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O ensino da oralidade e as práticas de letramento no âmbito escolar: perspectivas

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA (páginas 56-63)

Embora os PCN de Língua Portuguesa (1998) afirmem que é nas práticas sociais, em situações linguisticamente significativas, que se dá a ampliação da capacidade de uso da língua e o desenvolvimento de novas capacidades que possibilitam o domínio cada vez maior de diferentes padrões de fala e de escrita, enfatizando, portanto, a necessidade de um tratamento mais adequado da oralidade e do letramento no âmbito escolar, percebemos que o ensino da oralidade ainda é preterido na maioria das escolas brasileiras.

São ainda poucas as pesquisas publicadas sobre o ensino da oralidade que apresentam não somente contribuições de natureza conceitual, mas também direcionamentos que orientam os professores no desenvolvimento de um trabalho mais sistematizado e adequado com a modalidade oral da língua, em âmbito escolar. Por isso, a necessidade de se superar uma visão dicotômica entre fala e escrita e, ainda, a de se reservar um espaço maior ao trabalho com a oralidade em sala de aula são afirmações recorrentes nos trabalhos publicados mais recentemente.

Ao ingressarem na escola, os alunos já dispõem de competência discursiva e linguística para comunicar-se em interações que envolvem relações sociais de seu dia-a-dia, inclusive as que se estabelecem em sua vida escolar. Acreditando que a aprendizagem da língua oral, por se dar no espaço doméstico, não é tarefa da escola, as situações de ensino vêm utilizando a modalidade oral da linguagem unicamente como instrumento para permitir o tratamento dos diversos conteúdos (BRASIL, 1998, p.24).

Os PCN chamam a atenção, portanto, para o fato de que muito embora a interação dialogal estabelecida entre os professores e os alunos e dos alunos entre si em sala de aula seja uma importante estratégia para a construção do conhecimento e apropriação dos conteúdos ensinados, seria um grande equívoco supor que essa interação contemple a diversidade de questões que envolvem o domínio dos gêneros orais e, por consequência, seja um trabalho suficiente para que o aluno se torne um usuário competente da linguagem para o exercício da cidadania. Nessa perspectiva, “a aprendizagem de procedimentos apropriados de fala e de escuta, em contextos públicos, dificilmente ocorrerá se a escola não tomar para si a tarefa de promovê-la” (BRASIL, 1998, p.25).

Assim, dentre os estudos já publicados que têm se configurado como importantes fontes de pesquisa para o desenvolvimento de um trabalho mais sistematizado e adequado

atrelado às práticas de oralidade e letramento em sala de aula, destacamos as contribuições de Fávero, Andrade e Aquino (2012, 2014), bem como de Marcuschi (1997, 2001).

Fávero, Andrade e Aquino (2014, p.13) afirmam que embora, quando cheguem à escola, os alunos já possuam certo conhecimento sobre as duas modalidades de produção linguística – oral e escrita – adquirido nas relações estabelecidas em sociedade, com raras exceções são expostos a uma reflexão sobre o processamento de cada uma dessas modalidades e, muitas vezes, “atravessam o ensino escolar sem o discernimento desejado sobre as especificidades de uma ou de outra modalidade”.

É consenso entre todos os autores citados nesta seção a necessidade de se reservar um tempo maior para o desenvolvimento de atividades que contemplem a observação, a reflexão e o estudo da relação entre as duas modalidades de uso da língua. E, assim como ocorre com o ensino da escrita, o estudo da língua falada não pode acontecer de forma descontextualizada, isto é, deve ser compreendido na perspectiva do uso.

Nesse sentido, Fávero, Andrade e Aquino (2014) propõem que, para tratar da oralidade em sala de aula, os conhecimentos em torno do conceito de língua falada e de língua escrita não são suficientes, pois é preciso ainda que o professor disponha de subsídios em relação às especificidades dos textos que circulam na sociedade.

A hipótese de que as diferenças entre fala e escrita se dão dentro de um contínuo tipológico das práticas sociais de produção textual e não na relação de dois polos opostos é apresentada por Marcuschi (2001, p.37), como representada no gráfico 1.

GRÁFICO 1 Fala e escrita no contínuo dos gêneros discursivos Fonte: Marcuschi (2001, p.38).

Nesse gráfico estão dispostos dois domínios linguísticos (fala e escrita) em que se encontram os gêneros discursivos (G). Dessa forma, o contínuo vai de um gênero prototípico

da fala (GF1) – uma conversação espontânea, por exemplo – a GE1, um gênero prototípico da escrita, uma conferência acadêmica, por exemplo. Assim, ao afirmar que os gêneros produzidos podem se entrecruzar sob diferentes aspectos e, dessa forma, constituir os chamados gêneros mistos, Marcuschi (2001) apresenta as relações mistas dos gêneros a partir de alguns postulados como “meio” e “concepção”, considerando que, enquanto a fala é de concepção oral e meio sonoro, a escrita é de concepção escrita e meio gráfico. Essas relações estão explicitadas no gráfico 2.

GRÁFICO 2 – Representação da oralidade e escrita pelo meio de produção e concepção discursiva Fonte: Marcuschi (2001, p.39).

A interpretação do gráfico 2 nos permite afirmar que “a” é o domínio do gênero prototipicamente oral (concepção oral e meio de realização sonoro), enquanto “d” corresponde ao domínio prototipicamente escrito (concepção escrita e meio de realização gráfico). Já em “b” (concepção oral e realização gráfica) e “c” (concepção escrita e realização sonora) temos domínios mistos, em que encontramos os chamados “gêneros mistos”, tal como propõe Marcuschi (2001, p.39).

Nesse sentido, é importante destacar que o gênero escolhido para o desenvolvimento desta pesquisa e que foi utilizado em sala de aula como uma possibilidade de ensino de Língua Portuguesa, a saber, o relato pessoal, pode ser considerado tanto como um gênero prototípico do domínio oral, quanto um gênero misto, segundo a proposta de Marcuschi (2001). Afinal, quando realizado na modalidade oral, ele se situará no domínio “a”, caracterizando-se como um gênero prototípico da fala, pois sua concepção discursiva é oral e o meio de produção é sonoro. No entanto, se considerarmos que o gênero relato pessoal também pode ser realizado na modalidade escrita, sua concepção continuará, obviamente,

sendo oral, mas o meio de realização passará a ser gráfico, configurando-se, assim, como um gênero misto, situando-se no quadrante “b” do gráfico 2.

Fávero, Andrade e Aquino (2012) destacam que é necessário mostrar aos alunos como os usos da fala e da escrita são variados e que essas duas modalidades não podem ser dissociadas, pois se influenciam mutuamente. Além disso, é papel da escola, no ensino de Língua Portuguesa, auxiliar o aluno a transitar com segurança dos contextos menos formais aos mais formais de produção de textos orais e escritos, adequando-os, assim, às exigências da situação comunicativa. Mas o que se observa é que, muitas vezes, esse ensino, quando considera relevante dar espaço ao ensino da oralidade na sala de aula, muitas vezes o faz de forma equivocada, estabelecendo uma relação dicotômica entre fala e escrita ou ainda desconsiderando o repertório sociocomunicativo dos alunos.

A esse respeito é interessante apontar um estudo realizado por Marcuschi (1997) acerca do tratamento da oralidade nos manuais didáticos de Língua Portuguesa. Ao considerar que a atenção dada à fala pelas instituições escolares é inversamente proporcional à sua importância no dia a dia da maioria das pessoas, Marcuschi (1997) se propõe a analisar manuais didáticos de Língua Portuguesa das diferentes etapas de ensino (séries iniciais do Ensino Fundamental, séries finais do Ensino Fundamental e séries do Ensino Médio) e constata que o papel central da escola tem sido ensinar a escrita, e que, quando há a presença de atividades que tratem da questão da oralidade na sala de aula, estas, na maioria das vezes, reproduzem uma concepção inadequada da língua que resulta numa visão dicotômica entre fala e escrita e não contribui, portanto, para o desenvolvimento da expressão oral dos alunos.

O desenvolvimento de um trabalho sistematizado com a oralidade e a escrita na escola permite não somente o enriquecimento da abordagem sobre a adequação linguística aos contextos de uso da língua, como também a exploração de atividades diversificadas que estabeleçam uma relação de complementaridade entre essas modalidades. De acordo com os PCN,

o texto produzido pelos alunos, seja oral ou escrito “permite identificar os recursos linguísticos que ele já domina e os que precisa aprender a dominar, indicando quais conteúdos precisam ser tematizados, articulando-se às práticas de escuta e leitura e de análise linguística (BRASIL, 1998, p.37).

No estudo das relações entre o texto falado e o escrito, uma das propostas de atividades que se configuram como oportunidades bastante produtivas não somente à análise e

reflexão sobre o texto oral, como também à observação das relações entre oralidade e escrita e dos recursos linguísticos empregados com fins a adequações às diferentes situações de comunicação é a retextualização18. Marcuschi (2001, p.46) define a atividade de retextualização como “um processo que envolve operações complexas que interferem tanto no código como no sentido e evidenciam uma série de aspectos nem sempre bem compreendidos da relação oralidade-escrita”.

Considerando a fala e a escrita e as possibilidades de combinações, Marcuschi (2001, p.48) afirma existirem quatro possibilidades de retextualização: a primeira, da fala para escrita, a segunda, da fala para a fala, a terceira, da escrita para a fala, e, por fim, a quarta, da escrita para a escrita. O autor ressalta que a passagem do texto oral para o escrito não é, no entanto, a passagem do caos para a ordem, mas, sim, a passagem de uma ordem para outra ordem. Dessa forma, esse movimento de passagem do texto de uma ordem para outra ou de uma modalidade para outra se faz observando algumas questões: i) o propósito ou o objetivo da retextualização; ii) a relação entre o produtor do texto original e o transformador; iii) a relação tipológica entre o gênero textual original e o gênero da retextualização; e iv) os processos típicos de cada modalidade.

Apresentamos, no quadro a seguir, as operações textuais discursivas propostas por Marcuschi (2001) para a passagem do texto oral para o escrito.

QUADRO 3

Operações textuais discursivas na passagem do texto oral para o texto escrito

1ª operação Eliminação de marcas estritamente interacionais, de hesitações e de partes de palavras (estratégia de eliminação baseada na idealização linguística).

2ª operação Introdução da pontuação com base na intuição fornecida pela entoação das falas (estratégia de inserção em que a primeira tentativa segue a sugestão da prosódia). 3ª operação Retirada de repetições, de reduplicações, de redundâncias, de paráfrases e de

pronomes egóticos (estratégia de eliminação para uma condensação linguística). 4ª operação Introdução da paragrafação e pontuação detalhada sem modificação da ordem dos

tópicos discursivos (estratégia de inserção).

5ª operação Introdução de marcas metalinguísticas para referenciação de ações e verbalizações

18 Na segunda parte do livro Da fala para a escrita: atividades de retextualização, Marcuschi (2001) apresenta

a atividade de retextualização como possibilidade de análise das relações entre as modalidades falada e escrita da língua e, assim, propõe um modelo de operações textuais e discursivas que são realizadas na passagem do texto falado para o escrito. Para um estudo mais detalhado sobre as etapas de transformação de um texto falado para o escrito, sugerimos consultar diagrama apresentado pelo autor (MARCUSCHI, 2001, p.75), em que essas operações são explicitadas passo a passo.

de contextos expressos por dêiticos (estratégia de reformulação objetivando explicitude).

6ª operação Reconstrução de estruturas truncadas, de concordâncias, de reordenação sintática, de encadeamentos (estratégia de reconstrução em função da norma escrita).

7ª operação Tratamento estilístico com seleção de novas estruturas sintáticas e de novas opções léxicas (estratégia de substituição visando a uma maior formalidade).

8ª operação Reordenação tópica do texto e reorganização da sequência argumentativa (estratégia de estruturação argumentativa).

9ª operação Agrupamento de argumentos condensando as ideias (estratégia de condensação). Fonte: Adaptado de Marcuschi (2001, p.74).

Embora o autor afirme que a retextualização plena de um texto oral para o escrito deveria passar por todas essas operações sugeridas, ele também destaca que é possível concluir a atividade em qualquer ponto do processo, sem necessariamente realizar todas as operações. Isso porque, segundo Marcuschi (2001, p.76), a questão é complexa e não há critérios suficientemente seguros para apontar o que deve ficar, o que deve sair e o que deve ser modificado em um texto falado para se chegar a um estágio considerado adequado no que tange à presença da oralidade no texto escrito. Além disso, em nossa opinião, as condições de produção do texto, o gênero discursivo utilizado e os objetivos a serem atingidos com a atividade podem influenciar na quantidade de operações realizadas. Assim, a passagem de um relato oral para um relato escrito, por exemplo, possivelmente não demandaria a utilização de todas as operações propostas, visto que concebemos o relato escrito como um gênero misto, conforme discutimos no início desta seção.

Embora as atividades de retextualização sejam muito produtivas para o estudo das relações entre fala e escrita, até mesmo porque permitem identificar a consciência que os alunos têm acerca das semelhanças, especificidades e diferenças entre as duas modalidades, entendemos que por si só não são suficientes para promover a ampliação da competência de uso de ambas, em diferentes situações comunicativas, sendo indispensável, portanto, que as situações de ensino e aprendizagem, envolvendo essas modalidades, estejam relacionadas também ao domínio de diferentes gêneros discursivos, orais e escritos.

Se é de esperar que o escritor iniciante redija seus textos usando como referência estratégias de organização típicas da oralidade, a possibilidade de que venha a construir uma representação do que seja a escrita só estará colocada se as atividades escolares lhe oferecerem uma rica convivência

com a diversidade de textos que caracterizam as práticas sociais (BRASIL, 1998, p.25).

Nessa perspectiva, acreditamos que o procedimento sequência didática, proposto por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), potencializaria o trabalho com as duas modalidades em situações de uso, ao permitir aliar e promover uma interação entre leitura, escuta de diferentes gêneros, produção e análise linguística, tal como explicitaremos nas atividades propostas descritas na seção 4.5 do capítulo seguinte.

4 METODOLOGIA: PROCESSOS E PERCURSO

Neste capítulo, descreveremos os procedimentos metodológicos que deram respaldo técnico e científico para a realização deste estudo, a fim de que tivéssemos condições de responder às questões que orientaram o desenvolvimento da pesquisa proposta.

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA (páginas 56-63)