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O português que falamos

No documento [download integral] (páginas 136-143)

Em 1975, exceptuando os angolanos de cultura média, que utilizam correcta, sistemática e fl uentemente a língua portuguesa, e os angolanos que não a fala- vam ou apenas podiam utilizar reduzido numero de vocábulos portugueses, detectavam-se dois níveis de domínio e uso do idioma português. O primeiro grupo estava conformado por indivíduos de origem rural e o segundo era de origem urbana.

Ambos se expressavam, um e outro, com certa difi culdade, na língua portu- guesa, mas curiosamente, animavam-se, na prática, a uma inesperada fl uidez no discurso.

Os dois grupos, tanto o de proveniência rural directa, como o de origem urbana, utilizavam um léxico mínimo, mas diferente em cada caso, e era fácil diferençá-los entre si no modo de construção da frase e no emprego de calão, regionalismos e pronúncia. Existia nítida vantagem para o habitante da cidade, ou seja, para aquele indivíduo que tinha mantido contacto mais directo e pro- longado com os portugueses.

Por hábito, ou por falta de termos, ou porque lhes resultava mais fácil expres- sar-se desse modo, era normal que no discurso em português do camponês, se insinuassem bastantes termos autóctones, puros ou aportuguesados, para sustentar a fl uidez das frases.

Contrariamente, o habitante da cidade, nas raras oportunidades em que ten- tava expressar-se numa língua nacional, que normalmente não praticava nem dominava, enfrentava-se com a necessidade de recorrer a palavras portuguesas para sustentar um discurso fl uido.

A partir da Independência, e devido às mais fortes deslocações da popula- ção, atraída pela cidade ou pressionada pela guerra, começaram a observar- se importantes modifi cações neste panorama linguístico, devido ao uso mais frequente e sistemático do português.

É certo que o habitante urbano já não convivia tão directamente com os por- tugueses, mas era obrigado a dar maior uso à língua comum ou veicular, por necessidade da sua abrupta inserção na mistura cosmopolita da cidade. Por seu turno, o indivíduo procedente do interior do país, forçado a deslocar- -se e a comunicar fora da sua área dialectal, também necessitou agilizar o seu português, para dialogar com os indivíduos de outras origens, ou com os que apenas falavam português.

Analisando os dois casos, verifi ca-se que ambos os grupos aumentaram subs- tancialmente o uso do português, com pequenas variantes em relação à maior ou menor percentagem de mistura de termos de distintas procedências, que passaram a ser utilizados na linguagem mista e quotidiana dos dois grupos, e que, conjuntamente, começaram a apontar fortemente para o nascimento de um “novo crioulo”, senão para um português angolanizado.

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Este fenómeno também incursionou rapidamente pelos jornais, rádio e televi- são. Inicialmente, porque houve necessidade urgente de recrutar pessoal para preencher numerosos lugares que fi caram vazios no jornalismo e no funciona- lismo público, abandonados pelo êxodo de profi ssionais.

Por outro lado, também pela necessidade real de adopção de angolanismos, passou a impregnar-se o português de termos autóctones e expressões popu- lares importadas das línguas nacionais, que nitidamente facilitavam a comu- nicação local.

Estas palavras, aplicadas à agilização da linguagem quotidiana, iniciaram um processo de “angolanização” do português, passando a ter vigência perma- nente, vocábulos como Maka, Bwe, Mujimbo, etc.

Por razões específi cas da conjuntura nacional, tendo em conta a extensão do território, o analfabetismo, a heterogeneidade da população e a sua disper- são geográfi ca, o grande caudal informativo de Angola é veiculado exclusiva- mente por rádio e com uma utilização maioritariamente com a língua ofi cial, o português.

A rádio é o único meio factível de usar-se na prática, na medida em que man- tém e alarga o uso da via oral da tradição angolana, ampliando a comunicação oral. E a língua portuguesa, por questões de condicionamento técnico da rádio e da multiplicidade de línguas e dialectos não extensivos a todo o país. Pela sua difusão e estrutura, o idioma português constitui preciso e precioso instrumento de comunicação, tanto interno como externo, que necessita ser conservado e protegido como bem de inestimável valor comum.

Ainda nos anos 60, os países da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), conseguiram tornar o português em lín- gua ofi cial de trabalho da então Organização de Unidade Africana (OUA). Angola e Moçambique, numa região marcadamente saxónica, conseguiram tornar a língua portuguesa num instrumento de trabalho na SADC, uma organização muito importante, tendo em conta o desenvolvimento regional daquela parcela de África.

Quando os cinco países africanos lusófonos se juntaram a Portugal e ao Brasil, e mais recentemente Timor-Leste, como membros de pleno direito, no seio da ONU, e também como uma organização cultural, começamos a falar de uma língua falada por mais de 200 milhões de indivíduos.

Como dizia, é necessário conservar a língua portuguesa como bem comum destes mais de 200 milhões de falantes. Se assim não acontecer, se cada país, região ou grupo de indivíduos que fala português, inventar o seu português particular e exclusivo, escrevendo-o sem o mínimo respeito pelas regras fun- damentais de articulação geral e comum, regras de ortografi a e regras grama- ticais, esta língua pode deixar de ser comum e perderá a sua força.

Isto não signifi ca que esteja pugnando por um idioma rígido, fechado e imu- tável. Discordo dos puristas, porque penso que as línguas, para se mante-

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rem vivas, devem actualizar-se permanentemente, inclusive com a celeridade imposta pelos tempos actuais, sem desdenhar da aquisição de novos elemen- tos, neologismos, enriquecendo o léxico e moldando-as às necessidades das populações que as utilizam.

Existe uma linguagem aportuguesada e característica dos angolanos que tende a consolidar-se como um ramo da lusofonia. Existem expressões e termos angolanos ou regionalismos introduzidos no português que se fala na rua e que facilitam a troca de ideias entre angolanos.

Esta situação vaticina um fenómeno de expansão idêntico àquele que, a certa altura, também determinou a chamada invasão da língua portuguesa por bra- sileirismos, hoje assimilados e legitimados.

A Globalização obriga-nos a encarar novas perspectivas, a muitos níveis e, seguramente, ao nível da linguagem. Principalmente quando queremos pensar o Espaço Lusófono como uma área cultural e comunicacional.

Tinha pensado em começar esta comunicação precisamente enfatizando que, na virada do milénio, a tecnologia mudou substancialmente a formatação da comunicação, e a vivência diária do fenómeno comunicacional; que é pos- sível falar-se mesmo da existência, como defende a professora brasileira da Universidade Federal Fluminense Marialva Barbosa, “de uma comunicação transfronteira”, de maneira unívoca, para uma situação como a nossa, o espaço lusófono.

Mas, olhando para os países africanos lusófonos, para o Brasil e mesmo para Portugal, é fácil notar que muitas vezes a conceituação do fenómeno comu- nicacional, as palavras criadas para conceituar a mudança que se opera no cenário mediático, com a introdução de tecnologias cada vez mais de ponta, não se refl ecte no quotidiano de milhões de indivíduos.

Em Luanda, as condições sociais de vida de milhares de pessoas produzem fenómenos comunicacionais singulares, que não guardam relação estreita com a questão tecnológica.

Apesar de haver uma ideologia massifi cadora que coloca a tecnologia como verdadeiro suporte de inserção compulsória na modernidade, ou pós-moder- nidade, como querem alguns, esse aparato tecnológico não faz parte do quotidiano de milhões de pessoas, muitas delas que nem sequer viram um microcomputador de perto e só conhecem a tecnologia pelas imagens que esparsamente recebem via televisão.

Falamos hoje com desenvoltura de um mundo virtual que, de facto, é virtual para milhões de pessoas comuns no espaço lusófono. Virtual no sentido de não poder ser percebido, sentido, possibilitado.

E são essas pessoas comuns que fazem a história do dia-a-dia no seu viver diferenciado, vivem uma realidade concreta, na qual ganha importância máxima a criação de mecanismos, nem sempre evidentes, de sobrevivência.

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E para tal usam os mesmos ícones comunicacionais que nós. Usam a mesma língua que nós.

Falar em comunicação transfronteiras e em interculturalidade é, pois, perce- ber também a exclusão existente hoje em relação à tecnologia, em relação às condições de vida de milhões de pessoas, que, vivendo à margem da tecnolo- gia, sequer podem sonhar com este mundo conceituado, estudado e de, certa forma, romantizado.

Constatar que falar de comunicação transfronteiras e interculturalidade é per- ceber que no âmago dessa discussão contemporânea está também a questão dos excluídos. Os excluídos da história. E os excluídos, com a sua cultura par- ticipa desse mundo, do nosso espaço lusófono entendido como área cultural e comunicacional, dessa construção que afi nal é intercultural, dessa comunica- ção que pode atravessar fronteiras, como pode se materializar em cada um dos nossos países, em pequenos lugarejos, abandonados pelas políticas públicas e pelos aparatos da tecnologia.

A comunicação transfronteiras conhece bem as fronteiras. As fronteiras do social. Somente quando esses aparatos são socializados, de maneira ampla, pode-se dizer que produzem uma cultura, uma linguagem, certos usos sociais, que permitem, pois, a tecnologia avançar em suas dimensões sociais e culturais.

Embora contemporâneo de uma mesma cena, o espaço lusófono, entendido como uma área cultural e comunicacional, tem que se ter sensibilidade para perceber os desejos, os princípios, as razões que produzem a existência e que possuem uma lógica própria, capaz de ser desvendada.

O aparecimento e o desenvolvimento de novas formas instantâneas de comu- nicação produziram uma rede de informações jamais vista e a impressão de que dominamos o conhecimento do mundo e, sobretudo, o seu futuro.

Entretanto, essa informação continuou atrelada a escolhas subjectivas e que engendram mecanismos de poder. Assim, a media ao mesmo tempo em que coloca o mundo ao alcance, divulga pseudo-informações ou silencia, transfor- mando-se em instrumento de esquecimento.

Ao lado de tudo isso, como ver o espaço cultural e comunicacional lusófono neste mundo cada vez mais globalizado?

Uma globalização ou espacialização na qual o futuro para as sociedades intei- ras é determinado do exterior pelas chamadas forças de integração mundial. A mundialização unifi ca a economia, com a ajuda indispensável da técnica, na qual redes de comunicação e imagens consumistas banalizadas e difundidas pelos meios audiovisuais ocupam lugar central. Cada sociedade, dentro desta óptica mais ou menos comum, escolhe a sua modernidade.

Para o caso do nosso espaço ou área cultural e comunicacional seria uma modernidade que signifi ca também exclusão e acirramento de questões his-

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tóricas, vividas como pertencentes a dois mundos: o Mundo gigantesco dos países como Portugal e Brasil como pólos de tecnologia e o mundo da massa carente, dos despossuídos como o são os restantes membros da comunidade. Frente a este universo, a media constrói um outro lugar: o de uma construção narrativa, vivida de forma particular. Nessas narrativas celebra-se o instante, o imediato, ao mesmo tempo em que se observa uma indiferença à duração. Nesse sentido, é preciso, também recriar com a mesma característica de ace- leração, o passado.

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Televisões, nações e narrações

Refl exões sobre as identidades culturais

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