• Nenhum resultado encontrado

3 BASES DO PENSAMENTO PROCLEANO

4.2 As Hénadas como elementos possibilitadores da processão

4.2.1 Sobre a possibilidade de participar no imparticipado

O Primeiro Princípio não é alcançado a partir das afirmações, como bem pondera Berger: “O uno não poder ser, para seus inferiores, nem matéria de ciência, nem mesmo objeto de simples opinião. Não é a sensação, a razão, ou mesmo a intuição intelectual que nos leva ao

Uno.”263 Não sendo objeto de conhecimento, só é alcançado pela negação. Contudo, se tudo

tem origem na unidade primeira (αὐτοέν), que está acima de qualquer determinação, como é

possível dizer qualquer coisa das hipóstases que dele procede? Diante da inefabilidade do Primeiro Princípio, a passagem da unidade à multiplicidade revela duas dificuldades: a primeira concernente à participação de determinações no que não é nem determinado nem indeterminado, e a segunda, à separação do primeiro.

Se o Princípio não se comunica diretamente com a multiplicidade, são fundamentais intermediários. Mas, o que seria capaz de intermediar a multiplicidade e a unidade pura? Para responder esta questão, é preciso considerar que em Proclo “Tudo está em tudo, mas cada um

em seu modo próprio.”264 Neste sentido, Berger teria razão ao afirmar que o Uno pressupõe

uma multiplicidade que ele mesmo produz e ordena265. Entretanto, dizer que toda

multiplicidade está no Uno traz algumas aporias, porque tal afirmação leva a pensar na multiplicidade contida na unidade. Se a multiplicidade estivesse contida no Uno, significaria dizer que ela coexistiria com ele, o que foi demonstrado ser absurdo.

Não havendo comunicação direta entre extremos, o Bizantino apresenta a primeira grande diferença entre o seu sistema e o de Plotino, ele estabelece tanto as Hénadas quanto às duas archai: péras e ápeiron, como elementos mediadores entre a unidade e toda a multiplicidade existente. Os intermediários não são o Uno, dado que o primeiro deve ser tão somente um. Logo, tudo o que é posterior ao Uno tem de ser não-uno. No entanto, negar a

unidade é negar a existência, mas “a negação do múltiplo não é negação de existência; ela é,

sobretudo, afirmação da unidade; e a negação da unidade é ao mesmo tempo negação de toda

existência.”266 O problema reside na dificuldade de afirmar a multiplicidade, uma vez que a

unidade não pode ser negada.

263 BERGER, A. Proclus, exposition de sa doctrine. Paris, 1840. p. 17. (Tradução nossa).

264 PROCLO, Elementos de Teologia, prop. 103. “Πάντα ἐν πᾶσιν, οἰκείως δὲ ἐν ἑκάστῳ”. (Tradução nossa). 265 Cf. BERGER, Op. cit., 1840, p. 26.

Para sair desta aporia, é preciso voltar à atenção para a seção A dos Elementos de Teologia. A multiplicidade pura não existe porque sua existência significaria negar a própria existência, já que o que é somente múltiplo ou é nada ou uma infinidade de infinitos e ambas as alternativas já se mostraram impossíveis. À vista disto, toda multiplicidade é, na verdade, composta de unidades, sendo ela própria feita unidade, na medida em que é um todo. Desta

feita, “tudo o que se torna uno267 torna-se uno por participar da unidade. Em si mesmo é não-

uno, mas por participar do uno (unidade), é uno.”268 A proposição acima traz dois pontos que

devem ser analisados: a indicação da separação total do Primeiro Princípio em relação a tudo o que vem depois dele e a necessidade de ser afetado pela unidade, ainda que separada.

Dois termos são chaves para compreender o Uno como pelo menos algo separado,

trata-se da utilização dos termos πέποντε (da família do πάσχω, sofre) e μετοχήν (da família de

μεθέξει, participar). Ao por πέποντε e μετοχήν se referindo a uma afecção, pela participação, para tornar-se unidade, significa que há uma unidade primeira e anterior a todo aquilo que se torna unidade pela participação. O segundo ponto que evidencia a indispensabilidade de um primeiro é visto quando Dodds afirma, com respaldo na filosofia aristotélica do ser como ato e

potência269, que o ato deve preceder a potência270. Dodds chama a atenção para o princípio

aristotélico da relação entre potência e ato usada como prova desta proposição. Isto porque, com o Estagirita, algo em potência não vem a ser ato por si mesmo, é imprescindível um ser em ato que o ponha em movimento. Na filosofia do Bizantino, a mesma lógica é aplicada à necessidade de uma unidade anterior que, pela participação, torne toda multiplicidade una.

Toda ordem tem seu princípio em uma mônada e procede até a multiplicidade coordenada com ela; e toda ordem de multiplicidade retorna a sua mônada. E isso porque a mônada, sendo por definição um princípio, gera a multiplicidade que a pertence; por ela existe uma única série e uma única ordem que tem na mônada o ponto de partida do seu caminho até a multiplicidade.271

Sendo o Uno a causa de tudo, dele devem proceder todas as coisas. Entretanto a causalidade se dá em graus, de maneira que tudo procede do Princípio Primeiro, mas não diretamente. Se todas as coisas tivessem origem diretamente no Uno, todas participariam diretamente dele, havendo uma passagem abrupta entre a unidade extremamente simples e a

267 Aqui, há divergência quanto à tradução de ἕν, uma vez que Dodds traduz por “uno” e Valverde por “unidade”. 268 PROCLO, Elementos de Teologia, prop. 3. Πᾶν τὸ γινόμενον ἕν μεθέξει τοῦ ἑνὸς γίνεται ἕν. αὐτὸ μὲν γὰρ οὐχ

ἕν ἐστι, καθὸ δὲ πέπονθε τὴν μετοχὴν τοῦ ἑνός, ἕν ἐστιν. (Tradução nossa).

269 Cf. DODDS, Op. cit., 2004, p. 190.

270 Segundo o Estagirita: “o ato é anterior à potência e a todo princípio de mudança”. ὅτι μὲν οὖν πρότερον ἡ

ἐνέργεια χαὶ δυνάμεως χαὶ πάσης ἀρχῆς μεταβλητιχῆς, φανερόν. ARISTÓTELES, Metafísica, Θ8, 1051a2-3.

271 Πᾶσα τάξις ἀπὸ μονάδος ἀρχομένη πρόεισιν εἰς πλῆθος τῇ μονάδι σύστοιχον, καὶ πάσης τάξεως τὸ πλῆθος εἰς

μίαν ἀνάγεται μονάδα. ἡ μὲν γὰρ μονάς, ἀρχῆς ἔχουσα λόγον, ἀπογεννᾷ τὸ οἰκεῖον ἑαυτῇ πλῆθος· διὸ καὶ μία σειρὰ καὶ μία τάξις, ἣ ὅλη παρὰ τῆς μονάδος ἐχει τὴν εἱς τὸ πλῆθος ὑπόβασιν· PROCLO, Elementos de Teologia, prop. 21. (Tradução nossa).

multiplicidade em toda a sua complexidade. Novamente entra em jogo a necessidade de intermediários. Se o Uno é imparticipado e há uma multiplicidade que para existir precisa ser, de alguma maneira, unidade, i. é, participar do imparticipado, é preciso que haja os participáveis. Deste modo, Proclo afirma que “Todo aquele que é imparticipado produz, a partir de si mesmo, o participado; e todas as substâncias participadas estão ligadas por uma tendência

ao alto em direção às existências imparticipadas.”272

Duas observações devem ser feitas à proposição 23. A primeira é que o imparticipado é posto como mais de um, na medida em que se fala “todo imparticipado [...]” e; segundo, o fato de que já estaria provado que o Primeiro é tão somente Um. Considerando que toda produção ocorre primeiramente pela semelhança e que o Uno está fora de qualquer relação, porque acima de todo ser, a primeira multiplicidade deve ser semelhante ao Uno. No entanto, semelhança não é igualdade, o que significa que mesmo o que procede do Uno não é o Uno,

sendo, por isto, parte da multiplicidade. Sobre isso, pondera o Bizantino: “Porque se há o Uno

em si, é preciso ter um primeiro participante, que é o primeiro grupo unificado. Este primeiro

grupo é composto de Hénadas”273. As Hénadas são o que há de mais próximo ao Primeiro

Princípio, de maneira a serem extremamente semelhantes a ele.

À medida que o grau de participação está associado ao de semelhança, tem-se um

fenômeno interessante quanto à definição da escala das Hénadas, e do próprio Uno274, que é o

fato de elas serem imparticipadas, enquanto mônadas de série275, e, ao mesmo tempo,

participadas, por serem os primeiros elementos de mediação entre unidade e multiplicidade. Sendo as primeiras a descenderem do Uno, as Hénadas permitem que ele seja Imparticipado, uma vez que é delas que todos os seres participam. Portanto, cada hipóstase tem origem, com sua característica própria, nas Hénadas. Duas proposições são chaves para compreender como isto se dá, a primeira é a proposição 127, em que se discorre sobre a posição das Hénadas como

272 Πᾶν τὸ ἀμέθεκτον ὑφίστησιν ἀφ'ἑαυτοῦ τὰ μετεχόμενα, καὶ πᾶσαι αἱ μετεχόμεναι ὑποστάσεις εἰς ἀμεθέκτους

ὑπάρξεις ἀνατείνονται. PROCLO, Elementos de Teologia, prop. 23. (Tradução nossa).

273 εἰ γὰρ ἔστι τὸ αὐτοέν, ἔστι τὸ πρώτως αὐτοῦ μετέχον καὶ πρώτως ἡνωμένον. τοῦτο δὲ ἐξ ἑνάδων. Ibidem,

prop. 6. (Tradução nossa).

274 O próprio Uno é imparticipado por ser o primeiro, todavia, se ele fosse completamente separado de todas as

coisas, significaria dizer que nada teria produzido. Assim, ainda que imparticipado, o Uno é participado pelas

Hénadas divinas.

275 Na proposição 24, Proclo define o imparticipado como sendo a unidade que precede aos que são muito: “τὸ μέν

ἐστιν ἕν πρὸ τῶν πολλῶν”. Já como participado, é posto aquele que está presente no que são múltiplos: “τὸ δὲ μετεχόμενον ἐν τοῖς πολλοῖς”. Assim, uma vez que as Hénadas são o primeiro grupo de unificado, conforme proposição 6 dos Elementos de Teologia, elas são o topo da multiplicidade que se segue. Enquanto topo, elas, bem como o Uno, são separadas e transcendentes, sendo, portanto, imparticipadas.

descendentes do Uno e procedendo os seres; a segunda, é a 137, em que as Hénadas são postas como intermediárias e determinantes das demais hipóstases.