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A serpente de Midgar ou a escrita como razão de si

Capítulo III – O silêncio como Poética da Escrita

2. A serpente de Midgar ou a escrita como razão de si

Poucos escritores parecem ter vivido, como Vergílio Ferreira, o conflito entre o drama de escrever e a inevitabilidade da escrita, até porque o escritor soube transferir como poucos essa conflitualidade para dentro da própria escrita, transportando para a linguagem que devia dizê-la a experiência do silêncio como essência da modernidade, modernidade essa que, não coincidindo integralmente com o tempo histórico- -cultural do Modernismo, aí tem efectivamente as suas raízes epistemológicas. Deste modo, e como havíamos já sugerido no início do capítulo anterior, a dívida de Vergílio Ferreira em relação a Pessoa é bem maior do que o tempo que, na realidade da História Literária, separa os dois escritores, assunto este que já mereceu a chamada de atenção de pelo menos dois estudiosos da obra vergiliana – Maria Lúcia Dal Farra e António da Silva Gordo –, que sublinharam a influência pessoana no autor de Aparição sobretudo pela via do interseccionismo, «do ritmo e dos processos veiculadores do pensar-sentir»:

Esta aproximação a Fernando Pessoa e heterónimos é uma referência mínima ao que consideramos uma grande dívida de Vergílio Ferreira ao poeta modernista sob o ponto de vista da expressão, sobretudo ao nível do ritmo e dos processos veiculadores do pensar-sentir. A ideia-emoção em Vergílio Ferreira tem muito a ver com a intelectualização das emoções em Pessoa. Esta e outras cumplicidades literárias não nos surpreendem, dada a familiaridade profissional e artística com que Vergílio Ferreira lidava com a obra do poeta. (...) Estamos, pois, perante um procedimento técnico- -estilístico que (...) serve objectivos expressivos idênticos aos da sobreposição ou intersecção de planos na pintura, nomeadamente, aos das sobreposições dinâmicas da pintura cubista de que Almada-Negreiros nos dá belos exemplos e que tem no interseccionismo modernista a sua mais conhecida aplicação literária.7

Sendo certo que assim é, parece-nos que a filiação pessoana de Vergílio Ferreira se afirma não só sob o ponto de vista da expressão literária, mas ainda pela via do seu relacionamento com o próprio acto de escrever, onde encontramos semelhanças flagrantes, se não com toda a ficção heteronímica de Fernando Pessoa, pelo menos com o Livro do Desassossego de Bernardo Soares, porquanto parece existir em Bernardo Soares e Vergílio Ferreira uma mesma concepção da arte e da escrita, geradas ambas na

7

Idem, Ibidem, pp. 468, 472. Maria Lúcia Dal Farra, por seu turno, estabelece um paralelo entre a intersecção vergiliana dos vários planos da narração e o interseccionismo pessoano de objectos, planos, tempos e imagens evidenciado pelos poemas da «Chuva Oblíqua». Cf. Maria Lúcia Dal Farra, O narrador ensimesmado (o foco narrativo em Vergílio Ferreira), pp. 109 ss.

intimidade silenciosa do sujeito e resultando ambas de uma experiência (ou de um momento de aparição) profundamente incomunicável:

O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo- -as, sinta exactamente o que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.8

Para além de o Livro do Desassossego constituir uma espécie de matriz genológico-estrutural para esse «diário do acaso de ir pensando» (P, 17) que é o vergiliano Pensar e o igualmente vergiliano Escrever, julgamos encontrar nos respectivos autores destes textos idênticos impulsos de escrita, abandonando-se ambos à escrita com o gozo de uma entrega absoluta, idênticas hesitações quanto à justeza da palavra encontrada e idênticas amarguras suscitadas pela compulsão da palavra, sendo ambos, como são, claros pregadores da renúncia.

Na realidade, ambos escrevem muitas vezes sem terem de quê mas também sem poderem deixar de o fazer, qual serpente de Midgar em volta da própria cauda, embalando-se e à escrita que produz «como uma mãe louca a um filho morto».9 Tal como Vergílio Ferreira, também Bernardo Soares padece da nostalgia da palavra absoluta, aquela que parece capaz de ordenar o mundo e que por vezes se afigura quase ao alcance da mão, escapando todavia aos dois autores no momento em que a escrita tenta em vão aprisioná-la. Escreve assim Bernardo Soares:

As frases que nunca escreverei, as paisagens que não poderei nunca descrever, com que clareza as dito à minha inércia e as descrevo na minha meditação, quando, recostado, não pertenço, senão longinquamente, à vida. Talho frases inteiras, perfeitas palavra a palavra, contexturas de dramas narram-se-me construídas no espírito, sinto o movimento métrico e verbal de grandes poemas em todas as palavras e um grande

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Fernando Pessoa, Livro do Desassossego. Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, 3ª ed., Lisboa, Assírio e Alvim, 2001, pp. 255-256. Note-se que estas palavras de Bernardo Soares poderiam descrever perfeitamente o dilema de Adalberto de Estrela Polar, entre o desejo da comunicação absoluta, sonhando ser ele próprio em outro (Aida ou Alda), e a consciência da sua impossibilidade.

9

entusiasmo, como um escravo que não vejo, segue-me na penumbra. Mas se der um passo, da cadeira, onde jazo estas sensações quase cumpridas, para a mesa onde quereria escrevê-las, as palavras fogem, os dramas morrem, do nexo vital que uniu o murmúrio rítmico não fica mais que uma saudade longínqua. (...) E sempre que me levantei da cadeira onde, na verdade, estas coisas não foram absolutamente sonhadas, tive a dupla tragédia de as saber nulas e de saber que não foram todas sonho, que alguma coisa ficou delas no limiar abstracto em eu pensar e elas serem.10

Apesar desse silêncio mais ou menos fundacional da palavra perfeita nos textos de ambos, a verdade é que nem Bernardo Soares nem Vergílio Ferreira conseguem reprimir o acto de escrita, somando assim palavras por pura cobardia, como quem toma um veneno necessário que deveria todavia dispensar-se - «Por que escrevo, se não escrevo melhor? Mas que seria de mim se não escrevesse o que consigo escrever, por inferior a mim mesmo que nisso seja? Sou um plebeu da aspiração, porque tento realizar; não ouso o silêncio como quem receia um quarto escuro.»11 A impossibilidade ou a inutilidade do escrever converte-se assim na própria matéria da escrita, quer no Livro do Desassossego quer nos volumes da Conta-Corrente ou de Pensar e Escrever – escreve-se então para se dizer que é impossível escrever ou que há muito se não escreve, como um exercício de autopunição pela própria esterilidade do momento e como se o dizê-lo assim, neste registo confessional e vagamente autocontemplativo, pudesse aliviar o sentimento de dilaceração que a privação da palavra criativa efectivamente provoca: «há muito tempo que não escrevo. Têm passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir»12; «há muito – não sei se há dias, se há meses – não registo impressão nenhuma;

10

Idem, Ibidem, p. 278. Para além das imaginadas e ainda por escrever, as palavras perfeitas são-no para Bernardo Soares quando escritas por outro, de que ele próprio é apenas leitor: «Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda choro. Não é – não – a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.» (Ibidem, pp. 254-255).

11

Idem, Ibidem, p. 169. Cf. Ibidem, p. 168: «Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia.»

12

não penso, portanto não existo. Estou esquecido de quem sou; não sei escrever porque não sei ser».13

Se dúvidas houvesse de que esta experiência corresponde a uma realização negativa da existência bipolar do silêncio, bastaria atentar-se no sentimento de dilaceração criativa experimentado pelos dois autores cuja voz não obedece aos respectivos ímpetos de criação e que deste modo enuncia, ao nível da escrita, uma verdadeira poética do silêncio. Eduardo Lourenço refere-se justamente ao Livro do Desassossego como um dos textos responsáveis pela enunciação de uma explícita poética do silêncio, a qual concebe o escrever não como um acto que, por sua vez, possibilita o existir (o do mundo e o do sujeito), mas como um acto de natural «des- -existência»:

Na verdade, por mais surpreendente que seja o olhar – um olhar absolutamente neutro – que Bernardo Soares pousa sobre os telhados de Lisboa, (...) a única personagem deste verdadeiro-falso diário é o acto de escrita. (...) Elevada a uma tal potência, não existia na literatura portuguesa uma visão tão lúcida do impasse do imaginário moderno perante a impossibilidade de escrever a não ser para dizer que é impossível escrever, visão anunciada por Flaubert e transfigurada no Livro do Desassossego em pura reiteração. Escrever, como acto ontológico em que a aparência do mundo se transformasse em espelho, no qual o «eu» imaginário retivesse a ilusão de existir ao escrever-se. A escrita como des-existência é o assunto único da prosa de Pessoa e é como anunciador – em linguagem transparente – dessa evidência que o Livro do Desassossego se tornou, onde quer que seja lido, a pura poética de um silêncio que, hoje em dia, coexiste com todas as manifestações escritas.14

À semelhança de Bernardo Soares, cujo canto de abdicação aparece textualizado, no dizer de Eduardo Lourenço, no «verdadeiro-falso diário» constituído pelo Livro do Desassossego, em Vergílio Ferreira esta mesma poética do silêncio acaba por desenvolver-se num idêntico espaço de textualização genológica – em Conta-Corrente, em Pensar e Escrever e, de modo um pouco mais oblíquo, também nos ensaios do escritor. Os verdadeiros-falsos diários de Vergílio Ferreira acabam, como o Livro do Desassossego, por se aproximar do grau-zero da ficção e instituir assim um espaço outro da ficção, «uma ficção silenciosa em busca de um nome»15,

13

Idem, Ibidem, p. 343. 14

Eduardo Lourenço, «Uma poética do silêncio (A propósito do L. d. D.)», in O Lugar do Anjo. Estudos Pessoanos, Lisboa, Gradiva, 2004, p.105.

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como diz Eduardo Lourenço do livro de Bernardo Soares e podemos nós também dizer relativamente a Invocação ao Meu Corpo ou a Carta ao Futuro.

Para além destes aspectos, duas observações se nos afiguram ainda pertinentes: em primeiro lugar, cremos que a poética do silêncio da escrita em Vergílio Ferreira, consolidando-se de um ponto de vista poético ou especulativo fora dos limites do literário, acaba inevitavelmente por transpor esses mesmos limites, elaborando-se assim uma espécie de poética de segundo grau, de carácter simultaneamente simbólico e exemplificativo e metaforizada na actividade da escrita empreendida quer pelos narradores vergilianos, quer por algumas outras personagens que, no seio da ficção do escritor, fazem da escrita ou da criação artística o seu ofício maior – Rebelo, Guida e Mário de Cântico Final, Garcia de Estrela Polar, Júlio de Rápida, a Sombra, Adriano e Rute de Apelo da Noite, Marta de Nítido Nulo, a escultora Lalá de Até ao Fim e o pintor Daniel de Na Tua Face; em segundo lugar, julgamos que Vergílio Ferreira ousa um pouco mais do que Bernardo Soares na esconjuração do silêncio que o invade e ao seu impulso criador, uma vez que não vemos no autor de Para Sempre, como nos parece ver no pessoano Livro do Desassossego, a aceitação do silêncio como destino inevitável ou irremissível do escritor, pelo menos não sem antes sublevar a voz (através do grito, por exemplo)16 ou sem tentar previamente contrariar a combustão niilizadora dessa «lareira da escrita onde a ilusão se consome sem deixar outro vestígio que não seja o silêncio»17, como afirmou Lourenço acerca do autor do Livro do Desassossego. Eduardo Lourenço nota ainda que «Bernardo Soares escreve sobre si como se não fosse ninguém, com a aplicação conscienciosa do contabilista. Não trata do Nada grandioso que inspirava as efusões épicas do engenheiro fictício que Álvaro de Campos foi, mas dos «nadas» que retiram a esse antigo sósia de Deus o esplendor imaginário. A condição de «escravo cardíaco das estrelas» não é a sua».18

16

São vários os pontos de contacto existentes entre a ficção de Vergílio Ferreira e a obra de Raul Brandão – por exemplo, a insistência de ambos na abordagem metafísica da existência e a centralidade da ideia de Deus (e do seu silêncio) no pensamento de cada um dos autores, bem como a presença de um grito que atravessa de um lado ao outro as respectivas obras. Já nos referimos, no capítulo I da nossa dissertação, à presença do grito na ficção vergiliana, grito esse que o próprio autor de Aparição igualmente assinala na obra do seu companheiro de ofício: «a sua obra é confusa, instável, incoerente, assim ela se exprime cabalmente e sinteticamente nesse imenso grito que a atravessa de lado a lado»; «a morte de Deus, como é óbvio, não se afirma em Raul Brandão com o suporte de um qualquer “argumento”. Há a evidência dessa morte e a evidência paralela de que toda a vida se desorganiza com essa morte, ou seja, de que essa morte é impossível. E entre estas duas evidências contraditórias se desenvolve toda a angústia de Raul Brandão, que expressivamente, humanamente, se decide no imenso grito que lhe atravessa toda a obra, e a que já aludi.» («No limiar de um mundo, Raul Brandão», in Espaço do Invisível 2, pp. 173; 197).

17

Eduardo Lourenço, «Uma poética do silêncio (A propósito do L. d. D.)», p. 104. 18

Opostamente, Vergílio Ferreira surge-nos como alguém capaz de resgatar (e, simultaneamente, de introduzir na sua poética do silêncio) a grandiosidade épica que acompanhava em Campos o niilismo irónico do seu imaginário e que parece, na obra vergiliana, querer subsumir-se ao domínio do sagrado, sujeitando o acto de escrita não propriamente à resignação do silêncio mas à perseguição sisífica do indizível19 – não em vão afirmou o escritor que escrever (e, supomos nós, escrever mesmo para dizer que não se escreve) é afinal uma forma de rezar, «é orar sem um deus para a oração. Porque o poder da divindade não passa apenas pela crença e é aí apenas uma modalidade de a fazer existir» (P, 73).

Deste modo, escrever não corresponde apenas à corporização de uma actividade mais ou menos dificultosa, já que, em paralelo com o acto concreto da escrita, parece sempre existir um para lá dessa mesma actividade que, por sua vez, vai continuamente transformando a materialidade do escrever num estado movente de procura rumo ao indizível, entendido este como horizonte absoluto de todo o dizer - «escrever é quando muito saber para que lados fica o que se procura» (CCNSII, 348). Como pode verificar-se, esta concepção do indizível reproduz justamente uma das acepções do conceito aduzidas por Ducrot e que o autor designa por «limite do dizível ou horizonte do dizer»:

(...) o indizível é apresentado como uma espécie de limite do dizível. Trata-se agora de sugerir, com o auxílio de dispositivos inerentes à linguagem vulgar, o que ela não pode dizer. O léxico, por exemplo, na medida em que comporta gradações de termos, pode indicar direcções, orientações. O indizível seria aquilo para que se tende quando se seguem essas progressões, marcadas na estrutura da linguagem. (...) O indizível seria então o horizonte do dizer. (...) Nesta segunda concepção, o indizível depende de dispositivos particulares contidos na própria língua, e que permitiriam dirigir a atenção para o que está para além dela.20

19

Numa outra ordem de ideias, António da Silva Gordo (op.cit., pp. 467ss) sublinha a herança de Campos em Vergílio Ferreira naquilo que respeita a formação de palavras por composição, viabilizando a criação daquilo a que o autor chama «palavras-comboio» e que corresponderá a um estilema característico do discurso vergiliano do indizível.

20

Oswald Ducrot, «Dizível / Indizível», in Enciclopédia Einaudi, T.2, Linguagem-Enunciação, INCM, 1984, p. 459. Rosa Goulart havia já referido esta coincidência entre o entendimento vergiliano do indizível e a segunda concepção de indizível apontada por Ducrot: «relacionando-a ainda com o indizível, de que O. Ducrot destaca quatro acepções, a de Vergílio Ferreira poder-se-ia situar em parte na segunda, em parte na terceira, nele se operando uma espécie de conciliação das duas. “Na segunda acepção”, afirma Ducrot, “o indizível era, para a fala, uma espécie de depois que se entrevia prolongando até ao infinito esta ou aquela direcção do dizer”. Na terceira concepção “o indizível é mais um ‘antes’, que se manifesta na medida em que fundamenta o dizer, na medida em que nada, sem ele, poderia, no verdadeiro sentido da palavra, ser dito”.» (Romance Lírico. O percurso de Vergílio Ferreira, Lisboa, Bertrand, 1990,

Como quer que seja, a realidade é que, à semelhança do semi-heterónimo pessoano, o relacionamento de Vergílio Ferreira com o acto de escrever (e com a sua impossibilidade) é praticamente do domínio da tautologia: escreve porque sim, escreve para dizer que não pode escrever e escreve diário e ensaio porque não ousa ou não pode escrever romance. O acto de escrita é, pois, em Vergílio Ferreira, uma serpente de Midgar que morde a própria cauda, como confessa o próprio escritor num breve ensaio justamente intitulado «Escrever»:

Releio um livro intrigante – e apaixonante – de um novo escritor francês, Roger Laporte: Une voix du fin silence. [sic] E de novo me toma a reflexão sobre o destino actual da «palavra». Todo o livro referido nos conta a impossibilidade de escrever – e nada mais nos conta além disso. Como desde Artaud, suponho, é essa impossibilidade de escrever que constitui o motivo último do escrever. Ou seja, escreve-se apenas para se declarar que se não pode escrever. Ou seja ainda, é só a impossibilidade de escrever que pode constituir a matéria do escrever. Anel moebiano de uma só superfície em que duas se geram – ou de duas que são uma só -, serpente de Midgar que morde a sua própria cauda, a escrita é assim a razão fechada de si ou é nessa sua estrita realidade a pluralidade para que apela. (EI3, 17).

Estas palavras do escritor, suscitadas pela leitura de um livro alheio, trazem o eco de outras palavras de Vergílio Ferreira, motivadas essas já pelos condicionalismos da sua própria escrita, facto que é até simbolicamente representado, no presente excerto, pela circunstância de se tratar não de uma leitura primeira do livro de Laporte, mas de uma sua releitura (a qual suscita «de novo» a reflexão do escritor sobre a palavra), o que por si só parece sublinhar a importância recorrente da escrita como movimento intransitivo no quadro das suas preocupações de autor:21

p.116). Esta última concepção de indizível referida por Rosa Goulart, e que corresponde à terceira definida por Ducrot, é na realidade uma presença constante não apenas na ficção de Vergílio Ferreira, mas em todos os actos enunciativos, pois é condição fundante de todo o dizer. Eni Puccinelli Orlandi refere-se igualmente a este silêncio fundador não como ausência de algo, mas como condição da produção de sentido e como princípio de toda a significação: «evidentemente, não é do silêncio em sua qualidade física de que falamos aqui mas do silêncio como sentido, como história (silêncio humano),