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A sobreposição da mulher à natureza e ao sagrado –

Vimos no primeiro capítulo que o ser humano se relacionava com o meio ambiente como seu continuum. Todos os elementos da terra e do céu eram sagrados. O ser transcendente, que gera a vida, que comporta os mistérios de vida e morte, era reverenciado nos primórdios em imagens femininas que presentificavam a grande Deusa. A terra e a grande Deusa eram vividas como fontes da vida.

Ao trazermos a realidade do culto à grande Deusa presentificamos uma outra forma do ser humano lidar com o feminino. Ao longo do tecimento desta reconstrução de um fragmento da nossa história, compreendemos que o culto à grande Deusa era uma forma de valorização do feminino enquanto criação e que este se sobrepunha, já desde outrora, à figura da mulher.

Como mencionado, (Capítulo – 1) parece natural que o ser transcendente, que gera a vida, que comporta os mistérios de vida e morte, fosse vivenciado e representado nos primórdios por uma Deusa. Assim, a terra e a imagem da mulher foram colocadas de um lado, como promotoras da vida. Isso ocorreu devido à própria experiência humana. O ser humano partia assim da própria experiência para conceber e se relacionar com o mundo. Fazia parte da vivência do ser humano nascer de uma mulher, ser amamentado e criado

por ela, assim como ver os frutos da terra crescerem. Fazia parte da experiência humana ver o corpo definhar e não mais reagir à vida e, ao presenciar o nascer das coisas, criar a concepção do re-nascer destas. Todas estas experiência relacionadas à mulher e ao feminino não eram renegadas, e sim reverenciadas.

O ser humano, ao longo de seu desenvolvimento, adquiriu novos padrões, criou instrumentos e desenvolveu o aprendizado que permitiu o controle sobre tantas coisas a sua volta. Conseqüentemente, a instrumentação que o fez cultivar a terra o fez desejar tê- la como morada e dela ter um controle, apoderar-se dela, dominar, ter posses, necessidade de controlar e de se sentir o menos possível em desamparo.

Ao compreendermos esse trajeto, percebemos que o ser humano, no seu evitamento da experiência de dependência, a re-negou e reafirmou a sua supremacia sobre todas as coisas como forma de defesa. Se era tido que a Deusa, a mulher e a natureza é que detinham o poder-força, naturalmente era delas que o mesmo teve que ser retirado, expurgado. Teria sido assim que o sombreamento e a negatividade do feminino e da mulher se realizaram.

Uma nova forma de ser e estar no mundo surge para o bem e para o mal, podemos dizer simplesmente como um processo que teve que se dar e ocorreu desta maneira. Mas houve um preço, o preço da desvalorização da natureza, da mulher, a exploração da terra e, com isso, o desvalimento da própria natureza humana que não é constituída puramente de razão, mas também de batimentos cardíacos, de sangue que pulsa, de lembranças do carinho e aconchego do colo materno, de intuição, de superstições e de medos. E é a tudo isso que o ser humano, homem e mulher, passam a negar, a recalcar, a expurgar, como um demônio as trevas, com o diferencial que o feminino (e a mulher associada ao feminino) permanece como o representante de tantos males .

A grande Deusa faz parte de uma realidade histórica. Realidade submersa, recalcada. Como conseqüência, os atributos antes con-sagrados a ela, posteriormente ressurgem de forma patológica, como sintomas, como atributos das mulheres e do feminino de forma negativizada. O mesmo ocorre com os aspectos ligado à morte que antes não eram negativizados mas sim faziam parte de um todo, do círculo vida-morte- renascimento. Posteriormente, o aspecto morte/destruição fica apenas como algo maligno, destrutivo por si e sem finalidade, a não ser ânsia de destruição e devoramento atribuído à figura da mulher, enquanto sexuada, e à mãe, enquanto aquela que pode engolfar para dentro seu rebento. O desejo de destruição que faz parte

do humano fica como atributo de um só sexo, centrado em um só personagem. Os homens fazem guerra com razão, com a razão, ironicamente, e como se não houvesse destrutividade neste ato. A destrutividade atribuída à mulher é uma desgraça inerente a ela e que dela emana, e que os homens devem temer. É uma destrutividade louca e sem parâmetros, diferente da destrutividade dos heróis e de Deus, alicerçada com o objetivo moral, de crescimento.

As potencialidades, antes atribuídas ao feminino, são esvaziadas. O feminino fica como lugar do horror ou do vazio.

Ao avançar na compreensão do culto à grande Deusa e na mudança de concepção de divindade, procurei deixar claro que esta mudança foi impulsionada pela própria forma que o ser humano se desenvolveu ao longo da história. Tal desenvolvimento, como vimos, alterou a forma do ser humano ver a si próprio, se relacionar com o meio e conceber o sagrado. Podemos pensar que estas novas formas são as que impulsionaram a mudança da concepção de divindade. Ao nos determos na compreensão das mudanças de relação do ser humano com o meio e de sua forma de viver o sagrado, nos deparamos com uma nova forma do humano ver a si mesmo, com a concepção de indivíduo. Vimos que esta se alinha à hipervalorização do Um, do poder, do falo e do masculino. Por sua vez, o outro pólo desta hipervalorização nos remete à compreensão do recalque e negativação do feminino. Reconhecemos que neste início de século estamos presenciando movimentos em diferentes âmbitos que buscam uma re-valorização dos aspectos ligados ao feminino.

Não se trata de mero acaso. Há uma premência do humano em buscar integrar diferentes aspectos que estão desligados na sua vivência atual e, entre estes, o feminino e masculino em comunhão.