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A teoria dos gêneros discursivos de vertente bakhtiniana

2.2 CONCEPÇÕES BAKHTINIANAS: RELAÇÕES DIALÓGICAS, VOZES, PRESUMIDOS E GÊNEROS

2.2.4 A teoria dos gêneros discursivos de vertente bakhtiniana

Bakhtin e seu Círculo, ao elaborarem uma teoria enunciativo-discursiva da linguagem, propõem reflexões acerca de enunciado/enunciação, de sua estreita vinculação com signo ideológico, palavra, comunicação, interação, gêneros discursivos, texto, tema.

Dessa forma, a concepção de enunciado/enunciação não se encontra pronta e acabada em uma determinada obra, em um determinado texto.

Neste estudo, opta-se pela terminologia “gêneros discursivos”, pois se crê que o conceito de gênero está relacionado a objeto discursivo ou enunciativo (ROJO, 2005), uma vez que envolve elementos sócio-históricos da situação comunicativa, determinados pelas condições reais da enunciação, ou seja, pela situação social mais imediata (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992), privilegiando, sobretudo, a vontade enunciativa do produtor do discurso que constrói seu texto, de acordo com a finalidade e a apreciação valorativa que faz sobre o(s) interlocutor(es) e o(s) tema(s) (CECÍLIO; RITTER; PERFEITO, 2010).

Ao considerar o enunciado como entidade concreta e a língua como instrumento sócio-histórico, os diálogos entre os parceiros da interação são determinados e estruturados pelas formas de organização e de distribuição de lugares sociais, em diversas situações sociais de produção de discursos, os quais são perpassados por ideologias próprias. Esses lugares são definidos por Bakhtin (2003) como esferas do cotidiano (familiares e íntimas) e esferas dos sistemas ideológicos constituídos (moral, religião, ciência, arte etc.). A noção de esfera é fundamental para compreender as peculiaridades das produções ideológicas da esfera acadêmica, particularmente no campo da publicação de textos de diferentes áreas de conhecimento em periódicos especializados, uma vez que, de acordo com Grillo (2006, p. 146), com base em Bakhtin, “a noção de esfera permeia a caracterização do enunciado e dos seus tipos estáveis, os gêneros, no que diz respeito ao seu tema, à sua relação com os elos precedentes (enunciados anteriores) e com os elos subsequentes (atitude responsiva)”.

Conforme Bakhtin (2003), cada esfera da atividade humana produz tipos específicos de enunciados, demonstrando que cada enunciado carrega consigo marcas da esfera de comunicação na qual está inserido. Dessa noção, decorre uma das suas teses primordiais, as esferas são numerosas, com o fito de que não é preciso criar um novo enunciado a cada nova situação de comunicação, já que cada “esfera de utilização da língua elabora os seus tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2003, p. 262), que são denominados gêneros do discurso. Por conseguinte, a esfera na qual o gênero está inserido deve ser ponto de partida para o estudo de determinado gênero, implicando as condições de produção, de circulação e de recepção do gênero (BRAIT, 2001).

Bakhtin (2003, p. 284) argumenta que “o querer-dizer do locutor se realiza acima de tudo na escolha de um gênero discursivo”, isto é, no momento de produzir o enunciado, o indivíduo, a partir da determinação da finalidade temática que propõe comunicar, adapta-a ao

gênero discursivo escolhido, sem renunciar à sua individualidade e subjetividade. Então, em um processo quase que concomitante à determinação da finalidade da escrita, surge a escolha do gênero discursivo, que, por sua vez, se dá em função do interlocutor e do meio de circulação. Logo, a fim de explicitar resultados de pesquisa ou discussões teórico-científicas, muitos autores recorrem aos periódicos científicos, tendo em vista a comunidade científica a que pertencem, os leitores, a circulação do material, dentre outros fatores.

Bakhtin aborda o gênero como um modo de organização do acontecimento enunciativo, não o definindo somente pela estrutura interna do texto. Cada situação exige um gênero discursivo que se configurará a partir de aspectos formais e sociais, dependendo do momento. Assim:

[...] a atualização de um gênero, como acreditam alguns, é de fato social, porque é fruto de demandas e de contratos sociais; essa atualização é também resultado de ação individual, porque é fruto de representações do sujeito, de modelos mentais; dessa atualização, por fim, emerge o texto, realidade material do gênero (LOPES, 2004, p. 2).

O uso do termo “atualização” ocorre, pois consideram-se os gêneros como formas de atualização das práticas discursivas, ou seja, são “contratos” sociais de interação. Toda a situação comunicativa, considerando seus objetivos e interlocutores, será atualizada em um gênero discursivo, que se configura não só a partir de uma estrutura marcada, mas também dos objetivos que o indivíduo apresenta ao utilizá-lo, da situação em que será efetivado e da realidade de mundo que o sujeito possui.

Os gêneros (enquanto enunciados concretos) constituem-se em manifestações das relações entre o sujeito, a língua e o mundo. O querer-dizer dos sujeitos se realiza na forma de gêneros variados. Os gêneros, portanto, não são criados, mas renovados pelos sujeitos, emprestando-lhes novas nuances para que possam ser compreendidos pelos outros. Isso ocorre no processo de escrita e de publicação dos artigos científicos em periódicos, pois o sujeito pesquisador toma o gênero para si e, conforme sua área de conhecimento, sua esfera enunciativa, seus interlocutores, ele fará uso de nuances que trarão a individualidade, a singularidade para seu texto, configurando-se como sujeito do seu dizer.

Nos estudos de Bakhtin, os gêneros já consolidados são determinados pelas especificidades de cada uma das esferas em que estão inseridos,

[...] não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três

elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação (BAKHTIN, 2003, p. 261-262).

Dessa forma, o autor define três elementos que configuram o gênero: o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional. De acordo com Sobral (2009), a escolha do gênero para a explicitação de ideias é realizada nas situações de produção, de maneira que isso se reflete em seus recursos, como estilo, forma de composição e tema.

O tema ou conteúdo temático entendido como o tópico discursivo não deve ser confundido com assunto (SOBRAL, 2009), pois é possível abarcar vários assuntos dentro de um só tema. Para Rodrigues (2005), o conteúdo temático está ligado à esfera da qual faz parte. Por exemplo, uma esfera acadêmica apresentará, como tema, assuntos relacionados a esse contexto, fazendo parte da lista temática assuntos diferenciados relacionados ao tema central academia.

Além do tema, há o estilo. Ao considerar que o enunciado possui um acabamento específico e não concluído, ele pode despertar em seu interlocutor uma atitude responsiva, isto é, a possibilidade de responder ao enunciado, atribuindo ao seu discurso seu próprio estilo. Conforme Brait (2012), o estilo reflete o juízo de valor que o sujeito possui sobre o tema, levando-se em conta as suas experiências anteriores e aquilo que os outros sujeitos poderão dizer sobre esse tema. Nesse sentido, o estilo do locutor está vinculado diretamente ao nível de formalidade da língua, dependendo do que se deseja enunciar. Bakhtin (2003) postula que a impossibilidade da impressão do estilo pessoal ofusca a visão de seu enunciador.

O estilo é constituído a partir da interação entre autor, interlocutor e o objeto do enunciado e se vale do trabalho do autor sem, no entanto, desconsiderar as coerções provenientes do gênero e de sua esfera (BRAIT, 2002). Rodrigues (2005, p. 168) afirma que “Todo enunciado, por ser individual, pode absorver um estilo particular”. A presença do estilo é proporcional ao nível de formalidade: quanto mais formal, menos o estilo pessoal do enunciador tem a chance de transparecer.

Na esfera acadêmica, o estilo dos gêneros varia conforme a relevância que tem o objeto da enunciação para aquele determinado momento no contexto social acadêmico. Um artigo científico é constituído por uma linguagem mais especializada nos padrões da norma culta, apresentando impessoalidade no discurso ou, muitas vezes, falta de adjetivação, tendo em vista vários discursos, principalmente dos manuais, que postulam que a escrita científica se configura assim. Um exemplo dessa realidade consta no Capítulo 4 deste estudo que buscou elencar as normas de submissão destinadas aos autores. Ao observar, a título de

exemplificação, a área de Humanas, há o seguinte discurso quanto à escrita do “resumo”: “uso de parágrafo único, voz ativa na terceira pessoa do singular, frases concisas e afirmativas”. Tais elementos levam ao “apagamento” do estilo individual em prol da impessoalidade acadêmica.

De forma geral, o estilo pode ser entendido como o elemento que melhor explicita seu enunciador e está fundamentalmente conectado ao tema, pois o estilo é indissociável das unidades temáticas. Sua materialização se dá claramente pelas escolhas linguísticas que são feitas pelo enunciador com vistas ao seu interlocutor e ao tema em pauta.

Tema, estilo e construção composicional são elementos que estão correlacionados, sendo este último o único fator que pode ser visto como mais fixo, pois tema e estilo são decorrentes de elementos vinculados à enunciação, enquanto a composição recupera traços textuais semelhantes dentro de um conjunto de textos do mesmo gênero. Diante de um número de artigos científicos, é possível depreender que o estilo está diretamente relacionado ao tema e ao interlocutor, o que resulta em uma materialização textual com poucas possibilidades de se repetir. Essa característica também está para o tema, pois esse elemento está conectado às condições sócio-históricas bem como a relação do texto com a esfera em que ocorre. A composição do gênero, no entanto, distancia-se, em certo grau, dessa flexibilidade, pois depende de traços em sua estrutura organizacional que permitem o reconhecimento do seu gênero.

Sobral (2009) apresenta a construção composicional não como um esqueleto em que se montará o sentido pretendido pelo projeto enunciativo. O autor explica que essa composição, assim como o tema e o estilo, é flexível e sensível ao projeto enunciativo. Se o objetivo do enunciado se altera, o gênero também pode refletir essa alteração, graças à sua condição flexível. Rodrigues (2005) lembra que a diversidade e a heterogeneidade da composição do gênero é proporcional à própria riqueza de esferas da atividade humana.

Outros elementos aliam-se aos fatores constituintes do gêneros, pois é preciso que se considere, por exemplo, o meio de circulação/lugar de circulação em que o gênero produzido circulará na sociedade, isto é, por quais meios ele chegará ao seu interlocutor. Assim, há de se considerar, por exemplo, a) o portador e o suporte do texto no qual o gênero circula (papel, livro, embalagem, suporte metálico, de madeira, revista, jornal, e-mail etc.); b) a forma como chegará ao interlocutor do enunciado, isto é, como o texto irá às mãos de seu leitor-alvo.

Ao considerar que os gêneros circulam em esferas específicas de conhecimento, tem-se, no âmbito da produção e da circulação da ciência, os artigos científicos dentro de suas

respectivas áreas de conhecimento, ou seja, comunidades de conhecimento. Por isso, abordo, na sequência, de que forma este estudo concebe os pressupostos a respeito da ciência, da comunidade e da comunicação científica, tendo em vista que a escrita científica é uma forma de disseminação da ciência, daquilo que se vem produzindo e que se deseja publicar, a fim de que os membros da comunidade tenham conhecimento, leiam, compartilhem, constituindo o pesquisador como um membro efetivo do grupo.