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3.4 A TRADIÇÃO E OS PROCESSOS CIVIL E PENAL

3.4.2 O Que a Tradição Entregou ao Processo Civil?

3.4.2.3 A Socialização do Processo

A socialização do processo busca a superação dos defeitos do liberalismo. O Estado deve ir além da passividade afastada de preocupação social. Esse modelo objetivava, portanto, o aumento expressivo dos poderes da magistratura para cumprir também uma função social. Os magistrados assumem o papel de educadores, ensinando o direito vigente, e de representantes dos pobres.363

As partes perdem espaço, e os poderes dos juízes são reforçados.

360 CAPPELLETTI, Mauro. O processo civil no direito comparado. Belo Horizonte: Cultura Jurídica, 2002.

p. 39-40.

361 DAMASKA. Mirjan R. I volti della giustizia e del potere: analisi comparatistica del processo. Bologna: Il

Mulino, 1991. p. 186.

362 NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas

processuais. Curitiba: Juruá, 2008. p. 71-77.

Para os defensores dessa perspectiva, a concepção liberal beneficia os ricos diante da igualdade meramente formal. O processo deve ser pensado com preocupação política, social e econômica. Por isso, caberia ao juiz representar o lado mais fraco, estabelecendo o equilíbrio entre as partes.

Oskar Bülow defendia um processo centrado no juiz como protagonista, com uma aplicação livre do Direito pelo juiz. Apresentava uma teoria da criação do direito pelo juiz.364 A magistratura deveria compensar as desigualdades sociais, atuando como protagonista e criadora do direito.365

Nesse ponto é interessante destacar os ensinamentos de Hommerding e Motta. Para os autores gaúchos, na atualidade, o ponto central a ser estudado no processo é a questão da “legitimidade democrática”. A partir dessa observação, apresentam o que, com André Cordeiro Leal, chamam de “paradoxo de Bülow”, consistente na tentativa de utilizar os ensinamentos do autor para defender o controle da decisão judicial366

, quando Bülow desejava exatamente o contrário, ou seja, conferir protagonismo ao juiz. Em realidade, na linha do

364 HOMMERDING, Adalberto Narciso; MOTTA, Francisco José Borges. O que é um modelo democrático de

processo? Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 73, jan./abr. 2013. Disponível em: <http://www.amprs.org.br/arquivos/revista_artigo/arquivo_1383852047.pdf>. Acesso em: 11 out. 2016.

365 Dierle Nunes lembra que esse perfil do juiz social possuía, na época, como grande exemplo, o “bom juiz”

francês Magnaud, que aplicava o Direito a partir de uma visão sentimental e humanitária (absolvendo uma mãe pela subtração de um pão; condenando os pais diante da violência contra o filho...), servindo de base para entendimentos que apostam na “boa escolha” dos juízes. (NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008. p. 81). Por isso, Ronaldo Brêtas de Carvalho nomina de complexo de Magnaud o exercício da jurisdição marcada por esse sentimento patológico de se considerar um “bom juiz”. DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Responsabilidade do estado pela função jurisdicional. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 134.

366 Afirma André Cordeiro Leal: “Diante da importância dos magistrados, o controle da relação processual

permitiria, em última análise, o controle de todo o direito vigente, e somente mesmo a relação jurídica e a subordinação nela pressuposta poderiam dar sustentação a esse projeto.

Por esses motivos, entendemos possível afirmar que o processo, sob a taxionomia de relação jurídica, já surge, em Bülow, como instrumento da jurisdição, devendo essa ser entendida como atividade do juiz na criação do direito em nome do Estado com a contribuição do sentimento e da experiência do julgador.

Há um aspecto, no entanto, que, embora Bülow não considerasse problemático, atingiu toda a chamada ciência do processo derivada de suas teorias. Como já advertiu Karl Lorenz (1997), Bülow não cuidou de explicar como se poderia controlar essa atividade jurisdicional criadora de um direito que era, em última análise, ‘emocional’ ou ‘sentimental’.

É exatamente dessa aporia que se erige incontornável, nos escritos posteriores dos que buscam o controle da atividade judicial pelos fundamentos da ciência bülowiana, o paradoxo de Bülow.

Esse paradoxo acaba contaminando, como se verá, as teorias derivadas da proposta ‘científica’ do autor alemão, levando vários dos pensadores ulteriores do processo a uma absoluta renúncia (como, aliás, tácita ou expressamente, admitem vários deles) à hipótese de que uma teoria processual poderia fornecer critérios suficientes à aferição do grau de legitimidade da atividade jurisdicional fora do Estado Social. Sabe-se, hoje, que isso seria mesmo impossível sem que se realizasse, previamente, um giro teórico que colocasse em dúvida os fundamentos da teoria de Bülow em seus aspectos concernentes à jurisdição.” Ainda: “Toda tentativa no sentido de elevar o processo impregnado da herança bülowiana à condição de garantidor de direitos fundamentais falha exatamente em razão do fato de que não poderia ser esse processo, ao mesmo tempo, instrumento do poder (de criação e do dizer o direito pelo juiz) e sua limitação eficaz – eis o paradoxo”. LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, Faculdade de Ciências Humanas/FUMEC, 2008. p. 60-65.

sustentado por Bülow, confrontam, de um lado, a “ideia” de um juiz como ator para reduzir as desigualdades sociais (que resultou em um juiz solitário, com as partes enfraquecidas e o processo como mero instrumento) e, de outro, a devida legitimidade democrática da decisão desse juiz. Sustentam os autores que a socialização processual (embora bem intencionada) é incompatível com o paradigma de uma Constituição democrática, que exige, como questão central, a legitimação democrática de uma decisão, a qual impede que o juiz decida livremente, sem qualquer filtro constitucional.367

No caso, a atuação do juiz esbarra no filtro da legitimidade para criar o Direito, o que independe dos motivos sustentados, sejam sociais ou outros.

Concluem os citados autores que “a teoria do processo como relação jurídica, mantida a sua feição bülowiana (e o conceito de jurisdição que a fundamenta), não oferece condições para o enfrentamento da questão da legitimidade do direito no Estado democrático”.368

A decisão judicial baseada em critérios sociais – que serão subjetivamente definidos pelo juiz – potencializa a discricionariedade judicial, conduzindo muitas vezes a decisões em que ilegitimamente cria-se o Direito ou, até mesmo, a decisões frontalmente contrárias à legislação constitucional.

Outro nome de destaque nesta fase é Anton Menger, o qual sustentava que, diante da desigualdade de direito material e processual, “[...] el juez debería establecer un equilibrio entre las partes, asumiendo la representación de la parte pobre. [...]”.369 Foi a partir das ideias de Menger que surgiu a Ordenança processual civil do império austro-húngaro (1895), criada por Franz Klein, aluno de Menger, considerada a primeira legislação com características socializadoras, limitando a liberdade das partes e atribuindo ao juiz o papel de senhor do juízo.370

Denti e Taruffo registram que essa função assistencial do juiz, proposta por Menger, representava a ruptura com a concepção processual liberal que então prevalecia, observando que, à época, não se negava a possibilidade de assistência à parte débil, mas não se admitia que ela pudesse ser prestada pelo próprio juiz da causa.371

367 HOMMERDING, Adalberto Narciso; MOTTA, Francisco José Borges. O que é um modelo democrático de

processo? Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 73, jan./abr. 2013. Disponível em: <http:// www.amprs.org.br/arquivos/revista_artigo/arquivo_1383852047.pdf>. Acesso em: 11 out. 2016.

368 Ibid.

369 MENGER, Anton. El derecho civil e los pobres. Atalaya: Buenos Aires, 1947. p. 69.

370 NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas

processuais. Curitiba: Juruá, 2008. p. 81.

371 DENTI, Vittorio; TARUFFO, Michele. Il profilo sorico. In: DENTI, Vittorio. La giustizia civile. Bolonha: Il

Ainda com Leal, Hommerding e Motta, ganha destaque a manutenção do enfoque privatístico do direito que a teoria de Bülow mantém, baseado no vínculo de subordinação entre pessoas (direito obrigacional), bem como na ideia de jurisdição como atividade da pessoa do juiz.372 O vínculo obrigacional subordina as partes ao magistrado. Em conclusão, as ideias de Oskar Bülow identificam-se com a concepção social do processo, com a aposta no protagonismo judicial e suas consequências.

Dierle Nunes registra que as ideias da socialização do processo foram a base de reforma de diversos sistemas processuais durante o século XX, em especial nos denominados “Estados ativos”, nos quais, como entende Damaska, o juiz não precisa tratar as partes de modo igual, podendo favorecer aquela tese que lhe parece melhor fundada, auxiliando para que a parte possa demonstrá-la de modo eficaz.373

Nessa trilha, o movimento de socialização do processo – embora com boa intenção – teve grande responsabilidade na consolidação do protagonismo judicial. E, adianta-se, esse protagonismo judicial é incompatível com um Estado Democrático de Direito.