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Textos que suscitam a compreensão do conceito de feminilidade

No texto “O Estranho”, FREUD (1919) busca a compreensão do que despertaria os sentimentos de horror, de estranhamento.

Aborda a questão a partir do conto de Hoffman “O Homem de Areia”. Compreende que a figura da boneca Olímpia, tida antes como uma pessoa real, causaria horror não somente por aliar animado-inanimado na mesma figura, mas por remeter à morte do pai, à castração e à atitude feminina do personagem Natanael em relação ao pai.

Ainda neste mesmo texto, FREUD assinala que os homens neuróticos sentem uma certa estranheza em relação aos genitais femininos. Relaciona este medo ao fato dos genitais femininos serem a entrada para o interior materno, antes familiar.

Entre as causas de produção do sentimento do sinistro, cabe assinalar a presença do duplo, que remete ao retorno ao indiferenciado.

O duplo, pertencente a épocas iniciais da vida, antes da separação eu/não-eu, volta agora como aterrorizante.

FREUD afirma que o que provoca o sentimento de estranhamento são impressões que reanimam complexos recalcados ou ainda quando alguma impressão parece confirmar convicções primitivas (FREUD, 1919, 248).

Podemos aqui pensar em dois registros do horror ao feminino:

• seria por estar aliado à posição feminina do menino em relação ao pai e, portanto, depreender a “perda do pênis”, que o feminino poderia ficar neste registro do que causa horror.

• o feminino (figurado na mulher) figuraria como o que causa horror, por remeter ao interior materno, lugar outrora conhecido e de indiferenciação.

Estes aspectos se encontram intimamente relacionados à própria forma do psiquismo funcionar, ou seja, o nosso psiquismo se protege de ser remetido, em forma de vivências/imagens/sensações, a situações anteriores pertencentes à época da indiferenciação eu/não-eu, seja a vivência de morada no interior materno, seja a fase posterior da dependência absoluta.

No texto “Cabeça de Medusa”, escrito em 1922 e publicado em 1940, FREUD centra-se no registro da castração como explicação da figura mitológica . A ausência do pênis é motivo de horror, e as serpentes simbolizam a negação desta ausência, daí sua multiplicação numérica.

“Decapitar = castrar. O terror à Medusa é então um terror à castração, terror associado a uma visão. Por inumeráveis análises conhecemos sua ocasião, ocorre quando o menino que até então não havia acreditado na ameaça da castração vê um genital feminino. Provavelmente, o de uma mulher adulta, coberto por pêlos, na verdade, o de sua mãe.” (FREUD, 1922, 270)

Em “O Problema Econômico do Masoquismo” (1924) podemos depreender a questão do horror ao feminino pela aproximação deste à dependência e à mulher. Por sua vez, o horror à mulher é resultado da sobreposição desta à “mãe castrada”.

Neste texto, FREUD afirma que o masoquismo se oferece a nossa observação em três formas: como uma condição a que se assujeita a excitação sexual (masoquismo

erógeno), como uma expressão da natureza feminina (masoquismo feminino) e como uma forma de conduta na vida (masoquismo moral).

Como o masoquismo feminino deriva do masoquismo erógeno, vamos passar ao aprofundamento deste primeiramente. Para FREUD, a excitação sexual é resultado de uma série de processos internos, um efeito da intensidade destes, quando ultrapassam determinados limites. A um aumento de dor ocorreria uma coexcitação libidinosa. A ligação de dor e prazer derivam da necessidade da pulsão de vida dominar a pulsão de morte com o intuito de manter a vida. Assim, parte da pulsão de morte é colocada para fora, parte fica retida (masoquismo erógeno).

“O masoquismo erógeno acompanha a libido em todas suas fases de desenvolvimento, e lhe toma emprestado suas diferentes figurações psíquicas. A angústia de ser devorado pelo animal totêmico (pai) provém da organização oral, primitiva; o desejo de ser golpeado pelo pai, da fase sádico-anal, que segue aquela; a castração, ainda que desmentida mais tarde, intervém no conteúdo das fantasias masoquistas da fase fálica da organização; e assim, as situações de ser possuído sexualmente e parir, características da feminilidade, derivam da organização genital definitiva.” (FREUD,1924, 170 e 171)

O prazer em receber dor, próprio do masoquismo erógeno, se encontraria como base do masoquismo moral e masoquismo feminino.

FREUD inicia a sua explicação do que denomina masoquismo feminino a partir da análise das fantasias de homens que culminam na masturbação ou satisfação sexual por si só e que têm como figuração as cenas que se encontram, no caso dos perversos masoquistas, realizadas, como, ser amordaçado, amarrado, sofrer golpes de forma dolorosa, ser maltratado de qualquer modo, submetido a obediência incondicional, ser denegrido. FREUD compreende que o que o masoquista faz é representar fantasias que levam à satisfação da realização do desejo de ser tratado como uma criança pequena, dependente e rebelde que demanda punição. Acrescenta que estas fantasias, quanto mais ricas, mais reais nos aproximam da descoberta que estas põem este homem numa

situação característica da feminilidade, que significa ser castrado, ser possuída sexualmente e parir. Assim, FREUD explica a escolha da denominação masoquismo feminino. Vemos claramente como FREUD realiza uma sobreposição do infantil à mulher e à feminilidade. 22

É interessante assinalar que as fantasias propriamente ditas remetem o homem a um lugar de uma criança que demanda punição, algo muito diferente para a mulher, do ser possuída no coito ou da vivência de parir um filho. Apenas a concepção da mulher como castrada poderia fazer paralelo com a fantasia de punição para o menino e posteriormente para o homem. Temos aqui novamente um exemplo no qual FREUD sobrepõe a feminilidade à figura da mulher enquanto a que “sofre” algo passivamente. Desta forma, é atribuído um prazer masoquista à vida libidinal da mulher e suas possíveis conseqüências, uma vez que o movimento tido como passivo é lido aqui por FREUD como castra-dor, logo ligado à dor. Mas o papel da mulher no coito remete a uma receptividade-ativa e possibilitadora de prazer e o parir remete ao dar à luz, ao criar, ou seja, temos outras formas de conceber a feminilidade e estas se alinham à forma de pensarmos o feminino, o que também remete a criação, receptividade e continência. A mulher “contém o homem” durante o coito, dá continência-contorno aos movimentos do homem no coito, a mulher contém o bebê numa gestação.

Seria oportuno lembrar a concepção de dois psicanalistas. Segundo NUNES, o problema do masoquismo é fundamental para a construção do conceito de feminilidade (NUNES, 2000, 228).

BIRMAN revê a questão do masoquismo efetuando uma outra compreensão do conceito de feminilidade:

“Com a segunda teoria das pulsões, o masoquismo não é mais apenas uma questão de mulheres, não só porque FREUD fala de um desejo masoquista em homens, como também porque o conceito de masoquismo erógeno recoloca em cena a questão dos destinos das pulsões. Este então é pensado como um dos fundamentos da clínica, que passa a ser centrada sobre a força da pulsão e da recusa sistemática do sujeito em aceitar e reconhecer sua

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Aqui o termo feminilidade está se reportando ao registro da sexualidade feminina (parir, ser castrada, se submeter ao coito).

condição originária de desamparo face à qual ele não tem saída, pois essa força vai sempre se impor com seus efeitos traumáticos. Diante dela, uma das saídas prováveis que se apresentam ao sujeito é a busca desesperada de encontrar um outro a quem oferecer seu corpo e alma. Ao enganchar-se no outro, o sujeito estabelece com ele uma relação de servidão como forma de tentar evitar a dor do desamparo, afastando a angústia que lhe é correlata, ao preço de se submeter e escravizar-se ao outro.” (BIRMAN, 1996, 46)

Como vimos, FREUD nomeia essa posição assumida pelo sujeito de masoquista. Temos aqui uma dupla vertente ao mesmo tempo que FREUD associa o infantil, a mulher e a feminilidade, “liberta” o termo feminilidade de estar restrito à mulher. À medida que o feminino vai sendo desarticulado da imagem da mulher, temos mais clareza do que FREUD quer dizer quando fala da recusa à feminilidade, em homens e mulheres, recusa que aparece transfigurada em horror à castração no homem, e na mulher, em inveja do pênis. Os dois sexos teriam que se haver com a feminilidade. Se lutam contra a feminilidade, é por necessitarem se defender do desamparo, da condição originária de todos os seres humanos.

Vamos nos deter nesta compreensão no próximo capítulo.

No “Rascunho M” (1897), FREUD declara que o elemento essencialmente recalcado em homens e mulheres é sempre o feminino.

No final de sua obra, quarenta anos depois, no texto "Análise Terminável e Interninável" (1937), repete esta fórmula de maneira, poderíamos dizer, mais amadurecida. E neste ponto que entendo que o conceito de feminilidade se consolida dentro da psicanálise não restrito à mulher e a sua sexualidade. FREUD refere que um dos maiores impedimentos ao processo analítico é a recusa à feminilidade.

Vamos assinalar como e quando tal afirmação aparece no texto freudiano. Seriam três os principais impedimentos à cura analítica:

1 - o fator econômico, ou seja, a intensidade pulsional;

2 -o desvio do analista, ao trabalhar o material do paciente, das fontes que lhe causam mal-estar;

3 - "a rocha de base", a recusa à feminilidade, um dos maiores motivos de resistência à análise.

"Tanto nas análises terapêuticas como nas de caráter é sublinhável o fato de que dois temas se destaquem e declarem guerra ao analista de forma não usual...Os dois temas estão ligados à diferença entre os sexos; um é tão característico do homem quanto o outro o é da mulher. Apesar da diversidade de seu conteúdo, são correspondentes manifestos. Algo que é comum a ambos os sexos, em uma forma de expressão outra. Esses dois temas em recíproca correspondência são, para a mulher, a inveja do pênis - querer alcançar a posse de um genital masculino - e, para o homem, a revolta contra sua atitude passiva ou feminina para outro homem. Isso foi destacado muito cedo na nomenclatura psicanalítica como conduta frente ao complexo de castração, e mais tarde Alfred Adler impôs o uso da designação, inteiramente acertada para o caso do homem, de ‘protesto masculino’; creio que ‘desautorização da feminilidade’ teria sido, desde o começo, a descrição correta deste fragmento tão assombroso da vida anímica dos seres humanos" (FREUD, 1937, 251-252).

Ao comentar este texto de FREUD, a psicanalista SANTA CRUZ (2002) escreve:

“Positivando o conceito de feminilidade aqui empregado, poderíamos afirmar que, ao colocá-la como uma meta analítica - a admissão da feminilidade, tanto para homens como para mulheres - FREUD estaria postulando como um final de análise a possibilidade de um modo de funcionamento psíquico que superasse a lógica fálica. A feminilidade apareceria então como o equivalente à castração simbólica, que colocada como meta e marco do fim da análise, poderia também ser nomeada de diversas outras formas: reconhecimento e acolhimento da alteridade, possibilidade de outramento, potência de produção da diferença,

engendramento autopoético, potência de criação de um estilo singular". (SANTA CRUZ, 2002, 35).

Igualmente faço esta leitura do texto freudiano, compreendendo que a recusa da feminilidade aparece de formas diversas na cultura, uma vez que a feminilidade (enquanto atributo da mulher, imagens/representações da sexualidade feminina), o feminino (enquanto dimensão do humano, mas recoberto de preconceitos por ser sobreposto à mulher e à feminilidade) e a mulher ficam como marcas da incompletude, da falha, do não-fálico, do obscuro a ser temido, ignorado, depreciado ou negado.

Prossigamos nesta linha de pensamento acompanhando o psicanalista BIRMAN.