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Capítulo III – O silêncio como Poética da Escrita

3. O náufrago da página

São de variadíssima índole os constrangimentos da escrita que podem levar um escritor a considerar-se um náufrago da página – desde a obsessão pelo vazio à sensação de bloqueio gerado pela página em branco, desde a percepção da insuficiência da linguagem e da mais radical incapacidade de criar (a verdadeira mudez ou afasia da escrita) à tomada de consciência de que o acto de escrever implica inevitavelmente o silenciamento do que se não diz. Este último aspecto tem sido objecto de reflexão não apenas no quadro da relação do sujeito com a escrita, mas tendo ainda em conta o modo mais geral de funcionamento da linguagem, ocorrendo igualmente quando o que está em casa é o simples acto de escolha das palavras com que se fala. De qualquer modo, parece-nos que este é um aspecto incontornável quando tentamos definir não apenas a poética do silêncio de um escritor em particular, mas sobretudo a sua concepção do silêncio como poética da escrita.

Quando Eni Puccinelli Orlandi estabelece a sua tipologia analítica do silêncio, que categoriza as formas do silêncio em «silêncio fundante», por um lado, e «política do silêncio» ou «silenciamento», por outro, a autora sublinha dentro da segunda categoria (a do silenciamento) a existência de um silêncio constitutivo de todo o acto de dizer ou escrever (que, por isso mesmo, a autora acaba por designar como «silêncio constitutivo»), para o distinguir de um outro modo de silenciamento mais localizado ou circunscrito (o «silêncio local», que normalmente corresponde a procedimentos de censura):

Como o sentido é sempre produzido de um lugar, a partir de uma posição do sujeito, ao dizer ele estará, necessariamente, não dizendo “outros” sentidos. Isto produz um recorte necessário no sentido. Dizer e silenciar andam juntos. // Há pois uma declinação política da significação que resulta no silenciamento como forma não de calar mas de fazer dizer

“uma” coisa, para não deixar dizer “outras”. Ou seja, o silêncio recorta o dizer. Esta é a sua dimensão política. (...) Podemos dizer, generalizando, que toda denominação apaga necessariamente outros sentidos possíveis, o que mostra que o dizer e o silenciamento são inseparáveis: contradição inscrita nas próprias palavras.28

Adam Jaworski, citando R. L. Scott29, assinala igualmente o valor epistemológico do silenciamento desse não-dito constituído por todo o acto de dizer, embora considere impraticável o estudo do silêncio a este nível, pois levar-nos-ia à impossível descoberta de todos os potenciais aspectos a silenciar acerca de um número praticamente infinito de assuntos para cada elocução: «I would find broadening the scope of the study of silence to such a degree to be impractical. It would have to account for all the potential aspects or remaining silent about an infinite number of subjects in every utterance».30 Como quer que seja, parece-nos que a obra de Vergílio Ferreira contempla muitos não-ditos constitutivos do dizer e que são, por esse mesmo dizer, relegados para uma existência meramente potencial. Como o próprio escritor afirma, «uma grande quantidade das características potenciais irá morrer connosco porque nunca houve oportunidade de se revelarem o que são. E um romance é a construção concreta dessas oportunidades» (CCNSI, 61). Porém, a realidade é que, viabilizando a concretização dessas oportunidades, o romance silencia automaticamente outras, já que cada frase, cada imagem ou cada romance se constrói em automático registo de exclusão de outras frases, de outras imagens ou de outros romances que, por via dessa mesma exclusão, permanecem no silêncio do que nunca pôde vir a ser.

Se confrontarmos a ordem da escrita dos romances de Vergílio Ferreira (revelada pela datação dos respectivos manuscritos) com a ordem da sua publicação, verificamos que o escritor, evidenciando uma gestão claramente política do dizer, silenciou por uns anos alguns romances já escritos, cujo espaço natural ou previsível de publicação veio a ser ocupado por outros de redacção claramente posterior. Veja-se, então, as listas com as duas ordenações:

28

Eni Puccinelli Orlandi, op.cit., pp. 55, 76. A tipologia definida por Orlandi contempla o «silêncio fundador», aquele que existe nas palavras como símbolo do não-dito ou espaço de recuo necessário à significação, e a política do silêncio, que por sua vez se subdivide no «silêncio constitutivo» (aquele que indica que para dizer é preciso não dizer) e no «silêncio local», constituído este por procedimentos de censura.

29

Cf. R. L. Scott, «Rhetoric and silence», in Western Speech, 36, 1972, p. 146. Apud Adam Jaworski, The Power of Silence. Social and Pragmatic Perspectives, p. 80: «Every decision to say something is a decision not to say something else, that is, if the utterance is a choice. In speaking we remain silent. And in remaining silent, we speak».

30

Ordem de escrita Ordem de publicação

- O Caminho Fica Longe (1939...) O Caminho Fica Longe (1943) - Onde Tudo Foi Morrendo (1942) Onde tudo Foi Morrendo (1944) - Vagão J (1943-1944) Vagão J (1946)

- Mudança (1947-1949) Mudança (1949)

- Manhã Submersa (1949-1953) Manhã Submersa (1953) - Apelo da Noite (1954) Aparição (1959)

- Cântico Final (1955/1956?) Cântico Final (1960) - Aparição (1959) Estrela Polar (1962) - Estrela Polar (1959-1961) Apelo da Noite (1963) - Alegria Breve (1963-1964) Alegria Breve (1965) - Nítido Nulo (1966-1969) Nítido Nulo (1971) - Rápida, a Sombra (1970-1973) Rápida, a Sombra (1974) - Signo Sinal (1971-1979) Signo Sinal (1979) - Para Sempre (1975-1982) Para Sempre (1983) - Até ao Fim (1987) Até ao Fim (1987)

- Em Nome da Terra (1987-1989) Em Nome da Terra (1990) - Na Tua Face (1991-1993) Na Tua Face (1993) - Cartas a Sandra (1992-1995) Cartas a Sandra (1996)31

Ora, comparando as duas colunas, verificamos que o romance Aparição, sendo de redaccção posterior a Cântico Final e Apelo da Noite, antecipa-se-lhes no momento da publicação, silenciando-os a ambos, do mesmo modo que Apelo da Noite é silenciado por Cântico Final e Estrela Polar. Isto significa que, quando Vergílio Ferreira publicou Aparição, já tinha prontos outros dois romances (Apelo da Noite e Cântico Final), que o autor preferiu silenciar, provavelmente intuindo que para dizer é preciso não dizer e que para publicar é preciso não publicar, já que uma coisa parece excluir a outra e que, portanto, publicar uma coisa pode significar deixar de publicar outras, atestando-se assim a inseparabilidade entre dizer (escrever e/ou publicar) e

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Nos livros de Vergílio Ferreira, a lista que dá conta das publicações do escritor ordenam-se, mais ou menos acriticamente, ora pela data de escrita, ora pela data de publicação, ou ainda através de uma fórmula combinatória que associa à ordem de escrita a data de publicação.

silenciar (não escrever e/ou não publicar).32 Por outro lado, constatamos que há romances a quererem, por vezes, intrometer-se na redacção de outros, como forma de contrariar a exclusão a que, aparentemente, foram sujeitos pelo silêncio constitutivo do dizer no momento do início da escrita empreendida pelo escritor – referimo-nos sobretudo à intromissão de Para Sempre na redacção de Signo Sinal e à de Cartas a Sandra na escrita de Na Tua Face. O próprio Vergílio Ferreira confessa ter abandonado a escrita de Signo Sinal para iniciar Para sempre33, que na altura tinha ainda o título provisório de Plácida, a Noite, do mesmo modo que, ao longo da sinuosa redacção de Na Tua Face, há um outro romance que se vai insinuando:

Puxei ontem pelo romance [Na Tua Face]. E enquanto o escrevia, surgiu-me uma solução para dar o quadro que o narrador quer pintar e é um quadro de grandes tensões e deformações, sugerido por certo pintor que não digo para o leitor exercitar a inteligência e descobrir. Mas cada vez mais me toma a ideia pavorosa de que não vou levar o livro ao fim. E gostava tanto de que sim. (...) Entretanto um outro se me vai intrometendo abusivamente no que escrevo. Digo o que é? Digo. É uma série de manchas ordenadas em que só há imagens sem uma palavra de diálogo. (CCNSIV, 83). Entretanto retomei o novo romance que talvez se adiante ao anterior. É um romance fragmentário como o Pensar. E reduzido se possível a uma pura absorção amorosa. Sairá melaço? Coisa de enjoar? Não quero saber, até porque não faço ideia aonde a aventura me leva. (CCNSIV, 155). Creio que vou suspender o romance: e retomar a sério o que há dias comecei. (CCNSIV, 160). E estava à volta com os dois romances, como os pintores, que trabalham em quadros simultâneos, vão dando uma pincelada em cada um, estava nisto quando o telefone tocou. (CCNSIV, 162). Porque não largo eu o romance e escrevo as «Cartas a Sandra»? Mergulhar a fundo no encantamento do meu imaginário. Sinto-me coincé contra a certeza de que a vida touche à sa fin. Porque não aproveitar para reviver o que de mais belo eu posso fazer acontecer na minha juventude? (...) Porque não abandonar o romance? (CCNSIV, 194-195).

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Claro que podemos perguntar se este silenciamento resultante da alteração da ordem de publicação destes romances não implicará um autojulgamento do autor relativamente aos textos escritos – talvez não, porque Apelo da Noite é um romance claramente anterior a Cântico Final, se tivermos em conta o percurso evolutivo da obra de Vergílio Ferreira, e a verdade é que o autor acabou por publicá-lo depois de outros romances que lhe são posteriores na respectiva conformação romanesca, como Aparição e Estrela Polar; mas talvez sim, se neste sim implicarmos um juízo crítico do escritor acerca da importância estruturante de, por exemplo, Aparição no todo da sua obra.

33

Cf. Conta-Corrente 2, p. 62: «Estou a reler o que escrevi do romance sobre o sismo para o retomar. Tinha-o escrito até ao capítulo VII quando o suspendi para iniciar outro, Plácida, a Noite. (...) Reli três capítulos. Não achei mal. Terei impulso, bagagem para o levar a termo? São só três livros a escrever: estes dois romances e um ensaio no género Invocação ao Meu Corpo. Não é pedir muito...».

Apesar de não podermos afirmar com segurança que o livro que inicialmente se intromete na escrita de Na Tua Face é o Cartas a Sandra, a verdade é que o escritor chega a ponderar a hipótese de abandonar o romance para redigir Cartas a Sandra, como se este último surgisse a reclamar do silenciamento a que, em função da escrita de Na Tua Face, havia sido anteriormente sujeito.

Para além deste aspecto, muitos romances de Vergílio Ferreira denunciam uma série de limitações de linguagem sentidas pelo sujeito e que nós temos frequentemente referido sob a ambígua designação de insuficiência da linguagem. Jaworski, a este propósito, lembra o seguinte:

When words fail poets, when artists find language inadequate to express themselves, they find refuge in silence. This rather linguistically naive conviction of the impurity and contamination of contemporary language is prevalent in much of recent art and art criticism. The solution for artist trying to get free from the limitations of language is to move on to silence as the most adequate and “chaste” form of artistic expression.34

Na verdade, também muitas vezes para Vergílio Ferreira só o silêncio parece ser capaz de dizer o que há a dizer, só o silêncio é a palavra,35 aquela que, justamente porque não é dita, pode vir a dizer o que as realmente ditas, porque irremissivelmente sujeitas à insuficiência da linguagem, não podem. Na aula de Para Sempre, o professor de Sandra vem precisamente recordar que a proliferação de palavras no discurso da contemporaneidade deu apenas origem à ilusão e ao vazio e que provavelmente só o silêncio, enquanto mimetização da linguagem primordial do cosmos, pode constituir a palavra fundamental, aquela que a palavra inaudível da mãe de Paulo simboliza no seio da diegese. Porém, a verdade é que o professor acabou por deixar o problema em aberto, sugerindo assim a sua latente insolubilidade, para que igualmente apontam as últimas páginas do romance:

Assim nós nos perguntamos no ruído deste linguajar frenético, nesta infernal feira de palavras, assim nós nos interrogamos se é possível existir uma palavra fundamental, a que inarticulada exprima o homem primeiro, o que subsiste por sob o montão de vocábulos e ideias e problemas, se acaso é concebível que ele exista antes disso. Diz-se às vezes que essa palavra a sabem os artistas, o poeta, o músico, o pintor, ou seja os que

34

Adam Jaworski, The Power of Silence. Social and Pragmatic Perspectives, p.161. 35

não dizem o que dizem, mas dizem apenas o silêncio primordial, ou seja o que não se diz. (PS, 198).

A verdade é que as palavras de que o sujeito dispõe são sempre consideradas redutoras ou insuficientes para dizer o que há a dizer, e mesmo dizendo não dizem, «como um penso para o que não tem cura» (PS, 25), não chegando por isso a tocar o núcleo emotivo do que deveria ter sido dito - em Rápida, a Sombra, por exemplo, Júlio queixa-se com frequência de não haver línguas bastantes para dizer o essencial de Hélia, como também o faz Paulo em relação ao fundamental de Sandra, no derradeiro romance do escritor:

Mon amour. My love. Não há línguas bastantes para te dizerem. Esta música ao menos, se ela te dissesse. Na melancolia grave que está entre a alegria e a amargura. (RS, 13). Mas não tenho nunca adjectivação que te mereça. Estás toda na cerração de mim, e, mais alto, no meu olhar contemplativo. (RS, 33). Mon amour. My love. Não há línguas bastantes para te dizerem. (RS, 151). Dizer-te o que me és e não sei. Como é pobre a possibilidade de te dizer quanto te amo, deves talvez saber. (CS, 114 -115)

Todavia, parece-nos que, pelo menos no caso de Vergílio Ferreira, a questão da insuficiência da linguagem passa talvez mais pela retracção do sentir ao dizer do que propriamente pela incapacidade da palavra em exprimir esse dizer; é como se houvesse no sentimento à beira de fazer-se palavra um qualquer constrangimento, uma espécie de pudor que assim aconselhasse a ocultação de si, mais do que a sua desocultação através do real visível das palavras. Por isso, em Vergílio Ferreira, o que se diz não está bem nas palavras, passando preferencialmente por entre elas, nos pequenos intervalos que compõem a malha intervalar do dizer e não na fugaz e enganosa iluminação das palavras:36

Abrir-me ao deslumbramento do mistério, da verdade oculta das coisas. E isso não passa pelas palavras. Como é que isso podia passar pelo dizer? Que palavra pode abrir ao místico a sua possibilidade de ver? Como é que o mistério pode estar num dicionário? Deve haver talvez palavras. Mas tenho eu de inventá-las no que está para além delas ou no que elas não sabem que está. Tão difícil. E tão necessário. (P, 70-71). O sentir é irredutível ao dizer. Só o estar sofrendo diz o sofrer. Na palavra ninguém o reconhece

36

Cf. Conta-Corrente 2, p. 295: «Um livro não se faz com o que se quer dizer e se sabe dizer, nem mesmo com as «palavras» de Mallarmé; um livro faz-se com o que passa entre tudo isso, atravessando- -nos nesse passar.»

ou reconhece-o de outra maneira, essa maneira em que já o não reconhece o que o conta. (CC1, 90)

Esta retracção do (in)dizível ao mais concreto do dizer é, não só, uma constante na obra de Vergílio Ferreira, como está presente logo desde o primeiro romance publicado pelo autor: o Rui de O Caminho Fica Longe, apesar de se encontrar inserido num romance onde a questão da palavra e do seu potencial de (in)dizibilidade não ascendia ainda à superfície do discurso, afirma já que «podia agora escrever um livro suculento, enfartado de vida, vida real, exacta. Podia... Não, nunca seria capaz. A realidade seria sempre incoercível, quando pretendesse vergá-la à palavra escrita ou falada» (OCFL, 293). Esta incoercibilidade da realidade e do sentir à palavra, defendendo sempre que tudo «o que é da vida fundamental não vem até às palavras» (CF, 141), veio a ser depois, ao longo de toda a obra vergiliana, objecto de contínuas tematizações, cada vez mais frequentes e densas - em Alegria Breve, por exemplo, Jaime conversava com Padre Marques sobre o enigma do divino protegido pelo silêncio do tabuleiro de xadrez, num combate surdo com o seu interlocutor justamente por saber que o seu era um combate que não poderia emergir à superfície das palavras: «o que há de terrível no que dizemos, não se vê no que dizemos, está onde? As palavras que dizemos dizem-no, e explicam-no, porque não há outra forma de o dizer. E no entanto deixam-no intacto» (AB, 247).37 Isto mesmo, com escassas variações estilísticas ou decorrendo ainda da vária conformação diegética das diferentes narrativas, veio a ser reiteradamente defendido pela generalidade dos narradores vergilianos, por exemplo

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José Rodrigues de Paiva considera o jogo de xadrez de Alegria Breve uma metáfora do «embate entre Deus e o Homem»: «um dos temas fundamentais de Alegria Breve é o do embate entre Deus e o Homem, metaforicamente (ou alegoricamente) representado, no romance, pelo jogo de xadrez longamente travado entre o Padre Marques e Jaime Faria. Tal como num certo poema de Fernando Pessoa/Ricardo Reis, enquanto graves coisas acontecem na aldeia, que, depois de “tecnificada” pela indústria mineira, se desertifica, esvazia-se, envelhece e está morrendo… enquanto graves coisas acontecem, Jaime e o Padre jogam continuamente o seu jogo, sempre interrompido, sempre retomado, jogo que Jaime perde sempre…» (José Rodrigues de Paiva, «Intertextualidade e Simbolismo no jogo de xadrez em Alegria Breve», p. 1. Artigo inédito. Agradecemos, por isso, ao autor a generosa cedência do texto). O presente artigo mostra como o posicionamento dos jogadores de xadrez de Alegria Breve (Jaime Faria e o Padre Marques) de certo modo reproduz a atitude de alheamento característica dos anónimos jogadores presentes no poema de Ricardo Reis “Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia”, embora o combate verificado neste romance de Vergílio Ferreira, sobretudo pelo seu estatuto de metáfora de um outro combate, sirva evidentemente outros propósitos ausentes do poema pessoano, aspecto este que Rodrigues de Paiva também acentua: «Jaime perdia sempre, no jogo de xadrez com o Padre Marques. Mas ao longo de cada partida, e entre uma e outra, um outro jogo se desenvolvia. Entre Jaime e o Padre e entre Jaime e ele próprio. Era um jogo de ideias, de dúvidas, de raciocínios e de convicções. (…) A provocação de Jaime à agressividade do Padre não se situa no plano do jogo de xadrez, mas no do jogo das ideias, no estímulo a um diálogo tenso sobre a existência de Deus e a imortalidade da alma, a origem divina do universo e de tudo o que está nele.» (Ibidem, p. 3).

pelos narradores de Rápida, a Sombra, Para Sempre, Até ao Fim ou Em Nome da Terra:

Depois dissemos tudo. Excepto o que desse tudo se dizia sem dizer. E assim se não disse. Ou disse? (RS, 34). Porque todas as palavras eram grosseiras e vãs. Depois de se dizerem não ficava mais nada para se dizer. E há coisas que nunca se podem dizer de todo. (PS, 204). Que mundo original se nos separa assim do dizer? (PS, 245). Entaramela-se-me a língua no acto de a dizer mas não a inteligência e o sentir no acto de sentir e entender. (PS, 249). E dizemos coisas que não são as que dizemos e que já não lembro. (...) – de que falámos? Mas nunca se fala do que se fala e disso é que eu sei que se fala. (AF, 84). Como é extraordinário que o sentir mais intenso não se saiba dizer. (ENT, 160).

Todavia, o sentimento de impossibilidade do escrever ou criar não é em Vergílio Ferreira apenas determinado pela subtracção do sentir ao domínio concreto da palavra (o qual, antes de se converter em princípio obstaculizador da escrita, surge como um princípio mais explicitamente filosófico, cuja índole é por isso mais especulativa do que real), mas deriva ainda da objectiva experiência de mudez sentida pelo escritor, originada sobretudo pela consciência da sua incapacidade de criar, acabando por fazer dele um verdadeiro afásico da escrita.

Na realidade, o sentimento de mudez sentido pelo escritor (ou pelos criadores que ele introduz na sua ficção) desenvolve-se primeiramente no antes da escrita, continua depois no momento real do escrever e prolonga-se ainda no depois dele, transmudado aqui em decepção ou frustração em face do escrito. Deste modo, um livro escreve-se sobretudo no antes da própria escrita, pois aqui o trabalho é ainda e apenas o trabalho da imaginação, escapando, por isso, à ulterior limitação da palavra: «mas um romance vê-se é no imaginá-lo, no sentir-lhe o bafo na cara, no ouvir-lhe a música incerta que lá está. Cumpro-o assim na suspensão que não ousa e o não escrevê-lo é escrevê-lo onde não tem erro nenhum.» (CCNSIII, 32).38 Os problemas surgem

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Cf. Um Escritor Apresenta-se, pp. 189-190: «Escreve-se sobretudo quando se pensa naquilo que se vai escrever. Nesse sentido, pode-se dizer que não há dia nenhum em que não escreva, embora não realize o acto material de escrever.»; Conta-Corrente 2, pp. 260-261: «Mas até há pouco um impulso invencível levava-me à escrita, à fixação desses momentos de enlevo, da alegria nublada no ardume dos meus olhos. Eis que o cansaço e a sedução insidiosa do encantamento me esgota o prazer na dolência do evocar.