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O gênero relato pessoal

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA (páginas 32-37)

2.3 Os gêneros discursivos como objeto de ensino de Língua Portuguesa

2.3.1 O gênero relato pessoal

A tarefa de se eleger quais gêneros discursivos os professores devem tomar como objeto de ensino escolar é mais complexa do que supõem alguns autores de livros didáticos e pesquisadores. Tão inapropriado quanto apontar alguns poucos gêneros como representativos da infinidade existente na sociedade é a prática recorrente de se associar gêneros específicos a determinados anos escolares, como se constata normalmente em manuais didáticos. Assim, tem sido comum, por exemplo, que gêneros da ordem do relatar e do narrar sejam “eleitos” como mais adequados para o trabalho em séries iniciais do ensino fundamental, enquanto gêneros da ordem do argumentar, considerados “mais complexos”, sejam enxergados como mais adequados ao trabalho nas séries finais. Limitar as possibilidades de trabalho com os gêneros discursivos a somente esse fator é, a nosso ver, conceber o ensino dos gêneros como algo descontextualizado das práticas sociais que o envolvem.

No entanto, a pergunta “Que gêneros eleger como objeto de ensino?”, muito provavelmente feita com frequência por vários professores, ainda é legítima e, embora estejamos cientes que não há uma resposta única e soberana a esse questionamento, acreditamos que o professor deve considerar, entre outros aspectos: a) a diversidade de gêneros existentes e a necessidade de se contemplar também gêneros “esquecidos” pelos livros didáticos; b) os gêneros mais utilizados pelos alunos em seu cotidiano e as novas

demandas existentes; c) os objetivos de ensino, isto é, as competências e habilidades que necessitam ser desenvolvidas; d) a observação das situações que ocorrem no âmbito escolar – e no entorno – e que podem influenciar essa escolha; e) a necessidade de se contemplar os gêneros orais; f) a importância de se alternar gêneros de diferentes agrupamentos; g) a possibilidade e importância de um trabalho em progressão espiral8.

Considerando os aspectos apontados, entre os gêneros discursivos que podem ser trabalhados no 6º ano do Ensino Fundamental, elegemos o gênero “relato pessoal” como relevante, pois apostamos no potencial deste gênero para a possibilidade de desenvolvimento de um trabalho que auxilie os alunos a se adaptarem melhor à normalmente conflituosa passagem do Ensino Fundamental I para o Ensino Fundamental II9, por meio da leitura/escuta e produção de relatos orais e escritos. Além disso, acreditamos na possibilidade do desenvolvimento de um trabalho mais expressivo envolvendo a fala e a escrita e a questão da adequação linguística, visto que os relatos podem ser produzidos oralmente e por escrito, de forma a atender às expectativas do interlocutor nos contextos comunicativos mais e/ou menos formais.

Costa (2012, p. 202) define o relato como uma “narração (v.) não ficcional escrita ou oral sobre um acontecimento ou fato acontecido, feita geralmente usando-se o pretérito perfeito ou o presente histórico”. Conforme Guedes (2002 apud KOCHE; MARINELLO; BOFF, 2012, p. 35), ao escrever um relato, “o produtor do texto deve selecionar uma história que desperte o interesse do leitor e, dentro dela uma questão, de preferência a mais séria de todas as questões envolvidas no fato acontecido”. Ainda para o autor, na produção do relato pessoal, deve-se atentar parar algumas dificuldades que os produtores podem encontrar, dentre elas, a elaboração de um texto que seja interessante, inteligível e original, e, ainda, deve-se buscar a seleção de aspectos que sejam relevantes na composição da história.

Consideramos que as definições apresentadas para caracterização do gênero relato pessoal são ainda insuficientes e pouco objetivas, tendo em vista que não contemplam alguns aspectos importantes relacionados à estrutura composicional, conteúdo temático, estilo, suporte e local de publicação e circulação do gênero. Além disso, a noção de que o autor dos

8 A ideia de progressão em espiral remete à abordagem de um mesmo objeto de ensino (nesse caso, o gênero

discursivo) elencando objetivos de ensino específicos para as diferentes etapas de aprendizagem, isto é, um mesmo objeto de ensino pode ser trabalhado em diferentes etapas, aumentando a complexidade da tarefa.

9 Cabe destacar que essa passagem conflituosa, a qual nos referimos, diz respeito à transição da primeira para a

segunda etapa do Ensino Fundamental 2, caracterizada por uma série de mudanças na rotina escolar dos alunos, como o aumento no número de professores e dos conteúdos curriculares, como o fato de as aulas passarem a ser ministradas em um período menor de tempo, além de haver uma cobrança maior pela autonomia dos alunos, entre outros aspectos.

relatos deve eleger como foco do seu texto uma questão “mais séria”, “interessante” e “original” é subjetiva, pois considerando que os interlocutores do gênero podem compor um público amplo, dependendo inclusive do suporte e local de publicação e circulação do texto, dificilmente poderíamos avaliar tais aspectos, segundo esses critérios. Parece-nos mais interessante considerar a importância de se desenvolver de forma suficiente os fatos e acontecimentos relatados, buscando assegurar a compreensão dos interlocutores.

Assim, embora o relato pessoal não apresente uma estrutura rígida, Koche, Marinello e Boff (2012, p. 36) propõem a seguinte organização para a composição desse gênero:

a) apresentação: situa o leitor a respeito dos fatos narrados, localiza-os no espaço e no tempo em que ocorreram e ainda identifica as personagens envolvidas na situação apresentada;

b) complicação: diz respeito à ruptura do momento de equilíbrio das ações relatadas;

c) resolução: propõe um desfecho para a complicação;

d) avaliação: expõe os comentários do produtor do texto em relação aos fatos

relatados e avalia a repercussão desses acontecimentos em sua vida.

Nas pesquisas realizadas, percebemos que não há muitas outras fontes de consultas fidedignas10 acerca do gênero relato pessoal, mas há, no entanto, muitas tentativas de se conceituar o gênero, sobretudo em blogs direcionados ao ensino da Língua Portuguesa. Identificamos, no entanto, algumas divergências acerca das definições apresentadas para o gênero relato pessoal.

A primeira diz respeito a desconsiderar a possibilidade de realização desse gênero em contextos mais e menos formais, o que resulta em informações equivocadas de que o relato só admita o emprego de variedades cultas formais, de forma exclusiva, quando sabemos que o emprego mais ou menos monitorado da língua na produção do texto dependerá da situação de comunicação, das condições de produção e do conteúdo que é relatado.

A segunda informação que consideramos pouco adequada é a afirmação de que a estrutura do relato pessoal é composta pela apresentação da situação, complicação, resolução e avaliação. Acreditamos que essa associação deve-se à aproximação do gênero relato à tipologia narrativa, visto que no relato pessoal há uma narração de experiências vividas, mas

10 Quando afirmamos que não há muitas fontes fidedignas de consulta, embora haja muitas tentativas de se

definir o gênero, referimo-nos às diversas definições que circulam em apostilas ou na internet, mas que apresentam informações muitas vezes desencontradas e não possuem respaldo teórico e científico.

há de se considerar que essa narrativa não é ficcional, isto é, são pessoas (e não personagens) que estão envolvidas nos acontecimentos narrados e as semelhanças com o texto narrativo estão mais relacionadas ao fato de que há alguém que narra uma experiência vivida situada em espaço e tempo definidos. Assim, seria mais coerente dizer que o gênero relato pessoal pode ou não apresentar uma situação de complicação em sua estrutura.

Dessa forma, entendemos ser relevante propormos uma definição para o gênero relato pessoal, considerando que, a nosso ver, as definições mencionadas, bem como tantas outras que circulam em sites direcionados ao ensino de Língua Portuguesa, apresentam divergências e são ainda incompletas ou discrepantes. Acreditamos que a apresentação de uma definição mais abrangente é importante, sobretudo porque, ao ensinar aos alunos um gênero discursivo, o professor deve buscar aprofundar seus conhecimentos sobre o gênero em questão, a fim de desenvolver um trabalho sistematizado e que resulte na compreensão e no domínio de produção do gênero pelos alunos em diferentes contextos comunicativos.

Partimos, então, das definições apresentadas por Costa (2012) e Koche, Marinello e Boff (2012) e nos apoiamos nos estudos de Bakhtin (1997) e Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) para propormos uma definição que consideramos um pouco mais abrangente e objetiva para o gênero em questão.

Nesse sentido, acreditamos que o gênero relato pessoal situa-se na ordem do relatar e é uma narração não ficcional em que o autor, utilizando a primeira pessoa do discurso, relata fatos e/ou acontecimentos que considere relevantes e/ou marcantes em sua vida, imprimindo- lhes suas impressões sobre eles. O relato pessoal pode ser produzido com o emprego dos tempos verbais pretérito ou presente histórico11 e pode se realizar nas modalidades oral e escrita da língua. Para adequar-se aos diversos contextos comunicativos, a linguagem utilizada em sua produção pode variar da mais popular às variedades cultas, podendo ser utilizados registros mais ou menos formais.

No que diz respeito ao conteúdo temático, o gênero relato pessoal abarca uma diversidade de temas relacionados às experiências humanas e, muitas vezes, é produzido com o intuito de se compartilhar vivências que possam ser consideradas interessantes e/ou relevantes para os interlocutores.

Quanto à sua estrutura composicional, o gênero em questão apresenta, geralmente:

11O presente histórico diz respeito ao emprego do tempo verbal presente do indicativo para dar vivacidade a fatos passados, ou ainda, para conferir-lhes o “sabor de novidade das coisas atuais”, conforme Bechara (2009, p. 344).

a) uma contextualização inicial em que o autor apresenta um fato ou acontecimento não ficcional que será relatado, situando-o no tempo e no espaço; b) a identificação do autor como sujeito que vivenciou as experiências ou acontecimentos relatados ou participou deles como um observador;

c) o desenvolvimento dos fatos relatados que, não necessariamente, envolvem um conflito e sua resolução, mas que normalmente são acompanhados das impressões do autor sobre eles;

d) o encerramento do relato, em que o autor pode realizar reflexões acerca da influência ou repercussão dos acontecimentos relatados em sua vida.

É válido destacar que o relato pessoal pode ainda conter passagens descritivas que auxiliem o interlocutor a reconstruir o contexto em que se dão os fatos relatados. Embora normalmente não apresente título, no relato pessoal escrito, o autor pode fazer uso desse recurso linguístico/estilístico como forma de atrair a atenção do interlocutor para o conteúdo do seu texto.

No que diz respeito ao suporte de publicação e esfera de circulação, pudemos constatar que o gênero em questão geralmente é publicado em livros, jornais, revistas, sites na internet, blogs, canais de vídeo, e pode ainda integrar outros gêneros discursivos, tais como conversas cotidianas, notícias, entrevistas, reportagens, entre outros. Consequentemente, o gênero relato pessoal pode circular em diferentes esferas: cotidiana, escolar e jornalística.

Diante dos aspectos mencionados, eleger o gênero discursivo relato pessoal como objeto de ensino e aprendizagem utilizando o procedimento sequência didática pode configurar-se como uma oportunidade de explorar essas diferentes nuances características do gênero, pois embora utilizado com frequência pelos alunos na modalidade oral da língua fora do ambiente escolar, em situações menos formais – como exemplo, podemos citar os relatos produzidos oralmente aos pais e aos amigos sobre os acontecimentos do dia a dia –, tal gênero é produzido com pouca frequência pelos alunos na modalidade escrita, bem como em situações de fala um pouco mais formais. Assim, a abordagem desse gênero por meio de uma sequência didática mostra-se como uma oportunidade para trabalhá-lo, levando-se em conta as particularidades dos contextos de produção.

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA (páginas 32-37)