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Silêncio e contextualização do discurso

Capítulo III – O silêncio como Poética da Escrita

1. Silêncio e contextualização do discurso

É por demais sabida a importância concedida por Vergílio Ferreira ao acto de escrita e ao acto de escrever, acto este que é, nas palavras de Fernanda Irene Fonseca, «muito mais do que a presença implícita da actividade subjacente à produção de uma extensa obra. É uma presença explícita e obsessiva: como tema, como vivência ficcionalmente encenada, como exercício heurístico, gesto indutor do pensamento e da criação pela palavra.»1 Ora, sucede que as várias modalidades dessa presença da escrita no universo vergiliano (como tema, como ficcionalização do tema, como exercício heurístico ou movimento de escrita) parecem ser fortemente condicionadas pela conformação do silêncio no seio da sua poética da criação artística, determinando não só o tipo de relacionamento que Vergílio Ferreira estabelece com o processo de criação, como também o que estabelecem com o mesmo processo criativo algumas das suas personagens ficcionais – e isto quer se trate de silêncios voluntários como de silêncios involuntários, quer eles sejam valorados positiva ou negativamente, quer decorram de uma particularização de tacere quer surjam como função de silere.

Antes de mais, parece-nos que o pólo positivo do silêncio na poética vergiliana da criação cumpre, por assim dizer, três funções distintas, embora virtualmente

1

Fernanda Irene Fonseca, «Vergílio Ferreira, Escrever: o título inevitável», separ. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Línguas e Literaturas, II Série, Volume XX (In Honorem Doutor Joaquim Fonseca e Doutor Jorge Osório), Tomo II, Porto, 2003, p. 480.

complementares e actuando todas de um ponto de vista externo em relação ao discurso da arte em si – a função de emolduramento do discurso artístico, a função de incubação do processo criativo e a função de sinalização deíctica da escrita. A função de emolduramento desenvolve-se preferencialmente no terminal de recepção do discurso, uma vez que o silêncio surge aqui como signo contextualizador da recepção do texto artístico (não necessariamente literário, portanto), instituindo-se assim como uma das condições necessárias ao próprio acto de recepção e interpretação da arte, como sugere Vergílio Ferreira neste texto de Conta-Corrente:

Fomos ontem de tarde à Gulbenkian ver a exposição «De Manet a Chagal». Não trago o meu espírito em condições porque não trago o meu físico em condições. De modo que foi penoso percorrer os quadros com a parte disponível de mim com que gosto de ver quadros. Aliás, havia excesso de próximo a empastar-me o que me restava de disponibilidade. E sobretudo um quadro preciso de vê-lo longamente e a sós para uma conversa entre os dois como deve ser. Um quadro vê-se em silêncio e repouso de alma, não com pagode à volta e o seu cheiro a sovaquinho. (CCNSI, 204)

Deste modo, o silêncio não é aqui um obstáculo ao entendimento da arte, gerando ambiguidade ou indeterminação, mas torna-se, ao contrário, num factor potencialmente dissuasor de todo o processo de permanência da ambiguidade ou da indeterminação, erigindo-se assim em garante da perceptibilidade do discurso artístico. No romance Cântico Final, a escritora Guida, que parece dar continuidade a tantos dos posicionamentos de Vergílio Ferreira, contempla um dos quadros de Mário (o quadro O Galo) instalada numa moldura de silêncio, que é, obviamente, póstuma ao fazer do quadro, e que caracteriza não o quadro como um objecto de arte onde o silêncio intervenha, mas o modo como a personagem é levada a contemplá-lo:

Um momento, olhou em roda a muralha de quadros, foi enfim para o Galo. Fechava os olhos, abria-os de súbito, desmesuradamente,

(- ... para colher em flagrante a sua revelação...),

aproximava-se, desejava tocar a tela, «saborear a pasta», afastava-se até muito longe. Por fim, tomou uma cadeira e sentou-se à distância normal. Um halo carinhoso aquece-a como um afago. Silêncio bom em volta, aberto em diadema como a tarde apaziguada que cresce lá fora. (CF, 105)

Sem este silêncio positivo que enquadra e suporta a leitura do texto artístico, dificilmente seria possível a interpretação deste último e muito menos o posterior discurso verbal do sujeito receptor que, por vezes, sobrevém ao silêncio da contemplação. Depois de transportar consigo de parede em parede (quer na casa da praia quer na casa do Campo Grande) uma reprodução do quadro Les Demoiselles d’Avignon de Picasso, sujeitando-o deste modo ao silêncio diário da contemplação, o pintor Daniel do romance Na Tua Face pôde finalmente dizer sobre ele o que o quadro aos poucos lhe foi pedindo que dissesse – não apenas a descrição objectiva do desenho das quatro mulheres em pé que compõe a tela, mas o significado maior do grotesco das suas formas, onde Daniel encontra um tom de profecia que assinala, na arte, o início da presença do «feio como pertença da essencialidade do homem» (NTF, 108; ver Anexos).

Deslocando agora a análise do silêncio do pólo da recepção artística para o pólo da emissão, verificamos que ele cumpre ainda a função de incubação do processo criativo, facultando a germinação da escrita e apresentando-se como uma quase exigência do espaço destinado à escrita, ou da «oficina da letra», como prefere chamar- -lhe Fernando Rodríguez de la Flor:

A oficina da letra é um espaço silencioso, onde a alma elabora o seu mel, segregando a nostalgia activa de uma vida que se manifesta sempre num para além da página, noutro lugar, que não é já o da pura representação, onde trabalha um imaginário incapaz de re- -investir na vida o que acumulou em sonhos e idealizações. O quarto revela assim o seu parentesco declarado com a cripta. Os trabalhos feitos nele são de índole funerária: revestir paixões extintas; iluminar com a luz da memória os dias apagados; fechar os olhos às estrelas, para melhor as recriar.2

A escritora Guida de Cântico Final é, assim, um excelente exemplo de utilização do silêncio como parte integrante da sua oficina da escrita – na realidade, a personagem teve sempre uma vida de solidão, vivida muito na intimidade de si própria, e que ela soube transformar numa espécie de enxoval de escrita para a sua vida futura, acumulando factos, emoções e palavras que, multiplicando-se «como tecidos em cultura» (CF, 72), acabaram mais tarde por explodir em escrita:

2

Fernando R. de la Flor, Biblioclasmo. Por uma prática crítica da lecto-escrita (Trad. de Pedro Serra), Lisboa, Livros Cotovia, 2004, pp. 221-222.

Assim, Guida fora amealhando na sua solidão toda a riqueza da vida. Factos, ideias, palavras ficavam a incubar na sua estufa, multiplicavam-se como tecidos em cultura, inchavam na asfixia. E juntamente com isso ia acumulando os seus desgostos, esperanças, ternura – toda a fortuna com que um ser humano se pode reconhecer diante de outro ser humano. Bens para a dádiva, para a fraternidade, bens para um dia. Como um enxoval... Foi nesta solidão íntima de tudo que ela criou o seu primeiro livro. Contos fantásticos, sufocantes, em que não havia personagens, mas objectos que se animavam dentro de um fluido inicial e viscoso. (...) Lendo os seus contos, sentia-se um mergulhar surdo de grutas onde quaisquer pequenos objectos boiavam inteiros à superfície do silêncio coagulado. (...) Mundo de coisas indistintas, das breves vozes profundas, das vozes que os raros ouvem. (CF, 72)

Esta experiência do silêncio como condição necessária à germinação da escrita é, como não podia deixar de ser, igualmente referida por Vergílio Ferreira, mesmo ou sobretudo nos momentos em que ela é vivida em registo de impossibilidade:

Eu tenho mas é de pensar a sério em meter-me (a prazo) num convento para estar um pouco comigo, ou seja com o que me importa. De preferência um convento com uma regra de silêncio que permita apenas sons irreprimíveis como o espirrar ou o tossir. Todos os outros seriam proibidos, mesmo esses em que estais a pensar. Mas é um inferno, estou quase privado de mim. (E uma cadeia? uma hipótese a considerar. Talvez matando alguém para me porem no segredo.) (CCNSIII, 127).3

Não já em registo de impossibilidade, mas agora em registo de consciente negação do silêncio como condição propiciadora da escrita, a também escritora Cidália de Cântico Final, a «prolífera escritora vã» (CF, 43) nas palavras do narrador, vivia a sua actividade de escritora sobretudo no exterior de si própria e não na intimidade do escrever (como Guida, de que Cidália é o perfeito oposto), passeando a sua mania da cultura sempre com um livro na mão ou debaixo do braço4, banalizando assim a

3

Isto porque «há todavia um bem de que [o escritor] não é obrigado a privar-se, que é seu, fechado de portas adentro, tão da sua privacidade, como tudo o que até nem a mulher presenceia, e é o encantamento de escrever. Mundo de incrível deslumbramento, de graça mais que divina, de plenitude e transporte e sublimidade mais do que mística, ele é em público para o artista não a sua realidade, mas a sua perversão, não o lugar ou o natural destino de realizar-se, mas o de ser expulso do paraíso. Estar comigo, habitar o prodígio e o êxtase, a iluminação. E não haver aí razão para nada ser a mais. O estar em público é dividir o indivisível, bater de um sol claro o que é da penumbra do imaginário, submeter a um carimbo da crítica alfandegária como legal ou ilegal o que se sofreu em amor e solidão. Fechar a porta. Ser em mim o que sou, longe do ódio, do vexame, do calculismo frio da destruição.» (Conta-Corrente. Nova Série III, pp. 126-127).

4

Cf. Cântico Final, p. 43: «a detestável Cidália (prolífera escritora vã, quarenta anos alarmados, sempre inquieta de doenças, com inúmeras histórias na vida, já não bem escandalosas, mas apenas divertidas, e um inevitável livro na mão)»; «Que imagem de ti persegues tu na vida, com essa doce mania da

sacralização do escrever e a intimidade silenciosa em que para Guida (e, naturalmente, para Vergílio Ferreira) esse acto de escrita deveria poder consumar-se. Cidália, um pouco como a generalidade do grupo que se reunia em casa de Cipriano, desconhecia as potencialidades comunicativas do silêncio e por isso as suas palavras tendiam à futilidade, encarando a arte preferencialmente como um bem de consumo ou «um problema de transacção imediata» (CF, 43):

As conversas aos serões, que nasciam de um nada – um silêncio de cigarros ao fogão, uma notícia de jornal, um pequeno acontecimento diário -, não eram bem «fúteis». Mas numa comunicação de «palavras», todo o problema tende à futilidade – todos o sabiam: as questões fundamentais não afloram à comunicabilidade sem vencerem a resistência do pudor... Assim, o que ficava disponível para os serões era quase só o que vivia à superfície. A própria arte era tratada não como a profunda realidade da comunhão silenciosa, mas como qualquer outro problema de transacção imediata. Falava-se normalmente de um livro, de um quadro, de um concerto, como de coisas, de realidades manuseáveis, que se passam de mão em mão, distraem um momento e esquecem. (CF, 43-44).

No romance Na Tua Face, por seu turno, a editora de Coca & Lira que Daniel visita (na realidade, as «Edições Corvo») parece transformar-se a seus olhos num espaço de criação literária não exactamente para escritores, mas apenas para um conjunto, bastante mais prosaico, de simples operários do verbo, para os quais a actividade da escrita, naturalmente sujeita ao horário do funcionalismo público, não era senão um bem de consumo, transaccionável como qualquer outro, e não já «um capricho elitista de vadios» (NTF, 152). Quando Daniel sobe ao terceiro andar da editora, encontra-se com um mundo onde o silêncio efectivamente impera, mas não é este nem o silêncio germinador da actividade criadora nem sequer, como facilmente se compreende, aquele que decorre da comunhão com o sagrado possibilitada pela arte. Em vez disso, Daniel depara aqui com o silêncio da assepsia e do vazio da criação, com o silêncio de uma actividade apenas regulada pelas leis do consumo e pela auscultação do mercado e que continuamente vai brotando de «celas incomunicáveis» (NTF, 152), de «luras de trabalho» (NTF, 153) onde se afanam os operários da escrita, assim se

«cultura», o teu eterno livro debaixo do braço, os teus olhos cansados de procurar? Donde vens tu? De que inferno? Quantas histórias sobre ela... Casara, divorciara-se, viera para Lisboa, fora queimando sucessivamente os editores da capital, com aquela desgraçada vocação de romancista...» (Ibidem, p. 101).

subvertendo por completo o estatuto de religação ontológica que Vergílio Ferreira atribui ao acto de criação artística em geral e ao acto de criação literária em particular:

E Coca imaginara, na América havia, concebera uma produção maciça, massiva, com a garantia de postos de trabalho para os próprios trabalhadores da escrita. (...) Pensar a escrita como produção de mercado não como capricho elitista de vadios. Pensar o livro como objecto de consumo. Pensara a edição como a indústria de um marceneiro ou serralheiro. (...) Subo num elevador a um terceiro andar. É um prédio novo, sintético, esterilizado, envidraçado. Mas extraordinariamente silencioso no recanto de uma praceta nova para os Olivais. Trabalham umas vinte pessoas, não se ouve um rumor. Silêncio geológico de uma gruta. Pessoas cruzam-se com papéis nos corredores, trocam às vezes palavras inaudíveis. (NTF, 151-152).

Por último, verificamos ainda que o silêncio se mostra capaz de cumprir uma função de sinalização deíctica da escrita, caracterizando e determinando contextualmente o espaço de criação artística no universo ficcional e não ficcional de Vergílio Ferreira. Embora não seja sempre um espaço de «uma longa escrita nocturna», como afirma Fernanda Irene Fonseca acerca de Aparição5, o espaço da escrita romanesca e ensaística corresponde, em Vergílio Ferreira, e justamente a partir de Aparição, a um espaço de silêncio e solidão voluntária ou involuntariamente procurado pelas vozes narradoras na escuridão da noite (como ocorre, por exemplo, em Aparição, Invocação ao Meu Corpo ou Em Nome da Terra), na chuva que bate intensamente na vidraça (Carta ao Futuro), no raio de sol que ao longo do dia (e da escrita) vai iluminando os livros do escritório (Rápida, a Sombra), na tarde imóvel de calor (Para Sempre) e nas paredes nuas da cela (Estrela Polar e Nítido Nulo).6

5

Fernanda Irene Fonseca, «Uma longa escrita nocturna», in Vergílio Ferreira: a celebração da palavra, pp. 61-68.

6

Cf. sobretudo Aparição, pp. 25, 48; Invocação ao Meu Corpo, pp. 39, 68, 85; Em Nome da Terra, p. 137; Carta ao Futuro, pp. 14, 20, 55; Rápida, a Sombra, pp. 35, 38, 45, 95, 153, 194; Estrela Polar, pp. 10, 25, 35, 70, 318. António da Silva Gordo chama a atenção para esta mesma função do silêncio que, actuando a «um nível prétextual, (...) é condição do acto da escrita, da rememoração e da reflexão. Mas no romance de Vergílio Ferreira, em que todas essas actividades se sobrepõem e confundem, é a própria situação existencial da arquipersonagem que se define em termos de solidão e silêncio, num tempo presente feito quase só de passado e num espaço apenas habitado de memórias. É a situação ideal para que o homem possa assumir todas as responsabilidades pela própria existência sem muletas nem favores alheios.» (António da Silva Gordo, A arte do texto romanesco em Vergílio Ferreira, p. 527).