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2 A RELAÇÃO UNO-MÚLTIPLO: GÊNESE HISTÓRICA DA

2.3 A uno-multiplicidade do ser em Aristóteles

2.3.2 A Teoria da substância de Aristóteles

Aristóteles, então, substitui a Teoria das Formas por sua Teoria das substâncias, dos acidentes e dos princípios da matéria e da forma80. A necessidade desta substituição só

pode ser plenamente compreendida se se tiver em mente o conceito aristotélico de substância. Diante disto, é preciso considerar que, para o Fundador do Liceu, a substância é uma das maneiras de dizer o ser, mais especificamente, é a principal forma de o dizer. Ela é a primeira

das categorias e, como está bem expresso na Metafísca, é o primeiro dos significados do ser81.

Por ser a primeira das categorias, segundo Puente, a substância é aquela que dá

suporte e sustentação as demais82. No livro Δ da Metafísica, Aristóteles reitera que substância

se diz: 1) como corpos simples, compostos e o que existe a partir deles, uma vez que não são predicados de um substrato ao mesmo tempo em que tudo se predica deles; 2) como o que é inerente às coisas que não se predicam de um substrato e que é causa de seu ser; 3) como as partes imanentes das coisas, que as delimitam exprimindo algo determinado cuja eliminação significa a eliminação da coisa mesma e; 4) a essência cuja noção define a coisa. Após enumerar os quatro sentidos de substância, o Estagirita resume-os em dois significados: 1) o substrato último, que não é predicado de outra coisa e; 2) aquilo que sendo determinado pode ser

separável, como a estrutura e a forma de cada coisa83.

No livro Ζ da Metafísica, é dito que a sustância pode ter significado de: essência,

universal, gênero e substrato84. Vejamos o que significa cada um destes termos. Essência

significa aquilo que cada coisa é por si mesma. Ela é unidade objetiva de significação, de modo

79 PAVIANI, Op. cit, 2001, p. 199 e 202. 80 PAVIANI, Op. cit, 2001, p. 201.

81 Cf. ARISTÓTELES, 2013b, Ζ1, 1028a15

82 PUENTE, Fernando Rey. Os sentidos do tempo em Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2001. p. 31. 83 ARISTÓTELES, Metafísica, Δ8, 1017b10-26.

que a essência de cada coisa possui um só significado85. O que nos leva à conclusão de que a

substância de cada coisa, como essência de cada coisa, é una para cada ser. Contudo, temos aqui um problema na doutrina de Aristóteles: se é afirmado que a substância, na qualidade de essência, é única para cada ser singular, como ela pode ser universal?

O problema reside no fato de o universal ser o que há de comum em uma

multiplicidade de coisas86. Neste sentido, ao sustentar que a substância é um universal, é

importante estar ciente que o universal evocado por Aristóteles não é algo que está separado das coisas, pois se assim o fosse, ele seria forçado a admitir que as Formas platônicas eram substâncias em sentido pleno. Assim, ainda que a substância entendida como universal seja o que há de comum em uma multiplicidade de coisas, enquanto essência, ela é única para cada coisa. Uma vez entendido o que é a substância, ainda é preciso perceber o que Arsitóteles

entende por gênero87 e por substrato.

Ao tratar dos significados dos gêneros, Aristóteles informa o que ele entende por

substrato. É dito: “gênero significa ainda a matéria, de fato, aquilo de que existe diferença e

qualidade é, justamente, o substrato que nós denominamos matéria.”88Ademais, assim como a

substância, o substrato (Ὑποκείμενον) é aquilo do qual são predicadas todas as coisas, não

sendo, ele mesmo, predicado de nada. Desta forma, “o substrato primeiro é substância.”89 O

substrato primeiro como substância permite concluir que a sustância é matéria, o que leva a muitos embaraços. Para sair deste problema é necessário passar a analisar o que o Estagirita argumenta sobre a sustância nas Categorias, onde a substância é apresentada como aquilo que

não está em um sujeito e nem é dito de um sujeito, visto que é aquilo que o sujeito é90.

As substâncias são divididas entre primárias e secundarias, de modo que as primeiras dizem respeito ao particular e as secundárias, ao universal. As substâncias segundas

podem ser mais ou menos universais e, portanto, são divididas em gêneros e espécies91. A

divisão entre substâncias primárias e secundárias está associada ao problema da indeterminação

85 AUBENQUE, Pierre. O problema do ser em Aristóteles: ensaio sobre a problemática aristotélica. Tradução e

revisão técnica Cristina de Souza Agostini e Dioclézio Domingos Faustino. São Paulo: Paulus, 2012.p. 131.

86 Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, Z13, 1038b11.

87 Cf. Ibidem, Δ28, 1024a29-1024b5. O gênero também é dito em quatro significados: 1) geração contínua de seres

da mesma espécie, 2) os homens derivados de uma mesma estirpe, 3) superfície enquanto gênero das figuras planas e, 4) o constitutivo primeiro das definições contido na essência. Porém, aqui nos interessa tão somente a noção de gênero enquanto geração contínua dos seres de uma mesma espécie e enquanto constitutivo primeiro das definições contidas na essência.

88 Ibidem, Δ28, 1024b8-9. 89Ibidem, Z3, 1029a1-2

90ARISTÓTELES. Categorias. Tradução, introdução, notas e apêndice de Maria José Figueiredo. São Paulo:

Instituto Piaget, 2000. 5.12-13.

das coisas particulares, ou seja, das substâncias primárias. O problema é que o ser particular, enquanto particular, não pode ser dito, porque o que dele é nomeado é o contingente. Quando se fala do contingente não se alcança a substância, por isto, sempre que se fala do ser particular se está no âmbito da indeterminação. Diante destas classificações e da problemática da indeterminação do ser particular, deve-se estar atento ao fato de que o problema e discussão sobre a substância surgem a partir de um problema da linguagem.

Nesse sentido, a ontologia aristotélica nasce de uma reflexão sobre a linguagem,

uma vez que busca as significações do ser, que se mostram pela predicação, pelo discurso92.

Sobre isto, é dito: “As categorias supõem uma dupla cisão: cisão do ser enquanto ser conforme

a pluralidade de suas significações, cisão de tal ser concreto em um sujeito e um predicado que

não é o sujeito.”93 Na medida em que o discurso é composto por sujeito e predicados, a

substância é dividida em primárias e secundárias, de maneira que só as substâncias secundárias servem de predicado ao sujeito, pois dizem respeito ao que é universal, i. é, aos gêneros e espécies. Ora, a substância primeira não só não está em nenhum sujeito como não pode ser dita de nenhum sujeito; o que não acontece com as substâncias segundas, que mesmo não estando em um sujeito, podem ser ditas de um sujeito.

O sentido mesmo de substância só se faz presente na substância primeira, porque tudo o que dela for predicado, mesmo nos sujeitos particulares, engloba todo o ser a que se refere, seja ele gênero, seja espécie. Tudo o que é dito da substância primeira, de um sujeito, pertence a todo o sujeito, de modo a haver uma hierarquia relativa às substâncias. É perceptível, pelo que foi dito até aqui, que a substância primeira é mais substancial que as segundas. Agora, é preciso ter em conta que a substância segunda é dividida em gêneros e espécies, de modo que nesta divisão as espécies são mais substanciais que os gêneros, dado que os gêneros podem servir de predicados às espécies, mas o inverso não ocorre. Portanto, quanto mais próximo do ser particular, mais substancial é o ser.

O problema da substância envolve um problema da linguagem, que se ocupa tanto dos problemas de definição das coisas particulares, quanto dos problemas do ser propriamente dito. É fundamental, agora, discorrer sobre a substância enquanto ser. Ou seja, investigar o que Aristóteles entende por Ser, o que ele quer dizer quando fala do ser enquanto ser, a fim de perceber como os problemas relativos à unidade e multiplicidade, identidade e diferença se manifestam neste âmbito. Isto em razão de que o neoplatonismo se utilizará largamente desta

92 AUBENQUE, Op. cit., 2012, p. 346. 93 Ibidem, p. 383.

reflexão, já que é da perspectiva do ser enquanto ser que se tem fundamentos importantes para sua construção. Já aqui vale uma observação sobre a diferença entre a doutrina de Aristóteles e o neoplatonismo:

A diferença essencial entre Aristóteles e o neoplatonismo é que, para este, há um além da essência em relação a que o conhecimento das essências é naturalmente inadequado; para Aristóteles, não há senão essência, e, como consequência, todo discurso, que como discurso dialético se move nesse além, mesmo se ele pode apresentar justificações relativas, não é menos verbal e vazio.94