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O conceito de Ursprung

No documento Alegoria redimida em Walter Benjamin (páginas 45-48)

Alegoria no Trauerspielbuch

1.1 Da alegoria no barroco alemão

1.1.4 O conceito de Ursprung

O termo Ursprung (origem) do título Origem do drama barroco alemão é, sem dúvida, um dos conceitos-pilares na argumentação do livro. Certamente, conforme argumentam alguns teóricos como Stéphane Mosès e Michael Löwy, ele remete em certa medida ao universo relativo à teologia. Gershom Scholem também toma origem num sentido teologizante. No entanto, circunscrevê-lo unicamente ao universo teológico pode implicar em deixar de lado a tradição de filosofia da linguagem baseada no Gênesis. Diferentemente da unilateralidade da abordagem teológica, Márcio Seligmann-Silva aponta três fontes para esse conceito: a bíblia (juntamente com a mística judaica), o conceito de Urphänomen (“fenômeno

originário” ou “protofenômeno”) retirado de Goethe e a categoria da Ideia platônica,

conforme o prefácio crítico-epistemológico do Barockbuch.90

É bem verdade que o aspecto teológico permeia alguns textos tardios, como é o

caso das “Teses sobre o conceito da história”. No entanto, sem desconhecer o valor dessas

interpretações a respeito da noção de Ursprung, prefiro me ater ao seu sentido histórico, levando em conta a explicação dada por Jeanne Marie Gagnebin. Primeiramente como ela muito bem chama atenção, Benjamin quis manter uma distinção entre origem (Ursprung) e gênese (Entstehung). Para compreender “o motivo essencial” da filosofia da história benjaminiana, desde o livro sobre o Trauerspiel até suas teses de 1940, é necessário considerar a diferença entre os termos apresentados. Citando a comentadora acerca da razão da reflexão benjaminiana sobre a história: “a exigência de rememoração do passado não implica simplesmente a restauração do passado, mas também uma transformação do presente tal que, se o passado perdido aí for reencontrado, ele não fique o mesmo, mas seja, ele também, retomado e transformado”.91

Esse pensamento parece vir a calhar até mesmo considerando a recuperação da alegoria feita por Benjamin, tendo em vista que sua restauração como forma crítica passou, a certa altura, a caracterizar a própria escrita benjaminiana. Torna-se mais evidente entender a ideia de que o procedimento por ele adotado é em si mesmo alegórico, ponto de vista manifesto por importantes leitores seus, como Bernd Witte, Fredric Jameson, Max Pensky e João Barrento, dentre outros.

90 SELIGMANN-SILVA. Ler o livro do mundo. Walter Benjamin: romantismo e crítica literária, p. 138. 91 GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 19.

No trabalho das Passagens Benjamin afirma que a apropriação do conceito em

seu estudo sobre o drama barroco é, afinal, “uma transposição rigorosa e concludente desse

conceito goetheano fundamental do domínio da natureza para aquele da história. Origem – eis o conceito de fenômeno originário transposto do contexto pagão para os contextos judaicos da história”.92 Há, de fato, um rastro teológico no conceito. No entanto, o sentido benjaminiano

de “origem” possui um caráter eminentemente histórico e, fazendo uso da análise apresentada por Gagnebin, a restauração da origem não pode ser alcançada através “de um suposto retorno

às fontes, mas, unicamente pelo estabelecimento de uma nova ligação entre o passado e o presente”.93 O significado do termo precisa, portanto, da história para se esclarecer; não de

seu início puro, mas “a figura temporal de sua redenção”.

Se analisado no original em alemão, o termo Ursprung traz a formação Ur,

“primevo, original”, e Sprung, cujo significado lembra a derivação do verbo springen (“saltar”); assim, etimologicamente “salto primordial”. No prefácio do livro sobre o drama

barroco, Benjamin aproxima esse termo a um conceito goetheano, o protofenônemo (Urphänomen), e, criticando o aspecto mítico relacionado ao conceito, ele se esforça em neutralizá-lo em termos históricos, distanciando-se do que naturalmente seria associado à palavra origem. Desse modo, sua definição não encontra sua conclusão na ideia de

restauração com seu princípio, ou “estado primeiro”. O conceito se abre a um paradoxo, ou

seja, origem é também “inacabamento e abertura à história, surgimento histórico privilegiado, o Ursprung não é simples restauração do idêntico esquecido, mas igualmente, e de maneira inseparável, emergência do diferente”.94 A origem inscreve “no e pelo histórico” a promessa de um tempo redimido, arremata a comentadora.

Há, deste modo, uma relação de confronto entre origem e história. Exatamente desse conflito que tem lugar na “densidade do histórico”, conservando o vocabulário utilizado

por Gagnebin, surge o “originário”, capaz de destruir a pretensa continuidade natural e

mobilizar as Ideias, de que escreve Benjamin no prefácio do Trauerspielbuch, ou ainda de

“apropriar-se integralmente do passado”, conforme é mencionado na terceira tese de 1940.

Gagnebin lembra ainda que nas teses essa noção de origem aparece por meio de uma luta obstinada, onde os fenômenos – ligeiramente associados à luta de classes, lembrando que o marxismo recebe um grande apreço na obra benjaminiana tardia – “devem ser arrancados – pelo conceito – a uma falsa continuidade, aquela que é abusivamente chamada,

92

BENJAMIN. Passagens, p. 504, [N 2a, 4].

93 GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 19. 94 GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 22.

como se a cronologia não fosse, ela também, o fruto de uma construção historiográfica”.95 A

perspectiva benjaminiana de “arrancar a tradição ao conformismo” anunciada na sua sexta tese de “Sobre o conceito da história” ilumina essa ideia de construção historiográfica.

Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. [...] O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.96

Nesse sentido, a narração de acontecimentos históricos pode remeter à dominação

de uma classe. No entanto, ao “despertar no passado as centelhas da esperança”, impedindo

que os mortos sejam esquecidos, o historiador materialista proposto por Benjamin (ciente da salvação, ou possibilidade de interromper o continuum temporal e reorganizar a narração histórica, contida na noção de Ursprung) torna possível trazer à tona memórias esquecidas e possibilita, assim, confrontar a ordem estabelecida pelo esquecimento, apagamento ou controle do passado.

Nessa mesma tese, Benjamin critica a pretensa figura do “historiador neutro”,

defendido pelo prussiano Leopold von Ranke, cujo historicismo almejava conhecer o passado

“como ele de fato foi”. Nessa perspectiva, o historiador historicista estabelece uma relação de

empatia (Einfühlung) com o vencedor e confirma, dessa maneira, a visão dos dominadores. Retomando o desfecho do excerto citado, é certo afirmar que o inimigo de que fala Benjamin se bifurca em dois. De um lado, obviamente criticando a ascensão do partido nazista. De outro, o alvo é a socialdemocracia que assumia para si uma visão otimista do devir histórico (statt Revolution Evolution),97 contrária àquela benjaminiana que via na revolução “o correspondente profano da interrupção messiânica do devir histórico”.

Origem é uma imagem, recorrendo à contribuição de Max Pensky, em que a linearidade do tempo é “dobrada sobre si mesma” e que possibilita, assim, a esperança

antecipatória sobre o passado e a categoria de lembrança voltada para o futuro.98 Através do

Ursprung é possível, portanto, trazer o passado para o presente, estabelecendo uma nova

relação entre eles. Esse aspecto do conceito não se restringe à filosofia da história benjaminiana, manifesta, sobretudo, em suas Teses, mas se mostra também na mobilização de

95 GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 19-20. 96 BENJAMIN. Sobre o conceito da história, p. 224-225.

97

A linha evolucionista da social-democracia contava com Eduard Bernstein como um de seus principais nomes. Bernstein propunha outra interpretação de Marx, a fim de alcançar um socialismo evolucionário, por assim dizer, assim como pensar novas alternativas para o nacionalismo alemão. Marxistas ortodoxos como Luxemburg e Kautsky afirmavam que ele havia rompido com a concepção materialista da história. Para mais informações a respeito de Eduard Bernstein e a social democracia, ver o livro de Manfred B. Steiger, The quest for evolutionary socialism: Eduard Bernstein and social democracy, citado nas referências.

Ideias, como é o caso do tratamento dado ao drama barroco. Afinal, parafraseando a terceira tese, a literatura barroca não poderia ser esquecida pela história. Esse é um dos motivos porque Benjamin, colecionador de “objetos sem importância”, a recolhe em sua crítica.

No documento Alegoria redimida em Walter Benjamin (páginas 45-48)