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Uma rua onde vários se encontram

No documento Alegoria redimida em Walter Benjamin (páginas 110-114)

Rua de mão única como alegoria

2.2. Uma rua que passa em vários países

2.2.1 Uma rua onde vários se encontram

Entre 1926 e 1931, Benjamin escreveu uma surpreendente quantidade de ensaios sobre temas variados (desde brinquedos, passando por pedagogia, até cultura popular). Também nesse período, ele se entregou a uma produção de escrita criativa. Michael

Jennings em “Walter Benjamin and the European avant-garde” (Walter Benjamin e a

vanguarda europeia) vislumbra Rua de mão única como o grande exemplo de experiência artística, assim como um sumário da mudança no pensamento benjaminiano após 1924, ano das reviravoltas em sua crítica (como mencionado na introdução).

É curioso pensar porque após a virada de 1924, Benjamin passou a se interessar mais pela cultura a ele contemporânea, sobretudo tendo em vista os movimentos de vanguarda. A esse respeito, levando em consideração correspondências com amigos e a relação interpessoal que Benjamin desenvolveu com importantes intelectuais e nomes na cultura europeia e russa, Jennings menciona que mesmo que ele, de fato, tenha pensado em distanciar seu foco da Alemanha e considerar a Europa em sua crítica, a Europa chegou até ele, em Berlim. Em meados de 1923, Benjamin, junto a um círculo de amigos, passou a se encontrar com um grupo de intelectuais Berlinenses, o então conhecido “Grupo G”. Dentre eles estavam o pintor e fotógrafo húngaro Lasslo Moholy-Nagy, que mais tarde viria a se tornar professor na Bauhaus, o influente arqui-teto Ludwig Mies van der Rohe, o construtivista russo El Lissitsky, também fotógrafo e arquiteto, e o artista plástico alemão Hans Richter, para citar alguns nomes.77

O contexto em que Benjamin estava inserido exerceu uma influência vital em sua criatividade. Ela se manifesta em meio a essa confluência de movimentos de vanguarda: o dadaísmo de Hans Richter, o construtivismo de El Lissistky, o modernismo de Mies van der Rohe – dentre outros representantes das vanguardas. Com eles, Benjamin conhece a tematização da relação do homem com a indústria, a produtividade da arquitetura, da fotografia e descobre, enfim, o lugar da arte na cultura. Esse processo, conjuntamente com suas reflexões sobre a percepção modificada pela fotografia e pelo cinema, repercutiu alguns

anos mais tarde na publicação do célebre ensaio “A obra de arte na época da reprodutibilidade técnica” (1936), em que ele analisa a desmistificação da obra de arte e a destruição da aura.

De todas as expressões vanguardistas, o surrealismo (em especial a influência dos franceses) é a que, a primeira vista, mais se destaca em Rua de mão única, e que figura, de forma ainda mais contundente, em seu inacabado projeto das Passagens, que representa tanto sua aplicação filosófica (philosophische Verwertung) quanto sua superação (Aufhebung).78 O fascínio exercido pelos surrealistas se justifica por terem sido eles os únicos que compreenderam as palavras do Manifesto comunista, como conclui Benjamin em seu ensaio de 1929. É a iluminação profana o que liberta todas as coisas do juízo do homem e aponta juntamente com a memória proustiana para uma nova forma de considerar a história. Se com a memória involuntária de Proust, Benjamin aprende que o acontecimento lembrado, diferentemente da finitude do vivido, é sem limites; com os surrealistas, ele descobre o valor de associações espontâneas de imagens, bem como o potencial revolucionário do antiquado.

Em suas memórias Walter Benjamin: die Geschichte einer Freundschaft (Walter Benjamin: a estória de uma amizade), Gershom Scholem conta que as leituras das revistas em que Aragon e Breton proclamavam suas ideias “coincidiam, em certo sentido,

com suas próprias profundas experiências”. Continuando, Scholem afirma que o impactante encontro com o surrealismo constituiu no pensamento benjaminiano “chaves para abrir seu próprio mundo”.79

O fragmento “Posto de gasolina” de Rua de mão única, (seguindo a ideia do

romantismo de Iena, segundo a qual algumas obras já trazem uma crítica em sua própria constituição) uma auto-reflexão sobre a escrita do livro, pronuncia uma linguagem vigorosa

que evoca “formas modestas” que manifestam melhor uma “influência em comunidades

ativas [...] em folhas volantes, brochuras, artigos de jornal e cartazes. Só essa linguagem de prontidão mostra-se atuante à altura do movimento”.80 Essa dicção revolucionária de que fala o autor pode ser vista ao longo das páginas daquela obra. Em outras palavras, o texto se revela como uma atuação literária constituída de anúncios, cartazes, recortes – elementos da tecnologia industrial que a certa altura passaram a ora obscurecer, ora estruturar a atenção do homem, sua capacidade de compreender o mundo que o cerca. Para Jennings, Benjamin busca

78

A respeito dessa superação de que fala Benjamin, retomo o assunto no próximo capítulo.

79 SCHOLEM. Walter Benjamin: the story of a friendship, p. 135. 80 BENJAMIN. Rua de mão única, p. 11.

a raiz para utilização dessas formas de apresentação literária na convicção dadaísta de que

apenas algo inútil ou descartado é livre da “contaminação ideológica” daqueles que estão no

poder.81

O texto “Canteiro de obra” deixa claro essa predileção por coisas descartadas na

metodologia benjaminiana – não apenas Rua de mão única, como também sua filosofia da história, revela o exercício de colecionar produtos residuais. Trata-se de, como as crianças, recolher os resíduos (Abfall), que surgem

na construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico, na costura ou na carpintaria. [...] Neles elas [as crianças] [...] põem materiais de espécie muito diferente, através daquilo que com eles aprontam no brinquedo, em uma nova, brusca relação entre si. As crianças, com isso, formam para si, elas mesmas, seu mundo de coisas (Dingwelt), um pequeno no grande.82

Concomitantemente a esse trabalho de associar bruscamente coisas pequenas, há também uma nova forma de ver as coisas, influenciada pela fotografia e pelo cinema anunciada na

Alemanha em meados da década de 1920. Com sua ideia de “Nova visão” Moholy-Nagy

acreditava que a fotografia possibilitava capturar uma nova forma de ver o mundo, uma forma que o olho humano não era capaz. Rua de mão única, de certo modo, transpõe o construtivismo da fotografia desse artista húngaro para forma literária e chama atenção para a alteração sensorial provocada pelas novidades da tecnologia e pela complexa relação.83

A fisionomia de Rua de mão única expressa também um idiossincrático materialismo empregado nos fragmentos e comentários. Dentre os diversos textos que o constituem, essa característica fica mais nítida em apontamentos sobre a condição econômica, política e social da República de Weimar, como é o caso especificamente do conjunto de

fragmentos intitulado “Panorama imperial. Viagem através da inflação alemã”. As

considerações a respeito de produtos e da relação do homem com eles são feitas de uma forma surrealista, construindo, assim, uma idiossincrática configuração do materialismo histórico, o qual a certa altura, tomou proporções decisivas na obra benjaminiana.

Em se tratando de Rua de mão única, vale ressaltar, principalmente, a fecundidade de construir reflexões a partir das livres associações possibilitadas pelo surrealismo. O uso excessivo dessa ferramenta em sua crítica chegou a repercutir em certa resistência por parte

de alguns amigos de Benjamin, como Scholem e Adorno. Rainer Nägele em seu artigo “O

81

JENNINGS. Walter Benjamin and the European avant-garde, p. 30.

82

BENJAMIN. Rua de mão única, p. 19; Einbahnstraße, p. 93. “beim Bauen, bei Garten oder Hausarbeit, beim Schneidern oder Tischlern entsteht. [...] In ihnen bilden sie die Werke der Erwachsenen weniger nach, als daß sie Stoffe sehr verschiedener Art durch das, was sie im Spiel daraus verfertigen, in eine neue, sprunghafte Beziehung zueinander setzen. Kinder bilden sich damit ihre Dingwelt, eine kleine in der großen, selbst”, loc. cit.. Tradução ligeiramente modificada.

materialismo dialético entre Brecht e a Escola de Frankfurt” (Dialectical materialism between Brecht and the Frankfurt School) levando em conta textos e cartas escritas a partir de 1926

analisa o percurso de Benjamin em direção ao materialismo histórico e seu distanciamento da escola de Frankfurt, enfatizando nesse processo a forma como Benjamin passa a considerar a relação entre teoria e práxis e o papel fundamental da amizade e da influência de Brecht em sua obra. Ademais, a excentricidade das constelações benjaminianas, construídas muitas vezes por aproximações de extremos, diferia do círculo frankfurtiano.84

Após seu envolvimento gradativo com o marxismo, cujas influências iniciais foram a leitura reveladora de História e consciência de classe, de Lukács (livro que ele descobriu a partir de uma resenha escrita por Ernst Bloch)85 e seu encontro com Asja Lacis (por quem ele se apaixonou), em maio de 1926 Benjamin escreve para Scholem sobre a

necessidade de abandonar “a pura esfera teórica” em sua reflexão.86

Com o passar do tempo, a distância em relação à esfera teórica, problematizada na carta mencionada, se intensifica,

quando em 1927, ele escreve a Martin Buber, se referindo à escrita de seu artigo “Moscou”: “Uma coisa posso por certo dizer ao senhor – o negativo: toda teoria permanecerá distante de

minha apresentação (Darstellung)”.87 A apresentação na teorização de Walter Benjamin recebe, como já foi dito, uma grande importância.

Para Jennings, o G-ismo e o “idiossincrático materialismo histórico” são fatores determinantes na construção de Rua de mão única, um texto que opera uma fusão de vanguardas. Citando o autor: “... uma síntese de Dada, construtivismo e surrealismo que abrirá o caminho para novas direções na produção cultural alemã e, idealmente, em relação à cognição e uma consequente ação política”.88 Primeiramente, seu aspecto político fica evidente porque Rua de mão única revela em sua forma uma obra de arte vanguardista inovadora que assume elementos revolucionários da linguagem opostos ao sistema vigente. Em seguida, seu conteúdo programático, que a partir de um materialismo histórico sui

84

NÄGELE. Dialectical materialism between Brecht and the Frankfurt School, p. 164. Os extremos a que o crítico se refere na formação das constelações, devem ser entendidos de duas maneiras. Em primeiro lugar em relação a pensamentos consequentes de aproximações distantes (como a célebre junção entre materialismo e teologia). Em segundo lugar, em se tratando das amizades que Benjamin tinha com pessoas que guardavam grandes diferenças, como a relação que ele desenvolveu com Brecht (que era malvista por seus outros amigos, Scholem, Adorno e Gretel Karplus – que em pouco tempo viria a ser esposa de Adorno).

85 BENJAMIN. Gesammelte Briefe, vol. II, p. 469. 86

BENJAMIN. Gesammelte Briefe, vol. III, p. 158. Nessa mesma carta (29-05-1926), ele escreve: “Trabalho no [...] livro de anotações, que não gosto de chamá-lo de livro de aforismos” (“Ich arbeite [...] nur noch an dem Notizbuch, das ich nicht gern Aphorismenbuch nenne”). É curioso pensar que talvez a partir do materialismo dialético descoberto no marxismo (a partir de 1924, quando ele lê Lukács), bem como pela complexidade que Rua de mão única adquiriu, Benjamin passou a considerá-lo como “o livro de anotações”.

87 BENJAMIN. Gesammelte Briefe, vol. III, p. 232.

generis, chama atenção para as coisas, os lugares e as pessoas que integravam o período de

uma Alemanha entre guerras – uma época de fragilidade econômica, miséria e desolação, apesar da ilusão de uma estabilidade – e, além disso, para o interior do mundo das mercadorias (a que Benjamin se dedica mais tarde em seu Passagen-Werk).

No documento Alegoria redimida em Walter Benjamin (páginas 110-114)