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2.2 CONCEPÇÕES BAKHTINIANAS: RELAÇÕES DIALÓGICAS, VOZES, PRESUMIDOS E GÊNEROS

2.2.2 As vozes bakhtinianas

De acordo com Sanches (2009a), no dialogismo, ainda que o autor insira em seu enunciado as vozes de outros sujeitos, tomando-as como suas, é possível identificar nuances que perpassam tais palavras, uma vez que sempre que se utiliza uma palavra, ela é revestida com a compreensão, com a avaliação do outro, tornando-se bivocal. Ponzio (2012) argumenta que sempre que os sujeitos falam é por meio da palavra do outro, utilizando-se da imitação, da citação ou de outras formas de transposição, que demarcam níveis diversos de distanciamento da palavra alheia, como uso de aspas, de comentários, a crítica etc.

O fato de uma palavra já ter sido utilizada anteriormente, não se constituindo como original, não significa que o produtor apenas a copia, pois o trabalho de criação e de compreensão consistem em lidar com vozes, fazendo que o sujeito inscreva a sua própria voz (AMORIM, 2004). Nesse sentido, as palavras, na alternância dos sujeitos do discurso, primeiro são pertencentes a outras pessoas; depois, tais “palavras alheias” são “reelaboradas dialogicamente em ‘minhas-alheias palavras’ com o auxílio de outras ‘palavras-alheias’ (não ouvidas anteriormente) e em seguida [nas] minhas palavras (por assim dizer, com a perda das aspas), já de índole criadora” (BAKHTIN, 2003, p. 402).

Há o cruzamento das vozes, já que o locutor assimila, organiza e modifica as palavras dos outros, fazendo que nunca a palavra seja concebida como unidirecional. O texto científico é compreendido, muitas vezes, como apenas monológico14, tendo em vista, por

exemplo, normas estabelecidas pela ABNT, dentre outros manuais, que preconizam uma escrita neutra, desprovida de subjetividade, considerando que apenas o fato de se produzir o texto em terceira pessoa já se configura como uma forma de afastamento do pesquisador dos fatos que expressa. Na realidade, outros elementos podem caracterizar o discurso como heterogêneo e dialógico, como a escolha dos autores para citação, a escolha da temática, dentre outros fatores, que levam o discurso científico a estar ancorado também no dialogismo, porque é constituído em função de sua relação com outros, apesar de não haver, na maioria das vezes, centros discursivos diversos. Tal postura possibilita dizer que o dialogismo

14 A discussão a respeito do caráter monológico e dialógico do discurso científico, assim como do aspecto

constitui o texto, em maior ou menor grau, demonstrando que a presença do outro sempre se faz presente (AMORIM, 2004).

O diálogo entre a palavra própria e alheia ocorre de maneira direta no momento em que a palavra própria tem o objetivo explícito de reproduzir a palavra alheia, por meio do uso do discurso direto, indireto ou indireto livre (PONZIO, 2012). Rodrigues (2005) ilustra tal fato com aquilo que chama de movimento dialógico de assimilação. Por exemplo, no gênero artigo científico, ocorre quando o pesquisador-autor toma para si a voz do outro, explicitando- a por meio do discurso direto.

Para Faraco (2009), as vozes alheias estão presentes na memória discursiva como palavras do outro, sendo bivocalizadas nos enunciados dos sujeitos, ou seja, os enunciados apresentam, a um só tempo, a palavra do outro e a perspectiva com a qual ele foi tomado. Assim, as palavras do outro podem ser citadas direta ou indiretamente, podem seu ironizadas, questionadas, hibridizadas etc.

Essas vozes sociais são definidas, conforme Faraco (2009), como heteroglossia/plurilinguismo, termo que, muitas vezes, é concebido como sinônimo de polifonia, quando, na verdade, não o é. Faraco (2009) busca, assim, diferir os termos, expondo que a heteroglossia designa a “realidade heterogênea da linguagem quando vista pelo ângulo da multiplicidade de línguas sociais” (FARACO, 2009, p. 77). Já “Polifonia não é, para Bakhtin, um universo de muitas vozes, mas um universo em que todas as vozes são equipolentes” (FARACO, 2009, p. 77-78, grifo do autor).

Em razão dessas distinções, assim como Ohuschi (2013, p. 51), não adoto a noção de polifonia ao tratar das vozes bakhtinianas, mas sim a noção de “heteroglossia dialogizada”, na qual as vozes sociais se entrecruzam nas fronteiras do enunciado concreto. Dessa forma, demarco, na sequência, como as relações dialógicas e essas vozes se manifestam em textos escritos, a partir das pesquisas de Sanches (2009a,b) e de Rodrigues (2005). Embora sejam posturas que se mostrem arraigadas ao estudo do texto, muitas vezes, aos seus aspectos linguísticos, é possível afirmar que podem funcionar como ponto de partida para este estudo que busca ir além de tais postulados, considerando, além disso, o aspecto contextual, discursivo e as questões que envolvem o letramento acadêmico.

Em sua dissertação, Sanches (2009) buscou analisar as relações dialógicas existentes em artigos científicos das áreas de saúde e de segurança do trabalho, realizando a sistematização de seis tipos de relações, a saber: 1) marca de novidade; 2) confirmação e concordância; 3) diálogo com o conhecimento científico consensual; 4) referenciação

bibliográfica com apagamento dos limites discursivos; 5) enunciados “colcha de retalhos”; 6) discordância em relação a enunciados alheios.

Quanto à marca de novidade, a autora constatou que o estabelecimento do diálogo com enunciados anteriores é algo que traz avanços à área do saber, pois complementa estudos anteriores ao trazer novos dados. Ao analisar a introdução dos artigos, observou-se que a marca de negação é um recurso amplamente utilizado para construir a noção de nova contribuição à área do saber, como em “O presente trabalho foi motivado pelo fato de não

haver estatísticas semelhantes em nosso meio” ou “poucos têm sido os estudos...”

(SANCHES, 2009a, p. 130, grifos do autor). Ao afirmar que não há estatísticas semelhantes, os autores estabelecem diálogo com enunciados produzidos anteriormente em sua esfera, respondendo a esses enunciados.

Além disso, outra marca de novidade é a própria justificativa do estudo, como ocorre em “Não há estatísticas, e certamente não existe nenhum trabalho/tese sobre o assunto” (SANCHES, 2009a, p. 133). Desse modo, marca-se o diálogo com enunciado anterior, a partir do momento em que se constata a “falta de investigação” sobre o assunto. Segundo a autora (2009a), essa relação dialógica geralmente ocorre na “Introdução” dos artigos, respondendo às normas da ABNT.

Quanto à confirmação e concordância, sua recorrência é maior nos “Resultados”, “Discussão” e “Comentários”, conforme o seguinte exemplo: “Concordando com outras

estatísticas” (SANCHES, 2009a, p. 132, grifos do autor). Essa postura do autor em relação

aos estudos anteriores mostra a convergência de seus resultados com aquilo que foi estudado. Quanto às marcas linguísticas, essa relação dialógica se caracteriza pelo uso de verbos que expressem concordância e confirmação (concordar, confirmar, chegar à conclusão), assim como expressões adverbiais que dão ideia de continuidade de algo que já ocorria e continua a ocorrer (mais uma vez, não é novidade, também etc.).

Na sequência, tem-se o diálogo com o conhecimento consensual, o qual postula que as informações são colocadas nos artigos como um conhecimento consensual na comunidade científica, como uma verdade comumente aceita (SANCHES, 2009a). A autora cita como exemplo: “No Brasil, o número de aparelhos celulares ultrapassa o de telefones fixos. Este mercado altamente competitivo...” (SANCHES, 2009a, p. 148, grifos do autor). Nesse caso, há a ausência de referências bibliográficas, sendo as informações técnicas colocadas como certezas. O uso de advérbios também pode marcar um consenso latente dentro da esfera, como em “Sendo o trabalho em subsolo sabidamente perigoso” (SANCHES, 2009a, p. 148, grifos do autor).

Na referenciação bibliográfica com apagamento dos limites discursivos, há o uso da referência entre parênteses sem que seja caracterizada como discurso citado, como em “Embora a atenção a trabalhadores expostos ao chumbo venha sendo dada no Brasil, há muitos anos (11, 14)...” (SANCHES, 2009a, p. 155, grifos do autor). Não há, assim, uso de discurso direto, indireto, não sendo possível identificar a palavra dos outros autores. Segundo a autora, pode haver o apagamento discursivo em trechos que evidenciem o autor, no entanto, em razão das palavras estarem reportadas, não se sabe bem os limites da palavra do escritor e do autor consultado.

Quanto aos enunciados “colcha de retalhos”, as relações dialógicas são construídas pela “costura” dos discursos de diferentes sujeitos por meio dos quais os autores expressarão suas opiniões. Esse diálogo contextualiza o assunto ao mesmo tempo em que expressa concordância, sempre atrelado à ocorrência de referências bibliográficas entre parênteses.

A categoria de discordância em relação a enunciados alheios é a menos observada nos artigos e caracteriza-se pela discordância do autor em relação a enunciados anteriores ao seu, mostrando que há outras possibilidades de estudo, ou pelo uso da ironia.

Diante da análise de Sanches (2009a), que se mostra bastante arraigada ao texto, o enfoque é evidente nos elos anteriores (enunciados já ditos) que podem ser colocados em diálogo com os enquadramentos levantados por Rodrigues (2005) de movimento dialógico de assimilação de vozes e de movimento dialógico de distanciamento de vozes.

No texto acadêmico-científico é comum o uso da voz de outro pesquisador, tendo em vista a credibilidade que um discurso anterior dá à fala do autor, abarcando outras opiniões, verdades. Essa prática pode ser realizada a partir do discurso direto (citado), ocasionando aquilo que Rodrigues (2005) nominou de movimento dialógico de assimilação, ou seja, momento em que o escritor, pertencente a um campo de atuação, agrega vozes de outros sujeitos ao seu discurso. A fim de realizar o diálogo do discurso do autor com outros já ditos, existem alguns traços estilístico-composicionais que auxiliam nesse processo, como a opção por alguns verbos e por expressões avaliativas, que podem ocorrer sobre o “enunciado ou seu autor, valorando, de forma positiva, o seu enunciado” (RODRIGUES, 2005, p. 176).

Se no movimento de assimilação o objetivo é incorporar novos discursos à fala do autor, no movimento dialógico de distanciamento (que pode dialogar com a categoria de discordância do enunciado anterior), busca-se apagá-los, sendo utilizados para isso artigos definidos, pronomes indefinidos, a negação, as aspas etc.

Ademais, quanto aos elos posteriores, que refletem discursos que estão por vir, Rodrigues (2005) sugere enquadramentos. O primeiro deles é o engajamento que propõe a construção de um discurso que leve o leitor a assimilar a posição do autor, por meio da utilização de recursos estilístico-composicionais. São empregados, então, as perguntas retóricas, que podem atuar como prováveis questões do leitor, o pronome indefinido de afirmação plena (todos), os pronomes e verbos em primeira pessoa, pois são formas de inserção do sujeito no discurso.

O segundo tipo de enquadramento é a refutação que leva o autor a incorporar o discurso do outro a fim de refutá-lo, sendo assim, “o autor silencia a contrapalavra de seu interlocutor” (OHUSCHI, 2013, p. 54).

Por fim, destaca-se a interpelação, terceiro tipo de enquadramento. Nela, por meio da interlocução direta, expressa pelo uso de verbos no imperativo, pronomes (você, seu, sua) e modalizadores, procura-se fazer com que o leitor concorde com a opinião do autor, tida como verdade única.

Após apresentar tais postulados, destaco, por meio do quadro-síntese a seguir, as categorizações referentes às questões dialógicas, a partir de Sanches (2009a) e de Rodrigues (2005):

Quadro 1 - Categorizações das relações dialógicas

CLASSIFICAÇÃO ELEMENTOS QUE A COMPÕEM

1. Relação dialógica com elos anteriores

Inter-relação do discurso do autor com enunciados já ditos

Marca de novidade

Complementa estudos anteriores ao trazer novos dados. A marca de negação é um recurso amplamente utilizado para construir a noção de nova contribuição à área do saber, assim como a própria justificativa do estudo.

Confirmação e concordância

Convergência dos resultados obtidos com aquilo que foi estudado. Quanto às marcas linguísticas, essa relação dialógica se caracteriza pelo uso de verbos que expressem concordância e confirmação (concordar, confirmar, chegar à conclusão) e por expressões adverbiais que dão ideia de continuidade de algo que já ocorria e continua a ocorrer (mais uma vez, não é novidade, também etc.).

Diálogo com o conhecimento científico consensual (assimilação)

Informações são colocadas como um conhecimento consensual na comunidade científica. As vozes são incorporadas para dar credibilidade. Utiliza voz do senso comum, de entidades etc., além de verbos ou grupos proposicionais do discurso citado (sobretudo o discurso direto), com emprego de valor apreciativo (vozes usadas positivamente), que trazem verdades, fatos, opiniões. Os advérbios também podem marcar um consenso latente dentro da esfera.

Referenciação bibliográfica com apagamento dos

limites discursivos (distanciamento)

Apagamento ou reacentuação das outras vozes. Apresenta artigos definidos, pronomes indefinidos, pronomes demonstrativos, expressões avaliativas, aspas, negação, ironia, operadores argumentativos, discurso indireto.

Enunciados “colcha de

opiniões. Discordância em relação a

enunciados alheios

O autor discorda de enunciados anteriores ao seu, mostrando que há outras possibilidades de estudo ou fazendo uso da ironia.

Fonte: A autora.

As relações dialógicas podem se efetivar por meio da interação com vozes alheias, enunciados já ditos anteriormente, ou com vozes que virão posteriormente. Neste trabalho, que trata também das relações discursivas presentes nos discursos científicos dos artigos das diferentes áreas, opto por essa categorização apresentada por Sanches (2009a) e por Rodrigues (2005), no que se refere à análise dos artigos escritos, tendo em vista que alguns dos elementos citados se encontram nos artigos que serão analisados nesta tese, havendo, ainda, a expansão de tais elementos, de acordo com as teorias que sustentam o estudo. Cabe também ressaltar os diálogos que são tecidos além da materialidade linguística presentes nos artigos, perpassando o contexto extraverbal, aquilo que está presumido no estudo dos gêneros, como contexto, interlocutores variados etc. e que serão estudados mais à frente.

Diante do exposto, amplia-se a visão de estudo do gênero com o diálogo instaurado entre a ideia bakhtiniana e os postulados do letramento. Para Terzi (2006), o letramento faz que as práticas de escrita tenham uma dimensão social – em decorrência dos fatores e convenções sociais que as regulam em determinada comunidade, ou dada esfera da atividade humana – e uma dimensão individual, por conta da história e das experiências de vida de cada indivíduo que pertence à comunidade. Assim, o discurso científico orienta-se não mais para os aspectos ditos homogeneizantes de produção do conhecimento, mas para os aspectos heterogêneos que o regulam: “a escrita acadêmica, segundo essa concepção, caracteriza-se por movimentos em concorrência, pela pluralidade de vozes e subjetividades” (WILSON, 2009, p. 100 apud OLIVEIRA, 2010, p. 100).

Após essa reflexão, discutem-se, na seção seguinte, os aspectos homogêneos e heterogêneos dos gêneros, sendo que este último traz, em seu bojo, as ideias de presumido e de relações dialógicas que já foram destacadas.