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3 BASES DO PENSAMENTO PROCLEANO

4.1 Da possibilidade da participação no imparticipado

4.1.1 Sobre a participação na unidade

Para demonstrar que toda multiplicidade participa de alguma maneira da unidade, o Bizantino levanta a hipótese de a multiplicidade não participar da unidade. Para tanto, são consideradas duas alternativas: a do todo não ser uma unidade e a de cada parte da multiplicidade ser múltipla. Sendo cada parte da multiplicidade múltipla, cada parte seria múltipla ao infinito. Cada parte, então, ou deve ser una (ἕν) ou não-una (οὐχ ἕν). Se for não- una, ou será muitas (πολλὰ) ou nada (οὐδέν). Se for nada, o todo também é nada, pois nada não sintetiza (συντίθεσθαί) o que quer que seja. Se forem muitas, cada parte seria uma infinidade

de infinitos, o que é impossível, porque o todo é maior que as partes240 e não há nada maior que

o infinito. Logo, como uma parte, que é infinidade de infinitos, pode ser menor que o todo? Na proposição 5, Proclo tece uma argumentação semelhante à encontrada na Teologia Platônica, mas o faz a partir da tese de que “toda multiplicidade vem depois do

uno.”241 A argumentação segue a seguinte lógica: se a multiplicidade fosse anterior ao uno, o

uno participaria da multiplicidade, mas a multiplicidade não participaria do uno, já que a unidade sequer existiria. Se uno e múltiplo coexistissem, o uno seria uno e a multiplicidade, múltipla. Sendo a multiplicidade não-una ela seria uma infinidade de infinitos em cada uma de suas partes, levando às mesmas consequências da proposição 1. A possibilidade da multiplicidade participar parcialmente do uno também é descartada, dado que uma parte seria unificada enquanto a outra cairia na infinitude. O uno em si, por sua vez, é posto como aquele que em nada participa da multiplicidade. Chega-se, então, à conclusão de que toda multiplicidade tem existência a partir do uno.

Unidade e multiplicidade não podem se tocar mutuamente, porque o que se toca o faz por semelhança e eles não possuem um ponto de semelhança se pensados no mesmo

plano242. Todavia, na Teologia Platônica é posta a possibilidade do uno e do múltiplo

participarem igualmente um do outro, de maneira a estarem igualmente um no outro. Para participarem mutuamente, Proclo afirma ser preciso um terceiro que seja causa da mistura, não sendo nem uno nem múltiplo, porque participando um do outro, nem o uno é causa do múltiplo, nem o múltiplo, do uno. Se uno e múltiplo se encontrassem misturados, seria preciso algo que

240 Assim, para o Bizantino: “Nada é maior que o infinito, pois a parte é excedida pelo todo”. τοῦ γὰρ ἀπείρου

πλέον οὐκ ἔστι, τὸ δὲ ἐκ πάντων ἑκάστου πλέον. PROCLO, Elementos de Teologia, prop. 1. (Tradução nossa).

241 Πᾶν πλῆθος δεύτεπόν ἐστι τοῦ ἑνός. Ibidem, prop. 5. (Tradução nossa).

242 O ponto em comum é descartado somente quando uno e múltiplos se apresentam no mesmo nível, porque se

fosse causa da mistura, i. é, um terceiro termo. O terceiro deveria ser superior ao uno e ao

múltiplo, mas não há nada que seja superior ao uno e ao múltiplo243. Diante da impossibilidade

da participação mútua entre unidade e multiplicidade, é necessário que só a multiplicidade participe da unidade.

Na discussão sobre a relação uno-múltiplo, na Teologia Platônica, um ponto interessante é levantado a respeito de a unidade e a multiplicidade não serem contrapostas. O argumento é desenvolvido comparando uno e não-uno, i. é, comparando o uno ao que seria seu oposto. Se a multiplicidade se contrapusesse ao uno e aquilo que não participa de nenhuma maneira do uno é nada, seria a multiplicidade nada? Tal conclusão é inadmissível porque significaria que só existe a unidade em si. Deste modo, é preciso pensar unidade e multiplicidade em uma relação diferente da de oposição. É esse o indicativo presente na conclusão do argumento do primeiro capítulo do segundo livro da Teologia Platônica.

A conclusão de tudo isso é que é primeiramente necessário que o múltiplo participe do uno; segundo, que o uno seja sem mistura com a multiplicidade; terceiro, que não haja nada superior ao uno, mas que o uno seja para o múltiplo causa do seu ser. Em efeito, tudo o que é privado do uno vai em direção ao nada e a sua própria diminuição; enquanto o que não é múltiplo, não é, como um não-múltiplo, nada. O que se opõe ao múltiplo é o não-múltiplo: se o uno e o múltiplo não são idênticos, o não-múltiplo não poderia ser idêntico ao nada.244

Tem-se aqui um ponto significativo no que concerne à problemática da identidade e diferença na filosofia procleana. Ao assegurar que unidade e multiplicidade não são opostas, é dado a elas uma relação que permite que identidade e diferença escapem do sentido de

oposição, tornando plausível sua coexistência nos seres. A tese da unidade e multiplicidade,

como não opostas, também é exposta nos Elementos de Teologia, mais especificamente, na

proposição 1. Quando é dito que aquilo que é não-uno (οὐχ ἕν) ou é alguma coisa (ἕκαστóν) ou

nada (οὐδέν), o que se observa é que, se a multiplicidade fosse o mesmo que o não-uno, sobre

ela deveriam ser levantadas as mesmas hipóteses que foram sobre ele, o que não ocorre, na

medida em que sobre ela é dito que: ou é um todo (ὅλον) ou uma infinidade de infinitos (ἐξ

ἀπειράκις ἀπείρων). Na medida em que as hipóteses sobre o não-uno diferem das hipóteses sobre a multiplicidade, fica evidente que o não-uno não é o mesmo que o múltiplo.

243 Cf. PROCLO, Teologia Platônica, II, 12.16-13.1.

244 Ἐκ δὴ τούτων ἀνάγκη τά τε πολλὰ μετέχειν τοῦ ἑνός, καὶ τὸ ἓν ἄμικτον εἶναι πρός τὸ πλῆθος, καὶ μεηδὲν εἶναι

τοῦ ἑνὸς κπεῖττον, ἀλλὰ τοῦτο καὶ τοῦ εἶναι τοῖς πολλοῖς αἴτιον εἶναι. Πᾶν γὰρ δὴ τὸ τοῦ ἑνὸς στερόμενον εἰς τὸ μηδὲν εὐθὺς καὶ τὴν ἑαυτοῦ διαδιδράσκει φθορὰν, τὸ δὲ μὴ πολλὰ ὂν οὐχ ἅμα πολλὰ οὐκ ἔστι καὶ οὐδέν ἐστι. Τῷ μὲν γὰρ ἓν τὸ οὐδὲν ἀντίκειται, τῷ δὲ αὖ πολλὰ τὰ οὐ πολλά· εἰ τοίνυν μὴ ταὐτὸν τό τε ἓν καὶ τὰ πολλά, οὐδ'ἂν τὰ μὴ πολλὰ τῷ μηδὲν εἴη ταὐτόν. PROCLO, Teologia Platônica, II, 14.8-16. (Tradução nossa).

Outro ponto merece atenção, os sentidos da negativa e sua carga enfática. Ao analisar o texto grego vê-se que os termos utilizados para trazer o sentido de negação são

diferentes, tratam-se dos termos: μηδέν e οὐδέν. Tais termos, segundo Benoit, “inclusive

etimologicamente, estão intricadas na dialética parmenidiana do Ser-Um, da qual Proclo é a

longíqua continuidade.”245 A diferença entre os termos se faz interessante na medida em que

são usados em contextos diferentes e tem pesos diferentes. Veja-se246, μηδενός é um termo

formado por três partículas: μή + δέ + ἕν. A primeira, μή, significa negação e tem a

particularidade de carregar consigo o sentido de vontade, sendo, uma proibição subjetiva. A segunda, δέ, marca uma posição, quando posta de forma isolada. A terceira, ἕν, trata-se do numeral “um” em sua forma neutra. A segunda palavra, οὐδέν, é uma negação que encerra a segunda e terceira partícula presentes em μηδέν, diferindo dela porquanto a negação οὐ nega um nome ou frase, funcionando como negação objetiva. Por ambos os termos dizerem respeito

à negação da unidade, tanto μηδέν quanto οὐδέν são traduzidos por nada247.

Uma vez esclarecidos os sentidos dos termos usados nas negações, a compreensão da primeira proposição dos Elementos de Teologia se torna mais clara, dado que se percebe que quando são levantadas hipóteses que não serão confirmadas e não condizem com o axioma que intitula a proposição, a negação utilizada é sempre aquela que traz sentido subjetivo: μηδέν. Porém, quando se passa a demonstrar a impossibilidade das hipóteses levantas, o termo que se

usa deixa de ter o caráter subjetivo e a negação que passa a ser usada é a objetiva, οὐ, e suas

variações. Neste sentido, o múltiplo como não-um (οὐχ ἕν) é uma negação objetiva. O caráter

de não-uno (οὐχ ἕν) da multiplicidade, por ser objetiva, traz uma carga de realidade, de

concretude que o não-uno (μηδέν) das hipóteses não permite.

Ademais das duas negações, outra questão tem de ser esclarecida quando se fala dos aspectos de utilização de termos no sistema do Bizantino. Agora ocorre o inverso do que se tem com a negação ou nadificação dos seres. Se com a negação há dois termos que são traduzidos da mesma forma, quando se fala do termo ἕν se tem uma palavra traduzida de três modos diferentes. Entretanto, nos Elementos de Teologia não há nada no âmbito da escrita que dê margem para pensar em uma diferença clara entre aquilo que é traduzido por um, Uno, ou

245 BENOIT. Hector. In: Elementos de Teologia – Proclus, o diádoco. Boletim do CPA. N. 7, jan/jun. Campinas:

1999. pp. 117-123. Nota 2, p. 122.

246 Toda a argumentação exposta no restante do parágrafo é fundamenta na nota 2 da página 122 da tradução Benoit

das 10 primeiras proposições dos Elementos de Teologia. Cf. Ibidem, p. 122.

247 Benoit chama atenção para uma tradução mais adequada destes termos em língua portuguesa. Segundo o

estudioso, em língua portuguesa, deveria haver uma substantivação da negação, de maneira que ela fosse traduzida por nem e posteriormente uma aglutinação com o um. Assim, o termo que melhor representaria a negação da unidade presente em μηδέν e οὐδέν seria nenhum.

unidade. Assim, a diferença nas traduções só pode advir do sentido que ἕν adquire no contexto de cada proposição. Por isso, é necessário verificar alguns dos contextos que legitimam tal diferença, caso contrário tais traduções parecem arbitrárias.

Iniciando com a tradução de ἓν pelo termo Uno, ao comparar unidade e

multiplicidade, o Bizantino estabelece um tipo de unidade que transcende todos os seres. Desde aqui é preciso compreender como se dá a transcendência do Uno, dado que tal perspectiva carrega consigo a dificuldade de uma contradição na ideia de um termo transcendente que é, ao mesmo tempo, participado. Ocorre que, para que o Uno seja causa, ele deve ser participado por seus efeitos. Mas, como o Uno pode ser imparticipado e transcendente se, enquanto causa, ele

deve ser participado?248