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2.1 O QUE A TRADIÇÃO ENTREGOU NO ÚLTIMO SÉCULO?

2.1.2 A Superação da Linguagem Privada pela Linguagem Pública na Filosofia

2.1.2.2 A Linguagem em Aristóteles

Aristóteles foi discípulo de Platão e com ele compartilhava a sua luta contra os sofistas, considerando-os como falsos filósofos que acabavam por ameaçar a própria filosofia. Nessa linha, não aceitava a linguagem como ciência universal, o que era defendido pela sofística – que entendia que, com a linguagem, se podia dizer e fazer tudo sobre qualquer coisa.73 Para os sofistas, a linguagem “dominava” a coisa. Os sofistas deliberadamente defendiam uma linguagem privada, cujos sentidos eram manipulados de acordo com o interesse do falante.

Manfredo de Oliveira destaca que Aristóteles considerava a sofística como perigosa, em especial pela sua indiferença em relação à verdade, preocupando-se apenas com a eficácia do discurso, utilizado como uma arma. A efetividade do discurso era o ponto central das

70 Como será apresentado, esta é uma leitura de Heidegger sobre a linguagem em Platão. Para o filósofo, a

linguagem não é – somente – informação.

71 MARCONDES, Danilo. Textos básicos de linguagem: de Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

2009. p. 15.

72 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do

Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 181.

teorias sofistas da linguagem. Para eles, interessava mais o “falar” do que “o falado”, na medida em que se objetivava a persuasão.74

Por isso, ensina o citado autor, a sofística encontrou campo fértil na democracia ateniense, uma vez que, na assembleia popular, exigia-se o domínio da retórica e da argumentação. Assim, a linguagem se transformava em instrumento de poder.75 Aristóteles vai dedicar muito trabalho ao combate a tais ideias, sustentando a necessidade de fundamentação do discurso racional, da ciência e da filosofia.76

Conforme apresentado, Platão “ultrapassa” (não considera) o problema da linguagem, observada por ele como algo secundário ao conhecimento. Ao contrário de Platão, Aristóteles faz as suas reflexões sempre no horizonte da linguagem, nunca perdendo o foco no discurso humano, na linguagem humana. Embora, como se verá, ainda considere a linguagem com papel secundário, no sentido de instrumental.

Nessa linha, Aristóteles parte da separação entre palavra e coisa e tenta construir uma teoria da significação, na qual afirma a separação entre linguagem e ser (no que segue Platão), ao mesmo tempo em que trata da relação entre ambos.77 Para Aristóteles, essa aderência total entre palavra e coisa é um dos grandes problemas da sofística e de outras teorias da época. Na palavra estaria o ser.78

Lenio Streck explica que, para Aristóteles, “a linguagem não se manifesta, mas significa as coisas”. A palavra é um símbolo que se relaciona com a coisa por significação. “A questão está na adequatio, é dizer, na conformidade entre a linguagem e o ser. Pressupõe uma ontologia”. Para Aristóteles, as palavras possuem um sentido porque possuem uma essência. É essa essência que dá unidade à significação. As palavras são símbolos dos estados de espírito, o que faz com que a linguagem se subordine ao pensamento.79

Manfredo de Oliveira destaca que o pensamento de Aristóteles seguia duas direções80, o que poucos se dão conta. Em uma primeira direção, Aristóteles vai acentuar a diferença

74 OLIVEIRA, Manfredo A. de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São

Paulo: Loyola, 2006. p. 26.

75 Ibid., p. 27. 76 Ibid., p. 26. 77 Ibid., p. 27. 78 Ibid., p. 28.

79 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do

Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 184.

80 Interessante registrar que, ao menos em outro momento, o pensamento de Aristóteles também segue em uma

direção distinta (ou em duas direções), o que é muito bem trabalhado por Ernildo Stein. Trata-se da metafísica em Aristóteles. No primeiro caminho, tem-se o Aristóteles da ontoteologia, que confia tudo ao “motor imóvel”. No segundo caminho, tem-se o Aristóteles da “ciência procurada”. Nas palavras do grande filósofo gaúcho: “[...] É assim que recorremos àquilo que designamos os dois caminhos da Metafísica de Aristóteles. De um lado, tínhamos um caminho que partiu da ideia do motor imóvel e que predominou na história do

entre linguagem e ser, aprofundando a concepção designativa apresentada por Platão, concluindo, na linha deste, pela função secundária, instrumental, da linguagem em relação ao conhecimento real. É nesse sentido que a teoria de Aristóteles influenciou o Ocidente. Objetivava combater a sofística e sua ideia de que o discurso, a palavra, traria em si o conhecimento. Entretanto, em um segundo momento, Aristóteles, mesmo reconhecendo a distância da linguagem e do ser, observa que não existe acesso ao ser sem a mediação da linguagem. Aristóteles antecipa a posição adotada pela filosofia contemporânea, no sentido de que toda a reflexão é mediada linguisticamente.81

Linguagem e ser não são a mesma coisa, mas estão intimamente ligados. A realidade, a justeza de uma palavra, dependerá da correspondência entre o signo/palavra e o conceito (estado da alma), como será melhor observado.

Na primeira direção, Aristóteles entende que a linguagem humana é um símbolo do real. Não toma o lugar da coisa. A linguagem possui um som vocal com uma significação convencional, sendo essa convenção o que diferencia a linguagem humana da linguagem dos

pensamento ocidental. Denominamos esse caminho ‘o primeiro caminho’ e o ligamos à ontoteologia. Por outro lado, procuramos encontrar nas análises que Aristóteles realiza do ente enquanto ente, sua Filosofia primeira, aquilo que chamamos ‘o segundo caminho’. A característica fundamental desse caminho consiste no fato de Aristóteles reconhecer que a resposta para a questão do ente enquanto ente teria de enfrentar o paradoxo da incompletude. Dessa maneira, o segundo caminho é denominado por Aristóteles de ‘ciência procurada’”. (STEIN, Ernildo. Às voltas com a metafísica e a fenomenologia. Ijuí: Ed. Unijuí, 2014. p. 12-13). O problema é que, diante da angústia por respostas, Aristóteles acaba por encontrá-las em um retorno ao primeiro caminho. Entretanto, é esse segundo caminho, com metafísica e fenomenologia, que se encontra em Heidegger. Assim, pode-se compreender quando Heidegger vai afirmar que “a destruição da metafísica não é o fim da metafísica”. A destruição da metafísica por Heidegger, na verdade, será uma desleitura do fenômeno, afastando aquela metafísica ontoteológica e preservando a metafísica como ciência procurada. Ernildo Stein explica melhor: “[...] Consideremos Aristóteles um filósofo empirista que naturalmente escreveu vários livros (de Lógica) como ferramenta para as suas análises, e que dedicou seus estudos a uma grande variedade de materiais empíricos. Sobrara-lhe, no entanto, um campo em que percebeu que deveria procurar uma universalidade que não derivava da empiria. É por isso que ele fundou a epistéme zetoumene, a ciência procurada, que trataria das primeiras causas e do ente enquanto ente juntamente com o eînai (ser). O filósofo não desenvolveu para isso um nome específico, além de chamá-la de Filosofia primeira. Não denominou essa ciência nem de ontologia e nem de teologia. Diante do movimento, do surgimento e do perecimento do tempo, no entanto, o filósofo se perguntou pelas origens desses fenômenos. Como as respostas não podiam ser empíricas, porque levariam necessariamente a uma circularidade inaceitável, ele saiu dessa situação paradoxal e lançou uma hipótese que o reconduziu para a escola de seu mestre Platão. Não há uma causa eficiente que inicie o movimento, isto é, pela qual tudo deveria começar do nada. Todas as coisas sublunares são atraídas pelo mais perfeito. É para isso que Aristóteles estabelece a sua teoria do motor imóvel. Mesmo não sendo conhecido, e nada conhecendo das coisas sublunares, ele atua como causa final de todo movimento. Desse modo, bastava Aristóteles definir esse motor imóvel e achar um lugar no seu cosmos de esferas. [...] temos dois Aristóteles. Um deles funda uma ciência primeira que depois chamaremos de ontologia e que coroa o seu theoreîn, enquanto o outro nos faz recuar para o agathón platônico sob a nova forma de motor imóvel que a tudo atrai. O que não se percebeu é que, seguindo essa última linha, teríamos um Aristóteles que ligaria ontologia com teologia [...]”. STEIN, Ernildo. Às voltas com a metafísica e a fenomenologia. Ijuí: Unijuí, 2014. p. 27-28.

81 OLIVEIRA, Manfredo A. de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São

animais. Para Aristóteles, a linguagem não é imagem do real, mas seu símbolo, seu significado, um instrumento de designação convencional, não natural.82

Aristóteles distingue o discurso em geral e a proposição (sentença declarativa), dando preferência a esta. O discurso em geral não se preocupa com a existência ou não da coisa significante. Por sua vez, a proposição é composta pela composição ou divisão dos termos significantes isolados. É um julgamento quanto à existência do que é significado (“dizer algo a respeito de algo”). A proposição é o lugar da verdade e da falsidade, uma vez que pode corresponder ou não às coisas.83

O significado dos signos, palavras, depende da representação mental dos signos com os conceitos ou estados da alma relacionados. Os signos, as palavras, podem variar, mas o significado continuará o mesmo, uma vez que as afecções da alma são iguais para todos. Portanto, o conceito, o estado da alma, é o intermediário entre a palavra e a coisa. É nele que está a realidade. Ou seja, a realidade de um signo linguístico (que é convencional) dependerá de sua correspondência com o conceito (não convencional). Quando a palavra corresponder ao estado da alma, ao conceito, ao pensamento, pode-se dizer que ela é real, verdadeira.84

Para Aristóteles, é no conceito, na alma, no pensamento, que está a verdade. A linguagem vem depois, de forma convencional. O conhecimento se constitui no pensamento, que antecede a linguagem. O pensamento é autônomo em relação à linguagem.

Mas, para que haja comunicação entre os homens, há necessidade de sentido, o que somente ocorre porque as palavras possuem unidade. Se o significado das palavras depende de convenção (esse signo refere-se a determinado conceito/estado da alma), o que garante a unidade dessa convenção? Aqui o pensamento de Aristóteles segue outra direção. Para Aristóteles, é a essência (ousia) que serve de fundamento objetivo para garantir a unidade de significação das palavras e permitir a comunicação. É a essência que garante a unidade de sentido. A exigência linguística de unidade é satisfeita com o princípio ontológico da unidade, ou seja, “é a unidade do que é que legitima a unidade da significação”.85

Portanto, para Aristóteles, a significação é convencional – como em Platão –, mas não pode ser arbitrária, devendo respeitar a essência que unifica a significação e viabiliza a comunicação. É aqui que, como já referido, Aristóteles antecipa teorias contemporâneas no sentido da necessária mediação linguística de toda a reflexão.

82 OLIVEIRA, Manfredo A. de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São

Paulo: Loyola, 2006. p. 29.

83 Ibid., p. 30.

84 MARCONDES, Danilo. Textos básicos de linguagem: de Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

2009. p. 22-23.

Lembra Manfredo de Oliveira que o Aristóteles que influenciou o Ocidente foi o Aristóteles limitado à primeira direção, ou seja, à função designativa e secundária da linguagem. O conhecimento existiria sem a linguagem.86