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A TEORIA DA OPRESSÃO FÍSICA E CULTURAL

2. ENQUADRAMENTO TEÓRICO

2.3. A TEORIA DA OPRESSÃO FÍSICA E CULTURAL

Paulo Freire, na obra Pedagogia do Oprimido, esclarece que com “a distorção de ser mais ou de ser menos, leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos”78 e que “a libertação nunca

chega pelo acaso, mas pela práxis ou prática corrente de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela.” 79 A extrema violência adotada pelas forças da ocupação contribuiu para

reforçar o sentimento de união entre a população violentada e intensificou a luta pela libertação,80 como

se pode comprovar pelos seguintes massacres: 7 de dezembro 1975, em Díli, no porto de Díli / Ponte Cais; no Recinto do Edifício de Assistência Social, hoje Universidade Nacional de Timor Loro Sa’e; na ribeira Malhoa; no Cerco e Aniquilamento, em setembro de 1977. Nos ataques feitos contra a população e contra a resistência em Matebian, em 1978, as forças de ocupação destruíram e queimaram tudo o que encontraram pela frente, utilizando também as “bombas incendiárias”, muito temidas pela população81 no

massacre de Aitana, em Lacluta, a 7 de setembro de1981, e também no massacre de Crarás, a 7 de setembro de 1983. Ainda em 1983, as forças indonésias do batalhão 745 mataram alguns prisioneiros em Muapitine, em Lospalos, com catanas, espadas e machados, acompanhados pelo batuque, dança tradicional timorense.82 Entre as vítimas encontravam-se: Lino Xavier, Leonel Oliveira, Ângelo da Costa,

Alberto dos Santos e Álvaro Freitas.83 Em 1983, foram desterrados para a ilha de Ataúro mais de cinco

mil timorenses – homens, mulheres, crianças e idosos – só porque tinham familiares na guerrilha. Era necessário separá-los, para evitar que lhes dessem apoio84.

Tal como foi afirmado para outro contexto, foi a própria severidade que criou as condições necessárias para o desenvolvimento de um movimento nacionalista forte e militante85.

As violações, os abusos, as prisões arbitrárias, os massacres o comportamento das tropas indonésias, a marginalização feita aos timorenses,86 fizeram realçar as “diferenças” e o sentimento de

77 Sousa (2013), Vozes..., p. 130.

78 Freire, Paulo (2010), Pedagogia do Oprimido, São Paulo: Paz e Terra Ltda. pp. 32-33.

79 Idem, ibidem, p. 34, 2010.

80 Centeno, Rui M. S. e Rui Alexandre Novais, orgs. (2006), Timor-Leste: de Nação ao Estado, Porto, Edições Afrontamento, p. 51.

81 Sousa (2013), Vozes..., p. 196. 82 Idem, ibidem, p. 396.

83 Comissão de Acolhimento Verdade e Reconciliação (CAVR) (2013), Relatório Final da Comissão de Timor-

Leste para Acolhimento, Verdade e Reconciliação, Jakarta, PT. Gramedia, p. 198.

84 Timor Carrascalão, (2006), Timor..., pp. 238-239.

85 Mondlane, Eduardo (1995), Lutar por Moçambique, 1a Edição Moçambicana, Maputo: Coleção Nosso Chão, p. 14.

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individualidade étnica [...] de ordem estrutural87.A insegurança que a integração poderia trazer ao povo

timorense no futuro, quando um dia Timor fosse definitivamente integrado na Indonésia, foi um dos grandes motivos da luta em prol da independência.

A opressão contra o povo timorense incentivou e dinamizou a luta da Resistência Armada contra a Ocupação e, conforme disse Xanana Gusmão, “A violação dos direitos humanos está na razão direta da consciência patriótica do Povo Maubere e a consciência patriótica do nosso Povo fortifica-se também na razão direta dessas violações” 88. O mesmo se deu em Timor-Leste.

“Un ejército enfrentando a la guerrilla ejecutaria a lós rehenes, quemará vivendas, arrestará a lós miembros de la família, destruirá la propriedad, torturará a lós prisioneiros y conducirá a polblaciones enteras a campos fuertemente custodiadas com la esperanza de que el pueblo se dé cuenta de que apoyar a la insurgência es demasiado peligroso. Pocas veces funciona”89.

Segundo nos relatou, a Elisa Martins, nas operações militares, caso apanhassem alguém, torturavam-no e depois matavam-no ou, então, com uma faca, faziam uma cruz nas costas, rasgavam-lhe a pele, como se faz aos cabritos, cortavam-lhe as orelhas ou enterravam-no vivo.90 Quem praticava esses

atos eram os elementos da UMI,91 uma organização ligada ao RPKD,92cuja missão era fazer inquéritos.

Noutras ocasiões, quando capturavam alguém, amarravam-lhe as mãos e atavam-nas ao tanque de guerra com um cabo de aço, sendo a vítima arrastada até à vila – por vezes, a vítima chegava à vila completamente desfeito e desfigurado, como também exibiam aos familiares e ao público e membros do corpo cortados, como, por exemplo, orelhas, órgãos genitais, cabeças, etc. 93 A população era obrigada a

presenciar essas cenas, caso contrário era tida como apoiante da FRETILIN.94 Conforme o Pe. José

Martins, para desmoralizar a resistência, obrigavam os presos a fazerem as necessidades no prato com a comida miserável que lhes davam. Como também obrigavam os maridos e as mulheres a terem relações sexuais em público95.

Para forçar a população à submissão também utilizavam métodos de execução como, por exemplo, a morte lenta deixando as vítimas nuas, sem comida nem água, em lugares escuros, a utilização

87 Thomaz, Luís F. R (1994), De Ceuta a Timor, Lisboa, Difel, pp. 609-610.

88 Gusmão (1994), Timor-Leste ..., p. 68.

89 White, Matthew (2012), Crónica de las Grandes Atrocidades de la História, Buenos Aires, Editorial Paidós SAIFCS, p. 473.

90 Sousa (2013), Vozes ..., p. 153.

91 UMI – Era um dos grupos que apoiava os militares tares indonésios na infiltração em Timor antes da invasão. Eram eles: Team Umi, Team Tuti e Team Susi.

92 RPKD – Regimen Pasukan Komando Angkatan Darat.

93 Em Laleia, segundo me declarou um testemunho ocular em dezembro de 2018, os militare foram num helicóptero levaram a cabeça decepada de um guerilheiro. Reuniram o povo no recinto da Igreja, exibiram a cabeça do guerrilheiro ao povo perguntando se era a cabeça do Xanana. O povo inteligentemente respondeu que sim. Com isso os homens que estavam presos foram todos libertos.

94 Sousa (2013), Vozes ..., pp. 156-157. 95 Martins (2014), Da Cruz...p.64.

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de choques elétricos nos prisioneiros, pontas de cigarros, arrancar unhas, espancamentos até as vítimas ficarem destroçadas, passar dias inteiros nos bidões cheios de água96.

Carlos Filipe Ximenes Belo, fez o seguinte relato sobre as prisoes e maus tratos:

“Quando levam as pessoas para a prisão, a primeira coisa que lhes fazem é espancá-las. Tenho recebido cartas de prisioneiros e de ex-prisioneiros que me contam todos os tipos de tortura: choques elétricos, queimaduras dos órgãos genitais com cigarros, mergulhos em barris de água gelada e chicotadas até dizerem que são colaboradores da FRETILIN”97.

Afirma José Luís Cabaço, que em Moçambique,

“a fonte da unidade nacional foi o sofrimento comum durante os últimos cinquenta anos sob o domínio português [...] A severidade criou as condições necessárias para o desenvolvimento de um movimento nacionalista forte e militante e a clandestinidade tornou-se a melhor escola de formação de quadros políticos fortes, dedicados e radicais”. 98

Um paralelismo poderá ser ensaiado com o vivido em Timor-Leste:

“A violência aplicada pelas forças da ocupação para sufocar esse desejo de liberdade contribuiu para reforçar o sentimento de união entre a população dominada predominantemente pelo divisionismo considerado como uma doença endémica social secular de Timor e intensificou o desejo da luta de libertação” 99.

Um dos grandes propagandistas da independência de Timor foi a própria Indonésia. “Três horas antes da invasão, o povo desejava a presença indonésia, três horas depois, o povo ganhou por eles uma aberração e rejeição” 100.

Segundo Teresa Amal, “a ocupação indonésia não assumiu apenas um carácter militar, mas, simultaneamente, uma ocupação identitária.” Foi assim a ocupação indonésia, cujos objetivos eram criar um espaço social e simbólico para a difusão e adaptação do bahasa indonésio, língua indonésia, da cultura indonésia, até se ocuparem dos comportamentos sociais, reconstruir o imaginário nacional e os vínculos históricos,101 pela filosofia do Estado Pancasila e Sumpah Pemuda, Juramento da Juventude, em 1920,

onde se declarava uma só nação, a Indonésia, uma só língua, o bahasa indonesia, e uma só pátria, a Indonésia.Porém não foi isto o que aconteceu. A presença indonésia, pelo contrário, ajudou a intensificar, consolidar e aprofundar a criação da ideia de uma comunidade imaginária timorense.

96 Martins (2006), Nossas…p.96

97 Belo (1993) Jornal, O Estado de S. Paulo 11/2/1993, p.93 98 Cabaço (2009), Moçambique..., p. 87.

99 Centeno, Rui M. S. e Rui Alexandre Novais (orgs), (2006), Timor-Leste: de Nação ao Estado, Porto, Edições Afrontamento, p. 51.

100 Comentário feito ao autor da tese por D. José Joaquim Ribeiro em fevereiro de 1976, em Lecidere, Díli. 101 Amal, Teresa (2006), Sete Mulheres de Timor, Feto Timor Nain Hitu, Santa Maria da Feira Instituto Português da Juventude, Rainha & Neves Lda. p. 15.

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O dispositivo omnipresente da ocupação com a sua opressão física e cultural, prisões arbitrárias, chacinas, matanças, fuzilamentos, massacres, durante a ocupação, reforçaram o desenvolvimento do nacionalismo, da união nacional, a formação de uma autêntica consciência de libertação e intensificaram o sentimento e a consciência nacional com resistência ativa e passiva.

Tentou criar-se uma opinião de que o povo timorense era tipicamente indonésio, porém verifica- se que os timorenses são diferentes dos indonésios, masyarakat Timor-Timur tidak tipikal Indonesia. Enquanto a população indonésia, na sua maioria muçulmana, tem ascendência melayu, os timorenses são provenientes da Melanésia, cuja maioria dos habitantes é apoiante da religião católica. Como tal, também foi diferente a história do colonialismo102.

O desconhecimento sobre o povo timorense por parte dos indonésios, da sua cultura e da sua história, levou-os a tomar uma atitude contra Portugal, como tiveram contra a Holanda, como se a colonização portuguesa fosse idêntica à holandesa. Para os indonésios, Timor estava para Portugal como a Indonésia estava para a Holanda, e queriam que os timorenses os encarassem como libertadores de um domínio que fora, afinal, bem mais leve do que o seu. Como tal, os indonésios não conseguiram perceber que ali a cultura islâmica se apresentava essencialmente como um fator de diferenciação, enquanto que em Timor a cultura católica era um traço de união.103

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