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3.4 A TRADIÇÃO E OS PROCESSOS CIVIL E PENAL

3.4.3 O Que a Tradição entregou ao Processo Penal? a evolução dos sistemas processuais

3.4.3.3 O Sistema Misto ou Inquisitivo Garantista

Para fins didáticos é importante observar que, para alguns autores, existiria um sistema misto, o qual reuniria as características dos sistemas inquisitivo e acusatório. Este sistema teria surgido com a Revolução Francesa, quando ao sistema inquisitivo foram aportadas novas ideias diante da preocupação com os direitos do homem. Seria ele dividido em duas fases: a primeira inquisitiva, consistente em uma investigação preliminar; a segunda iniciando-se com a acusação por órgão diferente do julgador, com características do sistema acusatório.

Para Jacinto Coutinho, citado por Aury Lopes Junior, o nominado “sistema misto” é um “monstro de duas cabeças”.385

Na realidade não existem sistemas puros. Em alguma medida serão encontradas características de um em outro. É o princípio base do sistema que irá servir para classificá-lo como inquisitivo ou acusatório. Eventuais características de um sistema em outro apenas afastam a natureza pura dele, em maior ou menor grau. Isso é um defeito, uma anormalidade, diante do princípio base.

A defesa da existência de um sistema misto em um contexto de previsão constitucional do princípio informativo acusatório, na verdade, serve muitas vezes para tentar esconder, sob o discurso do sistema acusatório, uma prática inquisitiva incompatível com o regime constitucional democrático.

Ademais, é importante observar que tanto o sistema inquisitivo como o acusatório apresentam historicamente características que se consideram incompatíveis com o sistema adotado pela Constituição brasileira.

Embora distinguindo planos histórico e teórico, Ferrajoli registra que, historicamente, são características do processo acusatório a separação entre juiz e acusação, a paridade entre as partes, a publicidade e a oralidade do julgamento, o contraditório, a discricionariedade da ação penal, a elegibilidade do juiz, a sujeição dos órgãos da acusação ao executivo, a exclusão da motivação da decisão dos jurados e o livre convencimento. Por sua vez, são características históricas do sistema inquisitivo a iniciativa do juiz no campo probatório, a disparidade entre as partes, o caráter escrito e secreto da instrução, a obrigatoriedade e irrevogabilidade da ação penal, o caráter público dos órgãos de acusação, a pluralidade de graus de jurisdição e a obrigação do juiz de motivar suas decisões.386

385 LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva,

2012. p. 130.

386 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi

Assim, sem adentrar à profunda discussão quanto às verdadeiras características essenciais – e exclusivas – de cada modelo, é possível perceber que os sistemas processuais ora trabalhados não podem ser tomados como absolutos, ou seja, com características adotadas integralmente por este ou por aquele ordenamento jurídico. Embora se entenda que o modelo acusatório é o mais compatível com a Constituição brasileira, alguns de seus elementos históricos considerados por Ferrajoli confrontam com ela, a exemplo da subordinação da acusação ao Executivo e do livre convencimento. Por outro lado, elementos considerados históricos no sistema inquisitivo – em especial o dever de motivação – encontram perfeita guarida na carta constitucional brasileira.

Para fins didáticos, pode-se dizer que, no Brasil, os modelos inquisitivo e acusatório foram superados pelo modelo constitucional democrático. Nessa linha, o estudioso deve ter muito cuidado com a controvérsia sobre a caracterização dos sistemas processuais penais, a qual muitas vezes pode mais esconder do que esclarecer. Veja-se que os adeptos de uma ou de outra corrente, a partir do que consideram como característica elementar do sistema, analisam o direito processual brasileiro atual e o rotulam a partir das características que defendem, sustentando que normas incompatíveis com as características do modelo que adotam são inadequadas e devem ser afastadas do ordenamento jurídico. Para analisar a validade do ordenamento jurídico atual, o intérprete desloca-se para o passado e passa a falar a partir dele. Fica refém do passado. Não parece ser essa a melhor solução.

Entende-se que essa evolução dos sistemas processuais, com suas características próprias marcadas principalmente pela época em que nasceram ou evoluíram, serve de importante horizonte histórico, mas não são fórmulas que devem ser simplesmente reproduzidas pelo direito contemporâneo, pois muitas vezes geram um descompasso com normas constitucionais outrora inexistentes.387 O horizonte do passado deve ser fundido com o do presente. Sendo mais simples: independentemente das características históricas do sistema acusatório, isso não implica que o nosso ordenamento jurídico tenha que tomar como medida o sistema acusatório de modelo romano ou inglês. O sistema processual penal adotado pelo direito brasileiro não é o inquisitivo ou acusatório, mas o democrático. Ou, optando-se por manter a nomenclatura “sistema acusatório”, pode-se dizer que o sistema acusatório

387 Nesse sentido, Juan Montero Aroca sustenta que muitas características apresentadas como historicamente

diferenciadoras dos sistemas inquisitivo e acusatório não se sustentam na atualidade, a exemplo da existência de juízes profissionais e da ação penal pelo Estado como características do sistema inquisitivo. Para Aroca “los llamados sistemas procesales penales son conceptos del pasado, que hoy no tienen valor alguno, y que sirve únicamente para confundir o para enturbiar la claridaded conceptual”. AROCA. Juan Montero. El derecho procesal en el siglo XX. In: INSTITUTO DE INVESTIGACIONES JURÍDICAS. La ciencia del derecho durante el siglo XX. Ciudad Universitária, México: Instituto de Investigaciones Jurídicas, 1998. p. 478-479.

nacional não é de modelo romano ou inglês, mas brasileiro, operando-se uma atualização de sentido quanto ao que significa, hoje, no contexto do Estado Democrático de Direito brasileiro, seguir um modelo acusatório de processo penal.

Nesse fio, a controvérsia apontada ganha novos contornos, superando a histórica caracterização dos sistemas processuais. Deve-se refletir se, no contexto do constitucionalismo democrático brasileiro, a iniciativa probatória por parte do juiz não atinge, ainda que potencialmente, o princípio constitucional da imparcialidade.388 E, caso se entenda que atinja, questionar sobre o que fazer para não caracterizar uma violação ao princípio da proteção deficiente. Por outro lado, deve-se responder se a admissão da iniciativa probatória do juiz apenas em favor do réu (o que inclusive é previsto no projeto do novo Código de Processo Penal) não viola o princípio constitucional da igualdade. Sem dúvida, a matéria exige estudo aprofundado, não sendo esse o objeto da presente pesquisa.