a interação de fato entre o leitor e as cidades potenciais; podemos considerá-las enquanto 'espaços vividos' a partir da leitura.

Sempre existe uma interação entre o leitor e uma descrição poética, mas é o nível em que essa interação acontece que vai defini-la enquanto representação ou simulação. Se considerarmos a descrição poética como qualquer 'representação' que não contenha a totalidade da imagem relativa do objeto, mas fragmentos descritivos que evocam emoções, estamos considerando automaticamente que existe uma interação entre a descrição e o leitor, já que existem os 'afetos', onde a intenção de provocar uma emoção é respondida pelo 'emocionar' do leitor diante da poesia. Segundo temos desenvolvido, a representação substitui o objeto, não permitindo a interação entre o observador e o objeto, embora o observador interaja com o que é representado do objeto. Quando a descrição poética evoca a emoção que um objeto evocaria sem ser o objeto, a interação entre observador e objeto não está mais apenas no nível da representação, é possível uma experiência nova relacionada ao objeto através de sua descrição poética. Essa possibilidade de evocar emoções que um objeto evocaria, sem representar o objeto, atribuímos à simulação. O objeto deixa de ser substituído por seu 'representante', passando a existir então um 'simulacro', como assim define Baudrillard.162