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2.3 CIÊNCIA, COMUNIDADE E COMUNICAÇÃO CIENTÍFICAS

2.3.2 Comunidade e comunicação científicas

Amaldiçoado pelos deuses, Sísifo foi condenado a carregar uma grande pedra até o topo de uma montanha, para deixá-la rolar ladeira abaixo e em seguida recomeçar tudo outra vez. A lenda de Sísifo é uma metáfora apropriada para a história da ciência moderna no Brasil, onde os sucessos têm sido poucos e efêmeros, mas a persistência e o entusiasmo nunca faltaram (SCHWARTZMAN, 2001, p. 12).

Toda comunicação científica é indispensável à atividade científica, uma vez que possibilita unir esforços dos membros de suas comunidades, sendo relevante para qualquer tipo de pesquisador.

A fim de realizar pesquisa, as pessoas se reúnem em torno de objetivos comuns, possibilitando que a comunicação obedeça às práticas estabelecidas pela comunidade científica, “termo que designa tanto a totalidade dos indivíduos que se dedicam à pesquisa científica e tecnológica como grupos específicos de cientistas, segmentados em função das especialidades, e até mesmo de línguas, nações e ideologias políticas” (TARGINO, 2000, p. 10).

Para entender justamente como se constituem os discursos escritos nas diferentes áreas de conhecimento, é preciso conceituar comunidade acadêmica/científica, que pode ser concebida pensando-se na noção do “interlocutor terceiro” (BAHKTIN, 2003), pois esse pode se referir ao modelo de comunidade a que o enunciador pertence, exercendo influências na forma de produção dos enunciados. Para Motta-Roth (2002), o conhecimento da cultura acadêmica, envolvendo gêneros discursivos, crenças, valores das disciplinas, convenções de linguagem usadas pelos membros de um grupo, é fator fundamental para saber o que pode ou deve ser dito em um texto.

Para Schwartzman (2001, p. 13), a ciência se refere à comunidade de indivíduos “que empregam com entusiasmo o melhor da sua inteligência e criatividade. Os resultados

desse trabalho – artigos, dados científicos, aplicações tecnológicas – não passam da ponta de um iceberg que não se pode sustentar sem sua base oculta: os indivíduos que os produzem”. Essas considerações já apontam para o sentido de que a produção escrita da ciência, representada aqui pelo artigo científico, dá-se por meio de diversos fatores, especialmente pelos indivíduos que produzem e constituem suas comunidades científicas.

A lenda de Sísifo abre esta seção, porque é uma metáfora apropriada para a história da ciência moderna no Brasil. O país vive um momento de busca de espaço e de internacionalização de suas pesquisas. Contudo a qualidade dessa produção – mensurada pelo número de citações que um artigo gera após ser publicado – continua abaixo da média mundial. A fim de alavancar os números, a Capes articula fortemente a avaliação (nota, financiamento de pesquisas, bolsas etc.) dos Programas de Pós-Graduação, por exemplo, à questão da produtividade dos professores-doutores.

Essa realidade instaura a noção de produtivismo acadêmico que desperta discussões, como as realizadas no Seminário Ciência e Tecnologia no Século XXI, promovido pelo Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior - ANDES-SN (2011), em Brasília. Em uma das mesas redondas do evento, intitulada Trabalho docente na produção do conhecimento, Ciavatta afirmou: “antes, éramos pagos para pensar, agora, somos pagos para produzir”, evidenciando a busca desenfreada pela produção no contexto acadêmico atual.

Alves (2010) postula que um dos dilemas enfrentado no contexto brasileiro é a formação de pesquisadores. Embora a pesquisa nas áreas da medicina, da biologia, da química, da física etc. tenha surgido nos vários institutos afins muito antes da criação da pós- graduação (SCHWARTZMANN, 2001), a formação da comunidade científica ocorreu, em muitos casos, nas universidades estrangeiras ou com pesquisadores contratados no exterior para trabalhar nas instituições brasileiras. Com a oficialização da pós-graduação, ocorrida em meados da década de 1960, a formação de pesquisadores adquire amparo legal. O Parecer 977/6518 explicita que uma das principais funções dos cursos pós-graduados é “estimular o

desenvolvimento da pesquisa científica por meio da preparação adequada de pesquisadores” (p. 165).

Aliada às noções de produtivismo, de formação de pesquisadores, está a comunicação científica sempre muito reconhecida por sua importância pelos cientistas. Ainda que seja uma obra de 1974, o livro Communication in Science, com tradução em 1999, A

18 Disponível em: < http://www.CAPES.gov.br/images/stories/download/legislacao/Parecer_CESU_977_1965.pdf>. Acesso em: 20 jul.

comunicação científica, de Meadows, continua a ser indispensável. Nessa obra, o autor postula que a comunicação científica se situa no próprio coração da ciência, ela é tão importante quanto a própria pesquisa, porque, enquanto a comunicação não for analisada e aceita pelos membros da comunidade, é como se não existisse.

A formalização da comunicação científica resulta da necessidade de compartilhamento dos resultados das pesquisas entre o crescente número de cientistas, “porquanto a ciência passa de atividade privada para uma atividade marcadamente social” (TARGINO, 2000, p. 18), pois soma esforços individuais dos membros da comunidade (CRESPO; CAREGNATO, 2004).

Para Oliveira (2006, p. 19), a comunicação científica “proporciona a cooperação e integração entre os pesquisadores, contribui para o reconhecimento das descobertas, confirma competências e estabelece credibilidade e aceitação do pesquisador na comunidade científica”. A comunicação entre os cientistas e o seu público sempre existiu e pode ser realizada formal ou informalmente na sociedade. A comunicação informal é aquela, por definição, efêmera (MEADOWS, 1999), como é o caso de comunicações em congressos e conferências, discursos, conversas etc. A comunicação formal tem uma existência mais duradoura e está concentrada na literatura: livros, periódicos, relatórios etc. No âmbito deste trabalho, trato da comunicação científica formal: o periódico e seu artigo científico, selecionados por se configurarem como principais veículos da comunicação (COSTA, 2007).

Diante do exposto, Stumpf (1996) afirma que as revistas científicas surgiram como uma evolução do sistema particular e privado de comunicação, que era feito por meio de cartas entre os investigadores e das atas ou memórias das reuniões científicas. Havia o uso de cartas entre os cientistas como forma de transmissão das ideias. Por serem muito pessoais, lentas para a divulgação de novas ideias e limitadas a um pequeno círculo de pessoas, elas não se constituíram no método ideal para a comunicação do fato científico e das teorias. Aqueles que utilizavam as cartas e as atas para divulgação pertenciam aos “colégios invisíveis” (invisible college). Esses grupos recebiam tal denominação para se diferenciarem dos colégios universitários oficiais (oficial university college) que serviram de base para a criação das sociedades e academias científicas. Aconteciam encontros entre seus membros, muitos deles secretos, nos quais realizavam experimentos de pesquisa, avaliavam os resultados e discutiam sobre temas filosóficos e científicos. Os relatos e as conclusões desses encontros eram, muitas vezes, registrados e as cópias, distribuídas como cartas ou atas a amigos que estavam desenvolvendo pesquisas análogas. Quando o número de participantes dos colégios se tornava

muito grande, os membros se dispersavam ou se transformavam em organizações mais estruturadas e visíveis, como as academias e as sociedades científicas.

As formas de divulgação mencionadas – cartas e atas – apenas influenciaram o surgimento das revistas que, com o tempo, assumiram o papel de principais divulgadores das investigações (STUMPF, 1996). As revistas não aboliram a existência desses dois veículos, mas sim possibilitaram uma definição de papel entre os canais de divulgação: a correspondência tomou apenas um caráter de comunicação pessoal entre os cientistas, e as atas, também conhecidas como memórias ou anais, passaram a se constituir em um documento de registro dos trabalhos apresentados em reuniões científicas e profissionais.

Assim, em termos gerais, de acordo com os estudos de Jacobina (1999/2000), pautado em Kuhn (1990), a estrutura da comunicação é definida por meio de um truísmo:

 a estrutura comunitária da ciência é “aquela formada pelos praticantes de uma

especialidade científica”, pois, ao longo dos anos, a comunidade científica desenvolveu

seus próprios mecanismos de defesa contra o insumo de informações em excesso, privilegiando a especialização dos pesquisadores dentro de suas áreas de interesse. Este fato é evidente também em títulos de periódicos que se apresentam concisos e objetivos, destinando-se às suas áreas de interesse (MEADOWS, 1999);

 unidade produtora e legitimadora do conhecimento científico, haja vista a especialidade dos pesquisadores que constituem a comunidade científica, considerada local de produção e de legitimação do conhecimento, já que é responsável por julgar se uma contribuição é importante (MEADOWS, 1999, p. 82);

 quanto aos seus integrantes, estão submetidos à educação e à iniciação profissional similares; absorvem praticamente a mesma literatura técnica;

 a comunicação entre os membros de uma comunidade científica é ampla e os julgamentos profissionais, relativamente unânimes, uma vez que constituem a única audiência e os únicos juízes do trabalho dessa comunidade;

 a comunicação entre diferentes comunidades é árdua, quando não impossível, devido às particularidades de cada área.

Compreender a comunidade acadêmica é fundamental para tratar da escrita em periódicos de diferentes áreas de conhecimento. Por meio da análise dos artigos será possível visualizar o que se tem entendido de letramento no contexto acadêmico, pois as revistas sistematizam e padronizam a escrita no âmbito das áreas de conhecimento. Dessa forma, “a linguagem funciona diferentemente para diferentes grupos, na medida em que diferentes

materiais ideológicos, configurados discursivamente, participam do julgamento de uma dada situação” (BRAIT, 2001, p. 80).

Tendo em vista que a linguagem funciona diferentemente dentro dos grupos ou, aqui, comunidades científicas, cabe ressaltar que o indivíduo dispõe de formas idênticas às de qualquer outro membro da comunidade (FAITA, 2005). Há, assim, aquilo que é mais normativo nos enunciados e a individualidade, resultante do projeto discursivo do sujeito, o que permite constatar que forma e conteúdo caminham juntos na constituição da escrita acadêmica, reafirmando os ideais de Bakhtin (2003, p. 153): “a não-separação entre forma e conteúdo, predomínio do coletivo, do social sobre o individual e o subjetivo”.

Para Ziman (1984 apud TARGINO, 2000), comunidades científicas não são formalmente organizadas, necessitando de regras escritas, regulamentos e normas que levem a seu funcionamento. Elas apresentam, hoje, uma divisão de trabalho bem mais complexa, com atribuição de tarefas delimitada, centralização de autoridade mais visível, gerenciamento do processo de execução da pesquisa e monitoramento de informações.

Le Coadic (1996), ao tratar do funcionamento da comunidade científica, enfatiza a segmentação das comunidades em função de disciplinas, línguas, nações ou ainda ideologias políticas. Kuhn (1990) também trata da segmentação por disciplinas de que “uma comunidade científica é formada pelos participantes de uma especialidade científica [...] submetidos a uma iniciação profissional e a uma educação similares, numa extensão sem paralelos na maioria das outras disciplinas” (KUHN, 1990, p. 222). Assim, os participantes perseguem um objetivo comum, estabelecendo os limites de um objeto de estudo científico, partilhando de um mesmo paradigma.

Kuhn (1990) é responsável por abordar a noção de paradigma, compreendendo-o como “[...] aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma” (KUHN, 1990 p. 31). O estudo dos paradigmas é o que prepara basicamente o estudante para ser membro da comunidade científica na qual atuará, reunindo-se a estudiosos conhecedores das bases de seu campo de saber, cuja pesquisa está baseada em paradigmas compartilhados, comprometidos com as mesmas regras e padrões para a prática científica. Esse comprometimento e o consenso aparente que produz são pré-requisitos para a ciência normal, isto é, para a gênese e a continuação de uma tradição de pesquisa determinada.

Do exposto sobre comunidade científica, algo comum é que ela é um corpo social com integrantes que se reconhecem entre si e interagem em função de um objetivo comum: a busca pela extensão da fronteira do conhecimento. Não há uma estrutura que organize essa

sociedade, porém há a preocupação dos cientistas em como agir como membros de uma comunidade.

Assim como qualquer grupo social mantém regras implícitas ou explícitas de atuação, isto é, uma ética reguladora mais ou menos rígida, a comunidade científica, como estrutura social, não pode abstrair de valores éticos e morais. A comunicação científica, como parte integrante dessa estrutura, também está sujeita à interferência de prescrições que direcionam as atitudes comportamentais dos pesquisadores e, portanto, influenciam a produção científica.

3 METODOLOGIA

A metodologia que orienta a pesquisa está fundamentada pelas seguintes abordagens teóricas: a abordagem sociocultural do letramento (STREET, 1984; LEA; STREET, 1998, 2006; LILLIS, 1999, entre outros), a teoria dos gêneros discursivos e a abordagem de análise da língua, tratados por Bakhtin (2003) e Bakhtin/Volochinov (1992), tendo em vista o fato de tais abordagens considerarem o social e suas práticas de letramento como elementos constituintes dos enunciados produzidos cientificamente.

Primeiramente, são destacados os elementos referentes à caracterização da pesquisa, a fim de delinear sua abordagem metodológica. Na sequência, são descritos a seleção do material de estudo e os critérios utilizados na escolha. Por fim, a constituição do corpus é abordada, destacando-se também a forma de tratamento dos dados por meio da perspectiva dialógica.