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A situação linguística de Moçambique

No documento [download integral] (páginas 101-106)

Em Moçambique, com uma população de 19 milhões, mais de 95% dos seus habitantes têm uma das 23 línguas da família bantu como sua língua materna. Segundo o relatório estatístico de 1990, menos de 10% dos moçambicanos com idade superior a 5 anos fala português. Falar português em Moçambique signifi ca, segundo Perpétua Gonçalves (1996:15), pertencer a uma minoria, em termos numéricos, que teve acesso a educação (25%) e residir nas zonas urbanas (17%). A língua portuguesa, apesar de não ser língua moçambicana, é falada com alguma regularidade, segundo Ngunga (2002), desde 1500, altura em que se estabelece na província de Sofala a primeira feitoria de Sena. Desde então a língua portuguesa tem convivido com as línguas nacionais, nem sem- pre de forma pacífi ca, tendo inclusivamente conseguido alcançar o estatuto mais alto que uma língua pode alcançar, o de língua ofi cial e apelidado como “língua de unidade nacional”.

Dos aspectos assinalados na introdução, a grande difi culdade é conciliar duas posições aparentemente contraditórias – manter a diversidade linguística, que caracteriza a nação moçambicana dentro do espaço global e da lusofonia em

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particular, e a necessidade da intercomunicação entre os grupos linguistica- mente diversos nesses espaços.

Apesar de não ser uma questão de decisão fácil, quanto ao caminho a seguir, sobre a multiplicidade de línguas que o país tem e a necessidade de comuni- cação entre todos os grupos, mas acreditamos que o caminho não deve ser a perpetuação da subordinação das diversas línguas moçambicanas, nem a tentativa de encontrar uma língua única que pudesse satisfazer as necessida- des comunicacionais de todos. Moçambique é um país constituído por um mosaico cultural, daí a diversidade linguística, e os seus habitantes reconhe- cem isto e defendem a manutenção das suas características e das suas línguas, que são a expressão mais saliente da sua cultura. Mas reconhecem, também, a necessidade de se comunicar com outros grupos e estar integrado na socie- dade moçambicana, na lusofonia e no mundo globalizado. Nesta perspectiva, as línguas nativas seriam as que representam os diversos grupos, e a língua portuguesa seria aquela que unifi ca os moçambicanos e, no âmbito da lusofo- nia, aquela que, teoricamente, serviria de língua de identifi cação dos diversos povos que se expressam ofi cialmente em português. Na verdade, Moçambique não é uma nação no sentido de Portugal, França ou Inglaterra, assim como não existem moçambicanos como existem portugueses, franceses ou ingleses. Moçambique é apenas uma expressão geográfi ca, e moçambicanos apenas um apelido que distingue aqueles que vivem dentro das fronteiras do território chamado Moçambique e aqueles que vivem fora dele. Portanto, Moçambique é um conjunto de várias nações dentro das delimitações geográfi cas estabeleci- das aquando da partilha da África pelas potências colónias.

A língua portuguesa, que é a ofi cial, foi, nas palavras de Firmino (2002), imposta nas ex-colónias portuguesas em África como símbolo da identidade cultural portuguesa e tornou-se um dos mais importantes instrumentos da política assimilacionista promovida pelas autoridades portuguesas. Como consequência desta ideologia colonial, as autoridades coloniais baniram as línguas nativas dos domínios institucionais, o que condicionava a mobilidade social ao conhecimento de português. Estas situações ocorrem da mesma maneira, com maior ou menor intensidade, em todos os países africanos colo- nizados por Portugal, ante o inconformismo dos nativos da terra.

Parece ser algo impossível a estruturação política do país de forma que a diver- sidade linguística dos vários grupos que formam o mosaico cultural moçambi- cano se mantenha e se assegure a intercomunicação necessária para uma vida em sociedade entre os diferentes grupos. O caminho que se tem seguido até aqui tem sido o de se optar por uma língua, a portuguesa, que se impõe sobre as outras.

A independência de Moçambique, a libertação do homem e da terra, bem como a construção do Estado novo, assentava em alguns pressupostos e princípios fundamentais que estão inscritos na sua carta constitucional, como sendo:

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a) a defesa da independência e da soberania; b) a consolidação da unidade nacional;

c) a edifi cação de uma sociedade de justiça social e a criação do bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos;

d) a promoção do desenvolvimento equilibrado, económico, social e regional e) do país;

f) a defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei;

g) o reforço da democracia, da liberdade, da estabilidade social e da har- monia social e individual;

h) a promoção de uma sociedade de pluralismo, tolerância e cultura de paz;

i) o desenvolvimento da economia e o progresso da ciência e da técnica; j) a afi rmação da identidade moçambicana, das suas tradições e demais valores socioculturais; entre outros.

Para a concretização desses ideais a questão da unifi cação da diferença e a distinção do único se mostra inevitável para a realidade de um país com mui- tas línguas e muitas culturas diferentes entre si, mas que persegue um ideal da unidade nacional.

A Constituição da República de Moçambique estabelece, no seu artigo nono, que o “Estado valoriza as línguas nacionais como património cultural e edu- cacional e promove o desenvolvimento e utilização crescente como línguas veiculares da nossa identidade.” Acrescenta no artigo décimo que a língua portuguesa é a língua ofi cial.

A formulação constitucional sobre as línguas nacionais que, em certa medida, transporta o espírito que iluminou as decisões tomadas aquando da indepen- dência nacional em 1975, sobre o lugar da língua portuguesa, tem suscitado refl exões divergentes sobre como é que o país poderá alcançar os desígnios constitucionais quando deixa de fora a maioria dos moçambicanos não-falan- tes de português. O principal pressuposto desta visão era, segundo Firminio (2002), de que a construção da Nação era impossível sem a integração de todos os segmentos da sociedade moçambicana, o que só poderia ser atingido com o uso das línguas autóctones em complementaridade com português. Ao mesmo tempo em que privilegiava português como língua étnica e regionalmente neu- tra, o discurso ofi cial subestimava outras diferenças sociais que eram reforça- das e indicadas pelo conhecimento e uso de (formas específi cas) de português. A relação entre o português e as línguas nativas é uma relação de confl ito, com os dois grupos em extremos opostos. Pode-se, então, afi rmar que o por- tuguês pode ser usado para discriminação e exclusão, e esta língua torna-se num veículo de luta pelo poder entre os diferentes grupos socioeconómicos. A resolução do confl ito linguístico em Moçambique não é algo consensual,

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conforme exemplifi ca Gonçalves (1999: 31), citando um documento de 1983 emanado do Gabinete do Secretariado de Estado da Cultura, em que se consi- derava necessário promover o uso das línguas nacionais, uma vez que a polí- tica linguística deve refl ectir a identidade moçambicana. Nesse documento chama-se a atenção para o facto do português não ser conhecido pela maioria da população, não podendo ser considerada uma língua moçambicana. Mas para além desta formulação política, nada mais foi dito sobre este assunto. O silêncio nesta matéria parece ser a opção encontrada para se evitar o que se teme poder ser um foco de confl ito tribal.1

Esta situação linguística é obviamente um grande obstáculo para o alcance do tipo de sociedade a que o país aspira, pelo menos de acordo com o que está estipulado na Constituição da República, e urge uma profunda refl exão e uma transformação da situação.

Qualquer solução linguística deverá tomar em conta os problemas que estão intimamente relacionados com a Língua, que na sua essência não são proble- mas linguísticos pela sua natureza, mas problemas em que a língua joga um papel relevante, tais como:

- Alto índice de analfabetismo – O desempenho profi ssional não-competitivo, com baixa produtividade e inefi ciente desempenho profi ssional, e geralmente condições económicas injustas, restrições de oportunidade de emprego, injusta distribuição de riqueza, e outras consequências são resultado, em parte, do inadequado desenvolvimento educacional, que, por sua vez, é consequência da imposição da utilização exclusiva da língua portuguesa no ensino formal. A não-utilização das línguas nativas no processo educacional, pelo menos até há bem pouco tempo, fez com que a vida dos moçambicanos começasse, educa- cionalmente falando, a partir dos sete anos, quando se inicia na escola formal onde a língua de instrução era unicamente o português. Toda uma experiên- cia de vida e convivência desde o nascimento até os sete anos normalmente é ignorada por ter sido adquirida na língua nativa que não possuía conversão no sistema ofi cial. Por essa razão, as estatísticas apresentam índices elevados de analfabetismo quando essas mesmas pessoas aprenderam a fazer cálculos, identifi car objectos e outras competências adquiridas nas suas línguas nativas. - Participação política inadequada (isto resulta, em parte, do facto de que a principal língua do discurso político é o português) e a continuação da discri- minação linguística e o confl ito intergrupo.

1 Por um lado, é reconhecido que não existe capacidade, quer fi nanceira, quer técnica, de se adoptar as 23

línguas nativas como línguas de comunicação formal, por outro, outras propostas sugerem a escolha de uma língua que pudesse abarcar o maior número de falantes, e ser esta adoptada como língua nacional, mas também se reconhece o potencial de confl ito de tal decisão e a difi culdade de ser aceite pelos restantes grupos linguísticos.

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O Parlamento moçambicano é um clássico exemplo da discriminação linguís- tica. Naquela que é considerada a Casa do Povo, os únicos que têm usado da palavra são os poucos que tiveram a oportunidade de aprender a língua de Camões. O povo não fala na Casa do Povo. O sistema judiciário é conduzido em português, limitando também o uso do direito constitucional à justiça àqueles que não tem a capacidade de manusear a língua portuguesa. A lín- gua de trabalho na função pública é o português, limitando o acesso àqueles que não falam esta língua. Ultimamente, mesmo para empregado doméstico, exige-se o mínimo de conhecimento de português.

- Alienação cultural e a eminente ameaça à diversidade cultural do país, atra- vés da mudança etno-linguística e a assimilação da cultura ocidental.

A língua joga papel importante em cada um desses problemas, e a planifi cação linguística deve contemplar políticas e estratégias para abordar o papel da lín- gua na resolução desses problemas, assegurando que a língua é um facilitador e não um obstáculo para o desenvolvimento em cada um desses aspectos. O processo comunicacional em Moçambique é conduzido na língua portu- guesa, quer ao nível da economia, da política, da educação, e principalmente da comunicação social: à excepção da Rádio Moçambique, o principal órgão de radiodifusão em Moçambique, e as estações de rádio comunitárias e rurais, quase todos os outros meios de comunicação social usam preferencialmente português nas suas transmissões. As línguas nativas, embora não muito usadas nas comunicações formais ou ofi ciais, ocupam um espaço visível no relacio- namento entre pessoas do mesmo grupo étnico ou regional, e são amplamente usadas, talvez mais do que o português, no convívio diários, nas cerimónias religiosas, por exemplo.

A língua portuguesa sempre teve um lugar de prestígio em todos os processos comunicacionais, enquanto às línguas nativas era dado pouco valor económico e educacional. Na verdade, as línguas nativas, que são a maioria em termos numéricos e minorias em termos políticos, sempre foram vistas, mesmo pelos seus falantes, como representação do analfabeto, do tradicional, do rural, do culturalmente atrasado e outras tantas qualifi cações que sujeitam estas línguas a um estatuto inferior. O português é a principal língua em Moçambique, em termos de poder e de prestígio, que conseguiu ganhar o estatuto de língua de unidade nacional.

Gonçalves (1999:17) refere que o português se torna uma espécie de língua do poder estabelecido. É a única língua do partido-governo: nas reuniões políti- cas, os dirigentes apenas utilizam português, recorrendo a tradutores e intér- pretes nos casos em que a população apenas fala a língua bantu.

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