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A teoria da linguagem e o Trauerspielbuch

No documento Alegoria redimida em Walter Benjamin (páginas 42-45)

Alegoria no Trauerspielbuch

1.1 Da alegoria no barroco alemão

1.1.3 A teoria da linguagem e o Trauerspielbuch

Em 1916 Benjamin escreveu uma série de ensaios que seriam o pontapé inicial de seu Trauerspielbuch. “Tragédia e drama barroco” (Tragödie und Trauerspiel) e “O

significado da linguagem no drama barroco e na tragédia” (Die Bedeutung der Sprache in Trauerspiel und Tragödie) já anunciam pelo título temas abordados na teorização feita em

1925, quase dez anos mais tarde. Outro significativo texto para a elaboração de seu estudo sobre o drama barroco, também datado de 1916, é “Sobre a linguagem em geral e sobre a

linguagem do homem” (Über die Sprache überhaupt und über die Sprache des Menschen).

Nesse ensaio Benjamin faz uso de uma teoria da linguagem (Sprachtheorie), construindo sua argumentação a partir do primeiro capítulo do Gênesis e analisando a relação entre o ato criador e a língua.

A linguagem, antes de ser um mero meio de comunicação (das “Medium” der

Mitteilung) – ideia apresentada no início do ensaio –, é considerada como “infinitude” e “unidade de imediaticidade”, isto é, ela não é tomada como meio para comunicação empírica

entre pessoas, ou linguagem burguesa na perspectiva benjaminiana. Considerando-a como mágica, Benjamin constrói uma teoria esotérica em que a linguagem não é concebida unicamente em sua instrumentalidade; pelo contrário, ela é analisada em seu caráter de nomeação. Ali, o autor ressalta que o “modo espiritual” (geistiges Wesen) da linguagem não deve ser comunicado através dela, mas na linguagem mesma. Além disso, ele afirma que

todas as coisas, animadas e inanimadas, são capazes de “comunicar seu conteúdo espiritual” (seinen geistigen Inhalt mitzuteilen).84

A argumentação benjaminiana parte da mística judaica, tendo em vista a gênese da criação, e da teoria da linguagem dos primeiros românticos, como comenta Winfried Menninghaus na primeira parte de seu livro Walter Benjamins Theorie der Sprachmagie (A teoria da linguagem mágica de Walter Benjamin). Dentre as principais fontes para a reflexão a qual se dedica Benjamin se destacam o pré-romântico Johann George Hamann e o romântico Friedrich Schlegel, um dos autores preferidos em suas empreitadas teóricas.

A relação entre criar e nomear recebe grande importância na explanação benjaminiana. O homem, criado à imagem e semelhança de Deus (Gn, I, 27), é o único que dá nome a todas as coisas (Gn, II, 20), assim como é a única criatura que não foi nomeada. Se, por um lado, as coisas foram criadas pela palavra divina, por outro, elas se tornam conhecidas pela palavra pronunciada pelo homem, isto é, após serem nomeadas. Afinal, “através da palavra, o homem está ligado à linguagem das coisas”.85

No prefácio do Barockbuch, justificando a epistemologia ali adotada (que aprofundo no terceiro capítulo), Benjamin, expressando a importante relação entre linguagem e filosofia, afirma que Adão e não Platão (mormente considerado por sua teorização do mundo das ideias) deve ser considerado o “pai da filosofia” justamente pelo atributo de dar

nomes, “das adamitische Namengeben”, lembrando o ensaio de 1916. Ao receber um nome, a

imperfeita (unvollkommen) linguagem das coisas é, assim, traduzida para a linguagem humana, uma linguagem “mais perfeita”, por assim dizer, justamente por possibilitar o conhecimento, de modo que a linguagem muda se torna sonora, ou ainda, ela se torna um nome (Name). Em outras palavras, a mudez da linguagem das coisas ao ser elevada ao âmbito do conhecimento anuncia, assim, o verdadeiro conhecimento das coisas. Nas palavras de Max Pensky:

[...] [conhecimento] não no sentido do significado convencional ou denotativo pragmático de um nome [...], mas em sua significância como expressividade exata e fundamental do status de coisa como parte de todo esforço criativo de Deus, o sentido da coisa (the thing‟s Sinn).86

Winfried Menninghaus ressalta que na nomeação adamística – em que o ato de nomear se assemelha ao ato de criação característico de Deus – a ideia já está presente no nome, ou seja, este é uma unidade sonora que manifesta a ideia de forma imediata

84 BENJAMIN. Über die Sprache überhaupt und die Sprache des Menschen, p. 141.

85BENJAMIN. Über die Sprache überhaupt und die Sprache des Menschen, p. 150. “Durch das Wort ist der

Mensch mit der Sprache der Dinge verbunden”.

(unmittelbar). Em sua dimensão mágica, a linguagem não é tomada no sentido tradicional de comunicar alguma outra coisa, ela não depende de uma relação instrumental de significados.87

É precisamente quando o homem infringe a ordem de Deus comendo do fruto proibido (Gn, III, 6), momento em que ocorre a queda (der Sündenfall) do paraíso, que a linguagem perde sua “magia” e passa a fornecer meros signos para mediar a comunicação. “A queda é a hora do nascimento da palavra humana [...]”.88 Destituída da condição paradisíaca própria do ato de nomear efetuado por Adão a língua agora entra na dimensão significativa das palavras até chegar ao “abismo da tagarelice (Abgrund des Geschwätzes)”.89

O aparecimento da multiplicidade de linguagens, a excessiva abstração e a perda do caráter de nomeação foram consequências da queda. Nesse contexto, cabe ao filósofo a tarefa de restaurar as palavras em seu caráter simbólico, argumenta o autor no prefácio crítico- epistemológico do livro sobre o drama barroco (retomo essa ideia ao considerar o método de crítica empreendido por Benjamin). Além disso, a natureza também manifesta um efeito da condição pós-lapsária. Ela manifesta uma “outra mudez” revelando, assim, um luto profundo. Por esse breve comentário sobre a queda do homem e o luto a que a natureza se entrega, é possível entender como os escritos de 1916, afinal, configuram o esboço para o

Trauerspielbuch, escrito em 1925. A relevância da perspectiva especulativa e mística da

linguagem na obra de Walter Benjamin se manteve intacta mesmo depois de sua virada para o marxismo, mais visível a partir de meados de 1930, ano de encontro com Bertolt Brecht e que sucedeu sua ida a Moscou (dezembro de 1926 e janeiro de 1927), bem como a adoção da metodologia do surrealismo (cuja principal manifestação disso é a obra Rua de mão única). Aparentemente, conceitos e reflexões dos escritos de sua juventude efetivam, surpreendentemente, um longo percurso no empreendimento crítico benjaminiano. A característica mística do judaísmo presente no ensaio sobre a linguagem ainda pode ser encontrada, por exemplo, em “A tarefa do tradutor” de 1921. Também nas famosas Teses de 1940, uma noção central no estudo do Trauerspiel, aparece relacionado à ideia de história. Trata-se do conceito de Ursprung.

87 MENNINGHAUS. Walter Benjamins Theorie der Sprachmagie, p. 17.

88BENJAMIN. Über die Sprache überhaupt und die Sprache des Menschen, p. 153. “Der Sündenfall ist die

Geburtsstunde des menschlichen Wortes [...]”. Grifo do autor.

No documento Alegoria redimida em Walter Benjamin (páginas 42-45)