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A Sociolinguística na sala de aula

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA (páginas 42-47)

Nas últimas cinco décadas, diversos estudos e pesquisas têm ressaltado o fato de que as línguas naturais são dinâmicas, mutáveis, ou seja, sofrem variação em todos os níveis linguísticos, ora influenciadas por fatores internos ao próprio sistema linguístico, ora externos a ele. Essas questões têm se configurado como contribuições de grande pertinência da Sociolinguística para o ensino de Língua Portuguesa e, nesse sentido, têm sido temas recorrentes em pesquisas de diversos autores (BORTONI-RICARDO, 2005; MOLLICA, 2003; SCHERRE, 2005; BAGNO, 2002; FARACO, 2008; GÖRSKI e COELHO, 2009, CYRANKA, 2014.). Por isso, mostra-se como uma ideia já ultrapassada conceber que a Língua Portuguesa é homogênea e que há, de fato, uma unidade linguística no Brasil, e que, por isso, a nossa língua seja falada da mesma forma nos quatro cantos do país.

A esse respeito, Faraco (2008, p.183) aponta que “a realidade nacional do português é extremamente diversificada, seja no espaço geográfico, seja no espaço social”, e, isso, ressalta o autor, não constitui um problema, já que a diversidade linguística é característica de todas as sociedades humanas. Todavia, preocupante é o modo como lidamos com essa diversidade linguística, sobretudo no que diz respeito ao ensino de Língua Portuguesa nas escolas brasileiras.

Mollica (2003, p.09) afirma que “a Sociolinguística é uma das subáreas da Linguística e estuda a língua em uso no seio das comunidades de fala, voltando a atenção para um tipo de investigação que correlaciona aspectos linguísticos e sociais”. Nesse sentido, a Sociolinguística tem como objeto de estudo a língua compreendida como instrumento que as pessoas usam para se comunicar na vida cotidiana e que é, portanto, variável. Todavia, cabe observar, segundo essa ramificação da Linguística, que tal variação pode ser descrita e analisada cientificamente. É importante destacar, também, que William Labov foi o pesquisador que mais insistiu na relação entre língua e sociedade e na possibilidade de se sistematizar a variação existente e a própria língua falada. É considerado, portanto, o precursor da Teoria da Variação (cf. TARALLO, 1990, p.07).

Por muito tempo, a Sociolinguística no Brasil se apresentou como uma ciência linguística que, com seu próprio aparato teórico e metodológico, descreveu e analisou diferentes fenômenos da língua, em seus mais diversos níveis (fonético, fonológico, morfológico, sintático, semântico, pragmático, entre outros). Entretanto, mais recentemente, Bortoni-Ricardo (2005, p.128) propõe uma nova linha de pesquisa dentro da própria Sociolinguística, em interface com questões atreladas ao ensino da Língua Portuguesa no Brasil, a qual denomina de “Sociolinguística Educacional”. Dentro dessa linha de pesquisa, encontram-se as propostas e pesquisas sociolinguísticas que objetivam contribuir para o aperfeiçoamento da educação, sobretudo no que diz respeito a um ensino da Língua Portuguesa mais atento às contribuições da Linguística Moderna, especialmente no que diz respeito à consideração da heterogeneidade de toda língua natural. Na sala de aula, assim como em outros locais de uso da linguagem, nos deparamos com a variação no uso da língua. Portanto, é fundamental desenvolver, conforme aponta a autora, uma “pedagogia sensível às diferenças sociolinguísticas e culturais dos alunos e isto requer uma mudança de postura da escola – de professores e alunos – e da sociedade em geral (BORTONI-RICARDO, 2005, p.130).

Ainda segundo a autora, “no Brasil, ainda não se conferiu a devida atenção à influência da diversidade linguística no processo educacional. A ciência linguística vem,

timidamente, apontando estratégias que visam aumentar a produtividade da educação e preservar os direitos do educando” (BORTONI-RICARDO, 2005, p.19).

Nesse sentido, Cyranka (2014) afirma também que atualmente é inaceitável o trabalho com a linguagem desvinculada de sua inserção nos gêneros textuais, lugar de concretização das manifestações linguísticas. Logo, não se admite mais que o trabalho escolar com a língua esteja centrado em classificações, regras e no domínio de nomenclaturas que não contribuem, de fato, para a ampliação da competência discursiva13 do aluno e, tampouco, para aumentar seu interesse e participação em práticas de letramento. Ainda no que se refere ao modo como tem acontecido o ensino de Língua Portuguesa no Brasil, Bortoni-Ricardo (2005) destaca:

O ensino da língua culta à grande parcela da população que tem como língua materna – do lar e da vizinhança – variedades populares da língua tem pelo menos duas consequências desastrosas: não são respeitados os antecedentes culturais e linguísticos do educando, o que contribui para desenvolver nele um sentimento de insegurança, nem lhe é ensinada de forma eficiente a língua-padrão (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 15).

Diante dessa situação, a autora ainda considera importante ressaltar que

a escola não pode ignorar as diferenças sociolinguísticas. Os professores e por meio deles, os alunos têm que estar bem conscientes de que existem duas ou mais maneiras de dizer a mesma coisa. E mais, que essas formas alternativas servem a propósitos comunicativos distintos e são recebidos de maneira diferenciada pela sociedade (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 15).

Assim, os alunos que chegam à escola dominando variedades populares – aprendidas nas relações familiares e na vizinhança – devem ser respeitados pelo repertório linguístico que possuem, uma vez que a variedade utilizada é parte de sua identidade social. Todavia, o aluno tem direito ao aprendizado das variedades cultas14, socialmente prestigiadas, que lhe possibilitará uma participação mais efetiva na sociedade, tendo em vista o direito ao acesso a diversos documentos oficiais que empregam essas variedades ou ainda à participação em práticas sociais em que elas são utilizadas. Assim, dominar as variedades cultas possibilitaria, aos educandos, exercer a cidadania e, ainda, pleitear um melhor emprego, vagas em

13 Conforme explicitamos anteriormente, utilizamos a noção de “competência comunicativa” proposta por

Hymes (1966) e ampliada por Gumperz (1982) ao longo desta dissertação. A utilização do termo “competência discursiva” foi preservada nessa passagem, no entanto, a fim de manter a nomenclatura utilizada pela autora na obra citada (cf. CYRANKA, 2014).

14 Na próxima seção deste capítulo, intitulada “Norma, norma padrão e norma culta”, discutiremos a

necessidade de se empregar esse termo no plural, conforme recomendam Bagno (2002b) e Cyranka (2014), uma vez que a norma culta é composta por um conjunto de variedades cultas.

universidades e maior participação social, pois conforme ressalta também Bortoni-Ricardo (2005, p.15), “o caminho para uma democracia é a distribuição justa de bens culturais, entre os quais a língua é o mais importante”.

Diante desse contexto, diversos pesquisadores avaliam que é essencial o investimento na formação continuada de professores, compreendendo a necessidade de uma formação sociolinguística para o ensino da língua. Martins, Vieira e Tavares (2014, p.33) observam que o professor de português necessita ter um forte embasamento teórico-metodológico para que consiga empreender uma prática pedagógica cada vez mais atenta à diversidade sociolinguística brasileira. Nesse sentido, é importante conhecer os estudos de fenômenos variáveis da língua, a fim de que se possa trazer para a sala de aula informações mais coerentes e atuais relacionadas à abordagem dos saberes gramaticais e, assim, empreender um ensino voltado para a língua em uso.

E isso, cabe destacar, não deve acontecer de maneira estanque, mas, sim, continuamente, afinal, a variação linguística é condição da existência de uma língua natural e tal fato deve ser abordado constantemente pelo professor, tanto nas aulas dedicadas à análise/reflexão linguística quanto nas aulas de leitura e produção de texto. Desse modo, o professor consegue lutar, de fato, contra uma tradição elitista e preconceituosa que defende a homogeneidade da língua, focando o ensino numa norma considerada como “a correta”, a “melhor”, “a mais elegante”. É preciso que o professor tenha uma formação sociolinguística, a fim de que tenha condições reais para se posicionar contra essa nefasta doutrina do erro que ainda se desenvolve em diversas escolas brasileiras.

De acordo ainda com Martins, Vieira e Tavares (2014), a primeira contribuição da Sociolinguística para a educação é de natureza conceitual. Por isso, é essencial, por exemplo, que os professores conheçam a terminologia utilizada em livros e manuais didáticos, até mesmo para identificar incoerências presentes nesses materiais que podem resultar no ensino de uma língua idealizadamente uniforme e, portanto, muito distante da sua forma real, heterogênea e multifacetada; ensino esse que contribui, em grande medida, para a formação de alunos inseguros em relação ao uso da língua e para a perpetuação do preconceito linguístico presente em nossa sociedade.

Nesse sentido, Cyranka (2014) reforça que é papel do professor construir crenças positivas em seus alunos a respeito da capacidade comunicativa que já possuem no uso da língua, reconhecendo-os como usuários competentes e capazes de atuar socialmente e, a partir daí, estimulá-los a ampliar essa competência, com a aquisição de novos recursos linguísticos, por meio da participação em práticas de letramento.

Partindo de todas essas reflexões, é evidente, portanto, que é papel do professor ensinar aos seus alunos a terem uma visão mais consciente e crítica do uso da língua, considerando sempre a situação comunicativa em que estão inseridos, a fim de adequarem a linguagem utilizada às condições de produção do discurso, às expectativas dos interlocutores e aos diferentes papéis sociais que empreendemos quando nos comunicamos.

Como tão bem destaca Faraco (2008, p. 176), embora a escola tenha avançado razoavelmente no que diz respeito ao empreendimento de uma pedagogia da produção de texto – há uma crescente preocupação em incorporar os gêneros discursivos ao ensino da língua, em situações de uso, em detrimento da improdutiva prática da redação escolar –, ainda estamos muito atrasados no empreendimento de uma pedagogia da variação linguística.

E, muito embora, os documentos e diretrizes oficiais de ensino da Língua Portuguesa já tenham incorporado essa temática em suas orientações, parece haver ainda um conjunto de fatores – dentre eles, o insuficiente preparo15 de grande parte dos docentes em lidar com a questão e a escassez de material didático adequado – que tem gerado um “desconforto” e impedido a implementação, de fato, de uma pedagogia culturalmente sensível16 à diversidade linguística em sala de aula.

A esse respeito, Faraco (2008) ressalta que nosso grande desafio atualmente é

reunir esforços para construir uma pedagogia da variação linguística que não escamoteie a realidade linguística do país (reconheça-o como multilíngue e dê destaque crítico à variação social do português); não dê um tratamento anedótico ou estereotipado aos fenômenos da variação; localize adequadamente os fatos da norma culta/comum/standard no quadro amplo da variação e no contexto das práticas sociais que a pressupõem; abandone criticamente o cultivo da norma-padrão; estimule a percepção do potencial estilístico e retórico dos fenômenos da variação (FARACO, 2008, p.180).

Parece-nos relevante, portanto, tratar na próxima seção do que consideramos ser um dos principais equívocos conceituais – e recorrentes – tanto em manuais didáticos de ensino

15 Entendemos que boa parte dos professores que estão em atuação não teve uma formação sociolinguística, uma

vez que disciplinas que contemplavam estudos da área até pouco tempo não integrava o currículo obrigatório do curso de Letras nas universidades. Dessa forma, o professor que se formou há alguns anos só teria acesso aos mais recentes estudos sociolinguísticos por meio da formação continuada, quando oferecida. Além disso, diversos estudiosos, dentre eles Bagno (2002a), apontam que muitos professores têm dificuldade em fazer a transposição didática, para a sala de aula, dos conhecimentos teóricos a que tiveram acesso.

16 Bortoni-Ricardo (2005, p. 118) afirma que o conceito de pedagogia culturalmente sensível (culturally responsive pedagogy) foi proposto por Erickson (1987), a partir de estudos etnográficos interpretativos cujo foco

era a vida no interior das escolas e a relação entre a socialização das crianças no lar e nas escolas. De acordo com Erickson (1987, p. 355), essa proposta pedagógica consiste em um esforço especial por parte da escola em reduzir as dificuldades de comunicação entre professores e alunos, a fim de desenvolver a confiança nessa relação e impedir conflitos que podem ir além da dificuldade de comunicação.

de Língua Portuguesa como também no discurso de muitos docentes: a confusão no emprego dos termos norma, norma culta, norma popular e norma-padrão. Entender, por exemplo, que norma culta e norma-padrão não são termos equivalentes é fundamental para a compreensão das implicações resultantes de um ensino centrado no domínio de uma norma idealizada, artificial e, por outro lado, no ensino voltado para uma norma concreta e efetivamente utilizada por falantes de classes sociais mais prestigiadas. Da mesma forma, é necessário, portanto, compreender que tanto as variedades populares quanto as variedades cultas compõem o cenário sociolinguístico do português brasileiro e, dessa forma, não há sentido em empreender um ensino que desconsidere essa realidade e passe a impor o uso de determinadas formas linguísticas em detrimento de outras, consideradas “erradas” e “feias”.

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA (páginas 42-47)