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Capítulo II – Vergílio Ferreira e a Poética do Silêncio

2. Bipolaridade significativa do silêncio

2.2 Aparição / loucura

Para além destes aspectos, verificamos que o silêncio na obra de Vergílio Ferreira pode ainda, e seguindo a já referida orientação bipolar do seu sentido, apresentar-se como a linguagem mais adequada para reproduzir os instantes de aparição (o que atribui ao silêncio como signo uma valoração claramente positiva) ou para denunciar o estado de loucura de algumas das suas personagens (acentuando, portanto, a dimensão negativa do mesmo).

Ora, é por demais sabido que o problema da aparição não se restringe, na obra de Vergílio Ferreira, ao romance que eleva a título esta experiência de índole metafísica, já que o próprio escritor veio a glosar a questão, com maior ou menor profundidade, em alguns outros romances e em grande parte da sua obra diarística ou ensaística, acabando por fazer do conceito, como defende Carlos M. F. da Cunha, a «metáfora dominante na

e da escrita vergiliana.»31 Aliás, como o próprio escritor afirma, o conceito de aparição «não tem que ver só com a relação do «eu» consigo mas com a revelação da transcendência de qualquer real» (CCNS2, 115). Porém, no presente contexto, interessa- -nos sobretudo a definição do conceito como algo pertencente à ordem do indizível, tal como sublinha o autor: «é uma experiência difícil não apenas de realizar, mas de explicar, transmitir. Como a de todo o vivencial, de tudo o que se investe do próprio homem – amor, alegria, tédio, melancolia e o mais. Há um indizível aí, porque é indizível o que se surpreende no «eu», porque é ilógica a realidade desse “eu”». (IMC, 66-67) Ora, a indizibilidade da aparição parece resultar, em primeiro lugar, da distância que, à boa maneira de Lacan, Vergílio Ferreira estabelece entre, por um lado, o pensar e o sentir e, por outro, a palavra necessária para dizer esse sentir e esse pensar, convocando-se assim para a dilucidação desta indizibilidade uma das principais aporias do pensamento vergiliano – a de que não há pensar ou sentir fora da palavra que o diz e que, todavia, o pensar e o sentir não estão apenas no explícito dizer desse pensar e desse sentir:32

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Carlos M. F. da Cunha, Os mundos impossíveis de Vergílio Ferreira, p. 50. Em Aparição, insinua-se que esta experiência pode conseguir-se por três vias diferentes: falar em voz alta no escuro da noite, olhar o sujeito a sua própria imagem reflectida no espelho e questionar-se o corpo morto de alguém que se conheceu em vida. As duas primeiras vias de acesso à experiência da aparição são didacticamente transmitidas a Carolino por Alberto Soares, segundo a própria experiência deste último (cf. Aparição, pp. 67-70), e a terceira é revelada directamente ao leitor através da experiência do mesmo Alberto Soares, em face do absurdo que era para ele o corpo morto do pai (cf. Ibidem, pp. 45-7). A experiência do espelho é continuamente referida ao longo da obra do escritor para designar o momento do confronto do sujeito com o seu próprio eu, quer esse momento corresponda a um momento pacífico de evidência (como acontece com a Luzia de Na Tua Face – p. 209), quer corresponda a um instante vivido em profunda dilaceração (como o de Pedrinho de Rápida, a Sombra – pp. 179-180). Os instantes de aparição correspondem, assim, a uma experiência eminentemente especular, em que a palavra é justamente uma das faces do referido espelho: «Ah, a terrível dificuldade de apanhar na palavra esta evidência tão flagrante, esta realidade tão vivaz e tão fluida – esta realidade que dura e nos persegue e está ao pé de nós depois de alguém nos morrer... Lembro-me de contar algures a aparição desta certeza na vulgar experiência de nos vermos a um espelho» (Carta ao Futuro, p. 61). Note-se que a experiência do espelho, como lembra ainda Carlos M. F. da Cunha, é trasladada para o campo da escrita através da visão autodiegética do narrador, coisa que não ocorre, obviamente, apenas em Aparição, mas em todos os outros romances de inscrição autodiegética de Vergílio Ferreira, onde a escrita efectivamente se volve em estratégia de reflexão do eu: «a aparição (...) designaria simultaneamente a autognose especular do «eu» vivida na infância (...) e o deslocar dessa fragmentação simbólica para a escrita autodiegética, que pode ser considerada como reduplicação da visão primordial». (Ibidem, p. 50). Cf. Aparição, p. 193: «Não escrevo para ninguém, talvez, talvez: e escreverei sequer para mim? O que me arrasta ao longo destas noites, que, tal como esse outrora de que falo, se aquietam já em deserto, o que me excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver- -me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte.»

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Cf. Invocação ao Meu Corpo, p. 298: «A realidade é a palavra em que a digo; mas se outra palavra a pode dizer, é porque ela lhe preexiste como limite de possibilidades.» José Antunes de Sousa refere-se mesmo à aporia ontológica da palavra que enclausura esta última no seu próprio labirinto: «E aqui a própria aporia ontológica da palavra – é real só o mundo da e na palavra que o diz, mas não haveria como dizê-lo se não existisse já o mundo para ser dito. É, sem dúvida, alucinante e misterioso este «circuito

Assim o começar a existir é o começar a ser dito. Toda a realidade se cifra à palavra que a enuncia e a faz portanto ser. O real só poderia ser real, independentemente da palavra, se fosse possível existir – sabermos que existe – sem sabermos que existe, ou seja sem o pensarmos, ou seja sem a palavra em que o pensar encarnou. Mas se isso é impossível, o real não é a causa das palavras, mas as palavras do real; não é o real que há-de gerar a palavra, mas ao invés. Não há a realidade donde eu tiro as palavras que a dizem – há as palavras donde eu tiro o real que elas inventam. (IMC, 309)

Neste contexto, torna-se imperioso aludir novamente à aula de Para Sempre, porquanto este episódio parece querer resumir, e com o acréscimo da autoridade pedagógica conferida por um professor, tudo o que de importante Vergílio Ferreira deixou escrito (sobretudo em textos não literários) em relação ao modo de relacionamento entre palavra e realidade, linguagem e pensamento. Neste contexto, não há distinção alguma, nem sequer a nível estilístico, entre a prelecção do professor de Sandra e alguns fragmentos de Espaço do Invisível ou Pensar, por exemplo, aspecto este para o qual também concorre o facto de a voz do professor (ao contrário do que sucede com a voz de outros pregadores e conferencistas vários que povoam a obra do escritor) não ser nunca desautorizada pelas palavras do narrador, que assim viabiliza a semelhança de registos:

Concluímos daqui que a língua constitui uma rede fechada sobre si, um tecido de malha que as leis da língua tecem, um quadriculado de palavras sobrepostas ao que chamamos «mundo real». Não há portanto um mundo real traduzido em palavras, mas um mundo de palavras sobreposto a esse real. Porque cada língua tem as suas leis, o seu modo de ver a realidade, o seu modo de a pensar. Assim, mudar de língua é mudar de mundo. (...) Ninguém pode sair das fronteiras da língua, a objectividade da razão está na rede que uma língua teceu. (PS, 195, 197)

Não se pode imaginar uma cor, fora das do espectro solar. Não se pode ouvir um som, fora da nossa escala auditiva. Não se pode pensar, fora das possibilidades da língua em que se pensa. São os limites da pintura, da música, da filosofia. (...) Assim, os limites de uma língua são o nosso impensável maior. Assim problemática alguma se pode

fechado» (...), este dédalo em que a problemática da palavra se enclausura, sem o «fio de Ariadne» que nos aponte uma saída». (José Antunes de Sousa, Vergílio Ferreira e a filosofia da sua obra literária, pp. 390-391). Veja-se o texto «A morte do homem», publicado no terceiro volume de Espaço do Invisível e que resume bem a complexa relação de Vergílio Ferreira com o estruturalismo (pp. 27 – 34).

estabelecer seja sobre o que for, que não tenha de desenvolver-se dentro dessa língua. (P, 9,10)

Como quer que seja, os momentos de aparição constituem, na realidade, momentos de um «espanto mudo» (IMC, 47),33 sobretudo porque a palavra lhes é sempre póstuma – o reino fulminante da evidência é pois um reino vazio de palavras, o que, por outro lado, não deixa de levantar alguma perplexidade, porque, se é verdade que as palavras é que criam o real, como tantas vezes Vergílio Ferreira afirmou com base na ficção que escreveu, e se o pensar e sentir prévios à palavra são mais reais do que quando a palavra vem posteriormente dizê-los, então deveria haver igualmente uma palavra para designar essa realidade prévia à própria palavra. O escritor refere-se a este aspecto preciso quando formula a seguinte questão, que deixa evidentemente sem resposta: «Mas que palavra diz afinal o meu terror, no instante em que presencio um desastre e que depois posso efectivamente reconstituir em palavras?» (IMC, 310). A esta interrogação de Vergílio Ferreira parece presidir a convicção, tantas vezes sugerida pelos seus textos, de que as palavras são os olhos da linguagem, já que tudo o que existe existe sempre através da linguagem e esta não pode, por isso, ver-se a si própria, como os olhos humanos também não podem: «os olhos com que vemos e nos não podemos ver são a própria evidência de tudo estar existindo através de nós mesmos» (EI1, 47). O mesmo se passa com a linguagem: as palavras com as quais ela olha o mundo e não pode olhar-se a si própria são a própria evidência de tudo estar também existindo através de si mesma.

No pensamento vergiliano, a disfunção entre o pensar e o sentir e a palavra que os diz tem pelo menos duas razões completamente diferentes, porém criando ambas o mesmo espaço de silêncio – o impossível constituído pela palavra e o seu carácter inevitavelmente póstumo ou tardio: a primeira razão prende-se com a (im)possibilidade de, cedo ou tarde, a linguagem ser capaz de reproduzir o real e o real do pensar e do

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A mudez da plenitude e do êxtase é reiteradamente expressa na obra de Vergílio Ferreira mesmo em contexto não ficcional: «muito tarde eu concluí, um pouco à força, que as grandes emoções só são transaccionáveis com um mínimo de palavras que as digam» (Conta-Corrente 5, p. 238); «a emoção que consigo nasce das palavras que a situam mas não dizem» (Conta-corrente. Nova Série IV, p. 94); «frente ao mistério, à medida que dele nos aproximamos, à medida que se nos torna evidente, as palavras rareiam, vão ficando para trás e o que traduz perfeitamente a nossa reacção, o que decisivamente manifesta o mistério, é uma pergunta muda, o «arrepio», a respiração suspensa, uma força obscura que nos dilata, nos esvazia de nós, nos desventra de nós, nos faz perder esta relação de tudo connosco, com o centro de nós, uma expansão de nós próprios até aos olhos que nos estalam desorbitados... A zona primordial em que nos defrontamos com o mistério é uma zona de silêncio. Quando a palavra surge, já estamos longe. Nas situações-limite a linguagem é o puro espanto.» (Invocação ao Meu Corpo, p. 219).

sentir; a segunda relaciona-se com o facto de, mesmo num registo de impossibilidade, a linguagem não ser nunca simultânea do sentir e do pensar. Ciente desta dupla disfunção, Vergílio Ferreira apresenta como tarefa do escritor a de tentar fazer coincidir o indizível (enquanto ilimitada capacidade de representar o pensar e de fazer coincidir o momento do dizer com o momento do sentir) com o dizível, constituindo sempre este último apenas um exercício de aproximação ao primeiro:

Porque ao embate de um sentir, que é da original relação com o mundo, a palavra é um impossível ou chega já um pouco tarde. (...) Mas o trabalho do poeta é esse – fazer coincidir o indizível com o dizível, utilizando o estratagema de passar não bem pela palavra mas pelo enigma que a circunda e se esqueceu, não pelo que ilumina mas pelo iluminar. (P, 10)

No lado oposto do seu espectro significativo, o silêncio aparece na ficção vergiliana também como factor de somatização de distúrbios psíquicos, à semelhança do que Christiane Makward referiu acerca de certas personagens de Marguerite Duras, que revelam «la somatisation du silence dans un comportement asthénique».34 Carlos M. F. da Cunha chama a atenção para a presença de personagens loucas no universo diegético de Vergílio Ferreira35, que o autor co-responsabiliza pela instituição da irrealidade na ficção do escritor, mas a questão é, segundo julgamos, um pouco mais complexa, sobretudo pelo ambíguo estatuto de alguns dos seus narradores em relação ao problema da loucura e pelos efeitos que este descolamento do real provoca na linguagem com que se exprimem algumas personagens.

O senso comum ensina, através de um conhecido provérbio, que de poeta e louco todos temos um pouco, à semelhança do que afirma José Saramago n’ O Ano da

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Christiane Makward, «Structures du silence / du délire», in Poétique, nº35, p. 316. Também Adam Jaworski se referiu a este aspecto quando, recordando as conclusões de Ihab Hassan, lembrou que «the extreme psychological states such as madness, ecstasy, outrage, and so on are filled by silence when words have failed to provide adequate expression for them». (The Power of Silence. Social and Pragmatic Perspectives, p. 163).

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Cf. Carlos M.F. da Cunha, op.cit., p. 137: «A presença de personagens loucas no universo diegético (v.g. a mãe, em Para Sempre) aponta assim para o absurdo de determinadas situações. (...) Estas personagens e situações assinalam o irreal da existência, segundo a visão do mundo do narrador». O fascínio de Vergílio Ferreira pela loucura e pelos seus processos de deslocamento da linguagem é efectivamente real, ao ponto de o escritor se referir no seu diário a um encontro no metro com uma figura idêntica aos loucos da sua ficção: «mas sentados nos nossos lugares, vimos ao lado uma velha louca que cantava. Cantava por sobre o ruído do metro e assim a sua loucura era mais forte do que a técnica do nosso transporte. De súbito, porém, calou-se e eu pude olhá-la melhor. Levava um chapéu de palha com uma flor vermelha como a glória. E mascava interminavelmente o seu vazio. De vez em quando parava de mascar e Goya vinha logo copiar-lhe a boca para uma sua gravura. Eu fitava-a sempre, fascinado pela sua loucura, que me é sempre terrível e fascinante» (Conta-Corrente. Nova Série II, 126).

Morte de Ricardo Reis - «a grande diferença entre os poetas e os doidos é o destino da loucura que os tomou».36 Por seu turno, em Aparição, no decurso da visita de Chico à casa do Alto de São Bento, Alberto Soares sustenta que «a loucura era acessível a todo o homem, era do destino de todos: chamamos «loucos» apenas aos que não regressam dela...» (A, 233), como que estabelecendo, e praticamente na sequência da máxima saramaguiana, uma importante diferença entre, por um lado, o sentido substantivado da loucura, entendida como destino de todo o homem que se interroga a si e ao mundo, e, por outro, a sua personalização no louco, explicitamente definido como alguém que, cumprindo à semelhança do homem comum o seu destino de “viajante”, empreende uma viagem da qual é depois incapaz de regressar. Segundo estas asserções, os loucos e os poetas parecem instituir uma espécie de separação ou descolamento entre eles próprios e a realidade de onde partem, como se ambos dela se ausentassem de modo semelhante, embora o destino desse descolamento acabasse posteriormente por divergir – o destino dos escritores corresponderia, obviamente, à corporização da escrita, entendida esta como termo ou regresso da viagem empreendida, e o destino dos loucos coincidiria com a perda total de contacto com o mundo, impossibilitando-se assim o seu regresso ao ponto de partida.

Porém, o mais interessante é que tanto as palavras de Alberto Soares como a citação de Saramago acabam por facultar a distinção entre os dois grandes tipos de doenças mentais, e em que a ficção de Vergílio Ferreira é efectivamente muito fértil, por via da referência que fazem ao diferente destino que pode tomar a loucura ou ao regresso dela que pode ou não existir - as neuroses caracterizam-se por uma alteração do humor, por uma tendência para o desenvolvimento de estados depressivos ou ainda por uma percepção eventualmente errada da realidade em que vive o sujeito, mas não há nunca, como ocorre nas psicoses, um corte com o real nem sequer a criação de uma outra realidade delirante ou alucinatória, da qual normalmente não há regresso possível. Curiosamente, na obra de Vergílio Ferreira temos personagens neuróticas e personagens psicóticas, embora a ambas corresponda um estatuto muito diferente no seio da ficção do escritor: se as neuroses atingem sobretudo (mas não exclusivamente37) os narradores

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José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Lisboa, Caminho, 1984, p. 39. 37

Veja-se, por exemplo, as personagens Ana e Bailote de Aparição, Miguel de Até ao Fim e Luc de Na Tua face, revelando todos eles uma crise mais do que evidente: Ana vivia uma crise, para que Alberto Soares trouxe a justa palavra, e que culminou posteriormente no seu desvario religioso; Bailote matou-se, depois de a sua mão ter perdido a serventia para semear, preferindo-lhe o absoluto da destruição, como quando Sofia quebrou todos os brinquedos depois do braço partido de apenas uma boneca; por seu turno, Miguel e Luc aceitaram ambos morrer por não encontrarem as respostas necessárias para justificar a vida.

dos seus romances, a verdadeira loucura atinge exclusivamente personagens não narradoras e isto por uma razão muito óbvia - porque esse seu estado de loucura ou descolamento, a verificar-se, afectaria directamente a sua capacidade de narração, inviabilizando-se assim o próprio acto de escrita.

Efectivamente, é muito clara a tendência dos narradores vergilianos para desenvolverem situações emocionais obsessivas, na sequência de uma série de interrogações metafísicas que os próprios não conseguem deixar de colocar-se; os narradores de Vergílio Ferreira são, pois, personagens sempre em dilaceração, porque sujeitas à dor de pensar e à amarga certeza de se saberem mortais debaixo de um céu sem Deus. Alberto Soares, Paulo, Jorge, Adalberto ou Jaime carregam o vago e incerto estigma da depressão, cujo destino é a escrita que produzem, ao contrário das personagens realmente loucas, cuja forma de expressão se traduz num linguajar imperceptível ou mais radicalmente no puro silêncio, como sucede com a D. Aura de Estrela Polar, a já referida Águeda de Alegria Breve, a mãe de Paulo de Para Sempre, Carolino de Aparição e Mónica de Em Nome da Terra. De um modo ou de outro, todas estas personagens apresentam os sinais distintivos dos loucos, ou dos que se ausentaram da realidade sem possibilidade real de regresso – a alteração no modo de olhar e na capacidade de linguagem. Na realidade, todas elas têm no olhar a marca do descolamento, evidenciando igualmente (tanto por excesso como por defeito) graves perturbações na utilização da linguagem, perturbações essas que, nos casos de um descolamento mais total, se convertem em mutismo completo, como é o caso de Águeda, de Mónica e da mãe de Paulo.

Desde a primeira apresentação de Carolino, o narrador insiste no olhar esgazeado da personagem e na voz ridícula e irritante que era já o prenúncio da sua loucura, finalmente comprovada quando, mais tarde, no decurso do seu julgamento, as frases que proferia deixaram por completo de fazer sentido:

- Que foi? Que foi? – perguntou o Bexiguinha na sua voz fina e cantada da sua terra e que assim o enfraquecia como a uma criança. (...) // - Como se sabe, senhor doutor? – perguntou-me o Carolino na sua voz ridícula, que tanto me desmanchava (A, 67). Há quem proponha um exame psiquiátrico ao pobre Bexiguinha. Nas suas declarações há zonas obscuras como pegos, os homens que as registam, que as examinam, hesitam, contornam-nas, à procura do caminho interrompido (A, 270). 38

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Atente-se, pois, em outros momentos da obra onde o modo de olhar e as perturbações de linguagem de Carolino assinalam o distúrbio mental da personagem: «E tu, pobre Bexiguinha de olhos alagados de

Tal como Carolino, a mãe das gémeas de Estrela Polar tinha «uma vozinha fina como uma pena no ar» (EP, 77) e não havia dentro dela compostura, como afirmava Adalberto. D. Aura não conseguia manter com os outros uma conversa com sentido e perdia-se do seu convívio com o olhar longe, torcendo sempre as franjas do xaile ou compondo com o seu riso alheado «o ar equívoco de tolinha» (EP, 80). No romance Em Nome da Terra, por seu lado, a degradação de Mónica acabou igualmente por traduzir- -se no progressivo apagamento do seu olhar e da sua fala, o qual parecia sublinhar, mais até do que a previsível decadência do seu corpo, o irremissível descolamento que se havia provocado na personagem: