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Dialéticas do alegorês e a apropriação ontológica do barroco

No documento Alegoria redimida em Walter Benjamin (páginas 57-62)

Alegoria no Trauerspielbuch

1.1 Da alegoria no barroco alemão

1.1.7 Dialéticas do alegorês e a apropriação ontológica do barroco

Para explicar o processo de construção de significado no barroco Benjamin recorre a Herbert Cysarz, para quem na poética barroca uma ideia era comprimida numa imagem e esta impressa numa palavra. Esse caráter visual da poesia barroca em que a linguagem passa a ter uma materialidade radical quando considerada em relação à musicalidade característica da poesia constitui uma dialética baseada em som e escrita, já que

estes “mantêm entre si uma polaridade tensa. Essa relação funda uma dialética, que justifica o

estilo „bombástico‟ como um gesto linguístico plenamente intencional e construtivo”.124

Essa linguagem visual particular do barroco aprisiona as coisas. A teoria barroca da linguagem postulada por Jacob Böhme – que efetivava uma interpretação “espiritualista” da origem da língua alemã, cuja ideia de linguagem natural privilegia a língua falada – deixa

claro essa noção de aprisionamento característico da “escrita visual da alegoria, que escraviza

as coisas nos amplexos da significação”.125 A liberdade se manifesta em todas as coisas somente fora do cárcere da alegoria.

Continuando seu trabalho filológico, em “A fragmentação da linguagem” Benjamin afirma como o barroco transforma a língua alemã, introduzindo a grafia de palavras maiúsculas e oferecendo um sentido alegórico a muitos substantivos. Em se tratando da comparação entre a palavra falada e a escrita, a primeira é puramente sensual (se relaciona unicamente ao sentido), já a segunda pertence ao “reino da significação”. Citando as palavras do autor:

A palavra oral não é afetada pela significação ou o é, como se fosse contaminada por uma doença inevitável; a palavra se interrompe, quando está sendo articulada, e as

123

BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 187.

124 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 223. 125 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 224.

emoções, que estavam a ponto de extravasar, são represadas, provocando o luto. A significação aparece aqui, e aparecerá sempre, como o fundamento da tristeza.126 Outra vez o luto se faz presente, agora relacionado à significação própria da linguagem característica do Trauerspiel. Retomando o ensaio sobre a linguagem (Über die

Sprache überhaupt und die Sprache des Menschen), escrito em 1916, a condição do luto

(Trauer) surge após a queda, ou seja, com o conhecimento, a significação. Logo, a palavra escrita expressa a relação entre o significante e o significado. Se no período edênico, palavra e significado em sua imediaticidade eram um só, no caso da criação alegoria, a situação da palavra adquire a dimensão de uma profusão de significados. Se de um lado a natureza em

decorrência de sua “outra mudez” se entrega a um luto, o homem com o falatório das várias

línguas mergulha na consciência de poder conferir às coisas outros significados.

À passagem acima transcrita vale a pena aproximar outro fragmento, no qual Benjamin considera o momento em que um objeto se encontra sob o olhar da melancolia e adquire um significado segundo o alegorista.

Se o objeto se torna alegórico sob o olhar da melancolia, ela o priva de sua vida, a coisa jaz como se estivesse morta, mas segura por toda a eternidade, entregue incondicionalmente ao alegorista, exposta a seu bel-prazer. Vale dizer, o objeto é incapaz, a partir desse momento, de ter uma significação, de irradiar um sentido; ele só dispõe de uma significação, a que lhe é atribuída pelo alegorista.127

Essa apropriação ontológica do alegorista possibilita que ele fale do que lhe convém. A ideia de que qualquer objeto pode significar qualquer coisa confirma a certeza de que a alegoria possui uma dialética incontornável; dialética que se desdobra em vários sentidos. Tendo em

vista a riqueza de significações no barroco, segundo a arbitrariedade do alegorista, “na

perspectiva alegórica, [...] o mundo profano é ao mesmo tempo exaltado e desvalorizado”.128 A alegoria tem seu lugar na forma e no conteúdo do barroco e aparentemente sintetiza a imaginação dialética característica daquele período. Em se tratando da forma,

Benjamin aponta para a “dialética da convenção e da expressão”. Já em relação ao conteúdo, há a chamada dialética religiosa. Da mesma forma que “a doutrina barroca compreendia a

história em geral como uma sucessão de eventos criados, a alegoria em particular, embora uma convenção como qualquer escrita, era vista como criada, da mesma forma que a escrita sagrada”.129 Assim, a alegoria do Trauerspiel é “expressão da convenção”.

A escrita sagrada, de que fala Benjamin se manifesta nos hieróglifos, em detrimento da escrita alfabética. É o desejo de encarnar “o caráter sagrado da escrita” que

126 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 230. 127

BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 205.

128 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 197. 129 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 197.

constrói na escrita barroca uma relação entre língua e imagem constituindo, assim, um

“fragmento amorfo”, o que, ao mesmo tempo, confirma a arbitrariedade própria da escrita e

da alegoria – e se opõe, dessa forma, ao símbolo artístico.

Benjamin afirma em relação à intenção do alegorista que a imagem é runa, isto é, um antigo caractere dos alfabetos germânicos e escandinavos. Ora, as imagens-letras compostas pelo alegorista são fragmentos que confrontam a pretensão da arte (classicista) de expressar a totalidade e denunciam a problemática da arte, ou seja, reconhecem na physis o

que ela continha de “incompleto e despedaçado”.130

Também Adorno em sua Teoria estética, confirma essa perspectiva, ao notar que embora a arte proteste contra a morte em sua duração, ela não tem controle algum em relação à sua permanência no mundo ou na história.131

Christine Buci-Glucksmann, realizando uma arqueologia da modernidade sob o viés benjaminiano a partir da razão barroca, propõe que a alegoria antecipa, à sua maneira, o choque e as montagens do século XX. Para ela, a alegoria dilacera o objeto e fixa uma nova

realidade, de maneira “similar à lógica do inconsciente”.132

O “caráter escritural da alegoria” reside expressamente em revelar um “saber oculto”, próprio da escrita sagrada. A ideia de “escrita enquanto imagem” foi percebida

primeiramente pelos românticos, afirma Benjamin, sobretudo com Franz von Baader – que pertencia ao mesmo ciclo de Joseph Görres. De Baader, o teórico da alegoria cita a seguinte

passagem: “Não é sem razão que tudo o que vemos na natureza externa já é para nós uma

escrita, uma espécie de linguagem de signos, à qual falta o essencial – a pronúncia que deve ter chegado aos homens de outro lugar”.133 Esse pensamento de que o mundo enquanto escrita pode ser decifrado está presente no romantismo ienense e manifesta um eco profundo também na filosofia benjaminiana, como aponta Márcio Seligmann-Silva em Ler o Livro do mundo.

Walter Benjamin: romantismo e crítica literária.

A relevância da imagem expressa na língua torna possível perceber na physis da

obra de arte o que ela continha de “heterônomo, incompleto e despedaçado”. O classicismo,

com a ideia de arte como expressão do belo qual a natureza em sua plena harmonia, não possuía tal percepção. Exatamente por expor, ou ainda, apresentar (darstellen) essas

características, o barroco anuncia, de modo intuitivo, “o caráter problemático da arte”. A argumentação benjaminiana critica a perspectiva exclusiva de “arte como ideal de beleza” e

130 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 198. 131

ADORNO. Aesthetic theory, p. 27.

132 BUCI-GLUCKSMANN. Baroque Reason. The aesthetics of modernity, p. 70. 133 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 206.

considera a historicidade, ou seja, o “caráter perecível” manifesto na ruína, como aspecto positivo justamente por abandonar esse ideal.

Na direção contrária à perspectiva defendida por Benjamin, a alegoria como forma de expressão não é compreendida pelos neokantianos – que obviamente valorizavam a arte bela e harmônica que lembrasse a natureza –, mas antes rechaçada por sua multiplicidade e riqueza de significações. Um exemplo é o caso de Hermann Cohen, o qual a considera contraditória à “pureza e unidade de significação” próprias da natureza, ao passo que seu discípulo Carl Horst a toma como transgressora de gênero, por trazer para o âmbito da palavra as artes plásticas.134 Essa perspectiva antidialética não permite vislumbrar a síntese entre a intenção artística e a teológica operada pela alegoria. Síntese que Benjamin aponta não como

uma paz, mas antes como uma “tregua dei entre suas intenções antagônicas”.135

“A alegoria se instala mais duramente onde o efêmero e o eterno coexistem mais

intimamente”.136 Afinal, ela aparece num período de guerra (a Guerra dos Trinta Anos) e disputas religiosas (a Reforma e a Contra-Reforma), onde o homem se mostrava dividido entre acreditar no dogmatismo da fé cristã ou se submeter à política dos principados. A

inspiração barroca tem lugar nessa tensão “entre o apego do barroco pela tradição religiosa e a emancipação crescente da história humana, na sua contingência e na sua crueldade”, reflete

Jeanne Marie Gagnebin a esse respeito. Continuando, ela considera a figura do poeta barroco, o qual

[...] não consegue mais distinguir nenhum desígnio divino no caos do mundo e, à beira do abismo do desespero, se reequilibra pela confissão, interpretando a vertigem que o submerge como uma espécie de prova ex negativo da insuficiência da razão e da necessidade da fé.137

Assim, como consequência do choque entre a consciência de que a razão não consegue desfazer o entendimento da natureza efêmera das coisas e o desejo promovido pela fé, nasce a inspiração alegórica como fruto dessa dialética. Até mesmo em relação à linguagem alegórica sua constituição se revela dialeticamente. Gagnebin, numa bela metáfora, identifica duas

fontes “que se juntam num mesmo rio de imagens” e se confluem manifestando a linguagem

característica do drama barroco: o luto e o jogo.138 O primeiro motivado pela ausência de um referente definitivo – lembrando até mesmo o princípio etimológico do termo grego allo-

agorein, falar uma coisa para significar outra; o segundo, consequente natural do primeiro, se

134 HORST apud BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 199. 135 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 199.

136

BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 247.

137 GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 44. Grifo da autora. 138 GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 45.

trata da “liberdade lúdica” que oferece ao alegorista o ofício de inventar novos sentidos – que poderão certamente ser desfeitos pela hermenêutica.

Aqui vale distinguir as duas acepções em torno da noção de alegoria. Trata-se das noções de alegoria de produção e alegoria hermenêutica. João Adolfo Hansen se dedica a essa diferenciação no seu livro Alegoria. Construção e interpretação da metáfora, lembrando a manifestação do alegórico na produção – tratada como artifício retórico, em que uma mensagem é codificada e/ou ornamentada pelo autor do texto, considerando o aspecto lúdico dessa figura de linguagem – e na interpretação – aplicada na recepção e decodificação de textos. Esta última é notoriamente empregada principalmente no contexto religioso, em que muitas vezes se busca o sentido espiritual das palavras. A tradição judaico-cristã exemplarmente apresenta um longo histórico de exegeses. Benjamin de forma muito particular, aparentemente, aborda a noção de alegoria tanto no âmbito hermenêutico, em sua interpretação do Trauerspiel, quanto em relação à forma produtiva, por assim dizer, como evidencia o exemplo de Rua de mão única.

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