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2 A RELAÇÃO UNO-MÚLTIPLO: GÊNESE HISTÓRICA DA

2.3 A uno-multiplicidade do ser em Aristóteles

2.3.4 O legado de Aristóteles para o neoplatonismo

Diante do exposto, pode-se ver que há muito de Aristóteles no neoplatonismo, em razão de os neoplatônicos, ainda que se julgassem os mais exímios platônicos, terem levado em consideração a lógica Aristotélica. Ademais da lógica, do Estagirita também se apropriaram das importantes noções de Ato e Potência, na medida em que postularam um Primeiro Princípio que é Ato e que dá origem aos demais seres, que têm existência a partir do processo de atualização pela processão. No entanto, é evidente que a concepção de potência apresentada por Aristóteles não aparece nos neoplatônicos exatamente como é concebida pelo Fundador do Liceu, dado que para o Estagirita potência é o que pode vir a ser, enquanto no neoplatonismo a

108 ARISTÓTELES, Metafísica, Θ8, 1050b8-14. 109 Ibidem, Δ7, 1017b6-11.

potência diz respeito à capacidade produtiva. Apesar das diferenças na noção de ato e potência, estes dois conceitos foram fundamentais para o sistema desenvolvido pelos neoplatônicos.

Outro ponto fundamental que deve ser destacado da filosofia Aristotélica, e que é encontrado de maneira muito perceptível no neoplatonismo, é a divisão dos seres segundo o movimento. Se Aristóteles divide os seres em: móveis eternos, móveis corruptíveis e imóveis, evidenciando que os primeiros seres móveis só podem existir mediante a existência de um primeiro que é imóvel e causa de todo movimento, o neoplatonismo segue a mesma linha de raciocínio. No neoplatonismo, em Proclo, mais especificamente, se vê uma divisão de seres segundo o movimento, na qual os seres automotores só são possíveis porque existe um ser Imóvel, que é causa e Bem, que lhes possibilita mover-se por si mesmos. Diante dos pontos assinalados, percebe-se que muito da lógica aristotélica e de sua terminologia foi herdado pelo neoplatonismo, de modo que sem o aristotelismo o neoplatonismo não teria sido o que foi.

No entanto, entre os neoplatônicos havia resistências a determinados pontos da filosofia do Estagirita, como é o caso da identificação do Noûs com o Primeiro Princípio. Gatti, em seu texto Plotino: a tradição platônica e a fundação do neoplatonismo, quanto a visão dos neoplatônicos sobre Aristóteles, afirma:

Plotino não tem a mesma estima por Aristóteles que tem por Platão e os pitagóricos. Apesar de Aristóteles ser criticado, em particular por sua identificação entre o primeiro princípio e o pensamento do pensamento, suas doutrinas são cruciais para a concepção plotiniana da segunda hipóstase, identificada com o nous aristotélico; também para a questão da alma; as categorias; e em relação a muitos aspectos da física.111

Apesar de sua importância para o neoplatonismo, o aristotelismo não é a única corrente que o influencia, não sendo Aristóteles, sequer, o pensador de mais prestígio para o neoplatonismo. Ocorre que já desde os Médio-Platônicos havia uma tentativa de conciliação,

ou harmonização112, entre o pensamento de Platão e Aristóteles e o neoplatonismo segue com

esta tendência, em razão da crença de uma unidade doutrinal de todo o espírito grego. Neste sentido, é preciso considerar que apesar da harmonização de Platão e Aristóteles, Platão era

111 GATTI, Maria Luisa. Plotino: a tradição platônica e a fundação do neoplatonismo. In: Plotino. Org. Lloyd P.

Gerson. Tradução: Mauricio Pagotto Marsola. São Paulo: Ideias & Companions, 2017. pp. 25-53. p. 26

112 “Harmonização” pode ser entendida em dois sentidos, como acordo ou como identificação. As duas

interpretações já foram defendidas, todavia, quando se fala de harmonização entre Platão e Arisstóteles o sentido de uma identificação não é edequada, uma vez que há incongruências entre as duas doutrinas. Neste sentido, pode- se ver aspectos da doutrina platônica criticada por Arisstóteles e, aspectos da doutrina de Aristóteles criticadas pelos seguidores de Platão. Mais sobre o sentido do termo “harmonização” ao tratar das filosofias de Platão e Aristóteles, ver: HADOT, Ilsetraut. Athenian and Alexandian Neoplatonism and the Harmonization of Aristotle

and Plato. Translated by Micheal Chase. Boston: Brill, 2015. p. 41-50 (texto: The Meaning pf the Term

posto como superior a Aristóteles113. Platão era a grande autoridade, de maneira que as críticas

que Aristóteles dirigia ao mestre não eram bem recebidas, como se observa na crítica plotiniana

às categorias aristotélicas114 e a ideia do Primeiro Princípio como o pensamento que pensa a si

mesmo.

Mas, mesmo diante das críticas, a filosofia da natureza, bem como a lógica aristotélica eram apreciadas pelos neoplatônicos, de modo que não poderiam ser simplemente ignoradas. É em vista disso que houve a continuação da tentativa de harmonização entre os filósofos. É em Alexandria, que se tornou um grande centro de estudos, que a tentativa de conciliação ganha grandes proporções, dando origem à corrente de pensamento que atualmente denominamos neoplatonismo.

Mas, a conciliação não se restringe ao pensamento só de Platão e Aristóteles, dado que a problemática da unidade e multiplicidade, com todos os seus desdobramentos, perpassa toda a história da filosofia grega, forjando e ressignificando conceitos que foram recebidos e trabalhados pelo neoplatonismo. Este processo de construção e ressignificação de conceitos proporcionou ao neoplatonismo desenvolver seu próprio sistema, dado que, depois de Aristóteles, se tinha uma lógica bastante desenvolvida e uma terminologia lógico-filosófica bem estruturada. Tal estruturação permitiu que os neoplatônicos trabalhassem se utilizando tanto dos conceitos platônicos quanto dos aristotélicos, numa tentativa de conciliação destas duas formas de pensar.

À vista disso, o segundo capítulo deste trabalho é dedicado a compreender como se dá a articulação da filosofia grega clássica, principalmente a de Platão e Aristóteles, pelos neoplatônicos. Neste sentido, o capítulo parte da recepção daquelas duas filosofias em Alexandria e Roma, com Plotino, segue para sua assimilação na Síria e Atenas, com as teorias de Jâmblico e a Academia. Posteriormente, são vistos quais as influências sofridas pelo Bizantino e como sua obra é classificada para, então, se deter na problemática da questão relativa à identidade e diferença oriunda do movimento de processão.

113 É importante perceber que superioridade não significa infalibilidade, o que pode ser constatado com a crítica

que Proclo dirige, em seu Comentário à República (VI Dissertação), à crítica que Platão faz aos poetas.

114 Sobre à crítica de Plotino à Aristóteles concernete à doutrina das categorias, ver: AUBENQUE, Pierre. Plotino e Dexipo, exegetas das Categorias de Aristóteles. In: Sobre a Metafísica de Aristóteles: textos selecionados. Coordenação de Marcos Zigano. São Paulo: Odysseus, 2005. pp. 315-340.