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O enigma: ponte para futuras passagens do feminino

6.a - O feminino além-falo

Como verificamos, FREUD vai além ao formular o conceito de feminilidade enquanto enigma e ao enunciar que um forte impedimento à análise é a recusa à feminilidade. E, neste sentido, faz da compreensão do conceito pedra fundamental.

É no “Rascunho M” (1897) que, pela primeira vez, afirma que o elemento essencialmente recalcado em homens e mulheres é sempre o feminino, afirmação que aparece amadurecida em "Análise Terminável e Interninável" (1937), tal afirmação aparece amadurecida.

Entendo que o FREUD denomina recusa à feminilidade está incluído no que trabalho como recalque e negativação do feminino. Temos a leitura do falo como o que recobre, em um extremo, o inominável (por exemplo, a castração da mãe) e em outro nossa própria condição humana de sermos mortais, frágeis diante dos acontecimentos que nos ultrapassam de-fora/de-dentro, frágeis diante da morte, da doença, da necessidade do outro.

BIRMAN nos remete a uma das novas formas positivadas sob a qual o feminino aparece recentemente na psicanálise. O feminino aparece também nomeado como feminilidade, não colado à figura da mulher, mas sim como uma forma do ser humano situar-se em relação às coisas, a si, ao mundo. O feminino como registro em que o humano se relacionaria de uma forma não centralizadora, controladora e universal, como registro do que é particular, relativo, voltado para o não-controle das coisas, implicado com a singularidade.

Tal pensamento se alia às indagações acerca da subjetividade centrada no registro fálico, na construção da subjetividade baseada no ter e dominar, no fazer e no poder e que entra em crise e busca outras formas de circulação.

Estas questões nos esclarecem acerca da busca e abertura de tantos campos de questionamentos acerca do falo e da castração como únicos norteadores da constituição do sujeito dentro da psicanálise. Neste campo, WINNICOTT se destaca ao não centralizar a constituição do ser humano no falo, na castração e no Complexo de Édipo, e sim dentro das relações do pequeno recém-nascido com seu ambiente-mãe. Ao ofertar à psicanálise novos elementos a serem somados à concepção do humano, a enriquece e abre para pensarmos mais amplamente a condição humana.

Retomando BIRMAN (Capítulo – 2), vimos que o psicanalista alia sua leitura do conceito de feminilidade ao erotismo, ao compreender que é da incompletude que nasce o desejo. Tal concepção está na base do pensamento freudiano e da releitura deste por LACAN. Não me aprofundei em tal formulação, penso apenas que é uma das formas possíveis de se pensar o feminino. Não me detive em comparar as diferentes concepções do feminino entre os diferentes autores. Se assim o fizesse, aqui já poderia encontrar uma contraposição desta forma de BIRMAN traçar o conceito com o elemento feminino de WINNICOTT, uma vez que a formulação de WINNICOTT está ligada ao Ser e precede as relações de objeto nas quais entrarão em jogo a pulsão e o desejo. Para tal empreendimento, teria que abarcar toda a concepção de sexualidade em FREUD e em WINNICOTT, traçando seus paralelos e diferenças.

A concepção de Birmam segundo a qual a feminilidade aparece como a outra face do desamparo, aproxima-se da minha concepção do feminino positivado. O feminino teria sido negativizado por ter sido aliado a experiências que remetem ao descentralizar-se, ao “perder-se”, “submeter-se”, como vimos.

É necessário termos um olhar para o desamparo como o centro da experiência humana. É a partir do desamparo que se cria a primeira relação. É a partir da potencialidade do bebê que surge um Ser e, em seu desdobramento, o desejo.

Como vimos, LACAN abre para pensamos outras formas do humano lidar e vivenciar o outro Gozo.

A concepção lacaniana do outro Gozo denuncia que a lógica fálica e a linguagem não recobrem toda a riqueza do humano. Entrelacei tal conceito a algumas das questões trazidas ao longo do trabalho, como o culto à grande Deusa e a passagem ao monoteísmo, o que inclui a mudança da vivência das coisas do mundo como sagradas, a separação do sagrado e do profano, a sexualidade como pecado e a desvalorização do lugar da mulher; além da vivência do corpo como algo que se carrega, ao invés do corpo como lugar em que se habita, o corpo como o que também somos.

Trabalhei a hipótese de que a cultura ao alimentar a supremacia dos valores fálicos renegou o que poderíamos nomear como o outro Gozo, relegado a ser sentido de forma patologizante, como dor e submissão. Tal hipótese se entrelaça com muitos pontos já abordados, como a compreensão da recusa à feminilidade dita por FREUD, uma vez que tal recusa se refere a um entendimento do lugar de abertura e entrega como um lugar menor; com a questão da desvalia da mulher e a sobreposição desta ao feminino no negativo; a leitura que separa o corpo do que se é, que desvaloriza as sensações em detrimento da linguagem e do pensamento.Foi possível ver ao longo de todo trabalho que tais formulações foram construídas historicamente e se repetiram dentro do discurso da psicanálise.

6. c - A busca da vivência do Ser

Na minha busca em compreender tantas nuances que cobrem a questão do feminino dentro da psicanálise, me deparei com a formulação do elemento feminino em WINNICOTT. De pronto, pensei, eis que aparece em WINNICOTT o vértice da criação, do Ser, do mais intrínseco vinculado ao feminino.

A idéia de recuperar parte de nossa História, notadamente sobre o culto à grande Deusa, já estava presente. Pensei: WINNICOTT retoma algo que estava lá, em algum lugar esperando ser nomeado. Assim como em seu paciente, o elemento feminino estava cindido, podemos dizer que na nossa cultura temos uma certa cisão do feminino, no que diz respeito à não integração com o elemento masculino.

Quando me refiro ao recalque do feminino na cultura e na psicanálise, refiro-me ao fato que este, enquanto positivado, fica à sombra, à margem, sem reconhecimento.

WINNICOTT parece ter sentido uma certa dúvida quanto ao uso do termo feminino. Afinal, como vimos ao longo do trabalho, o termo está carregado.

WINNICOTT, em nota de rodapé, chama a atenção para a escolha dos termos, diz que continuará a empregar tal terminologia (elementos femininos e masculinos) por não conhecer outros termos descritivos apropriados e que os termos ‘passivo’ e ‘ativo’ com certeza não seriam adequados, para continuar então tecendo sobre sua linha de pensamento recorre aos termos disponíveis. (WINNICOTT, 1971[1975],109).

Poderíamos então nos perguntar: por que esta terminologia?

Sabemos que o uso das palavras nunca é neutro ou fruto de mero acaso.

Ao longo da pesquisa foi possível verificar que o termo feminino ao ter sido ligado à mulher “serviu”para denominar o medo da submissão, da indiferenciação, da dependência, do desamparo.

Em WINNICOTT o feminino retorna positivado. ao ser descolado da mulher e seu lugar sexual, o termo retoma sua força enquanto criação e potencialidade.

Assim, a denominação de elemento feminino à condição do Ser faz muito sentido, por mais problemas semânticos que aparentemente possa nos trazer.

Digo isto, pois vimos que há historicamente uma ligação do feminino à origem, à criação. Ligação esta que ficou oculta na medida que houve a negativação e recalque do feminino.

Como já dito, na Introdução, utilize dados históricos e da teoria psicanalítica acerca do processo do recalque/negativação do feminino, porém é possível verificar que minha exposição é perpassada por uma leitura ontológica e teológica.

Na verdade, o próprio percurso guiou a este caminho. Inicio por dados da nossa História (nossa origem). Sigo as pegadas deixadas pelos textos em que FREUD trabalha a feminilidade, ligada a sexualidade e a mulher, mas que abre para um enigma. Enigma este que já reflete uma questão maior que diz respeito a como lidamos com a nossa condição humana. Ao chegar a formulação do elemento feminino em WINNICOTT, a concepção de criatividade, do Ser, da origem, abrem para uma leitura do feminino ontológica, pois ligada à própria constituição humana. Questão interessante para um aprofundamento futuro. Penso que ao longo do trabalho tal posição esteve presente, uma

vez que as concepções do ser humano sobre sua origem e seu fim afetam a sua forma de ser e estar no mundo, a sua forma de vivenciar o feminino e o masculino.