• Nenhum resultado encontrado

A terceirização e o putting-out-system: os antecedentes históricos

CAPÍTULO 2 CAPITALISMO, CRISE E PRECARIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE

3.1. A terceirização e o putting-out-system: os antecedentes históricos

Terceirizar é a estratégia empresarial que consiste em uma empresa transferir para outra, e sob o risco desta, a atribuição, parcial ou integral, da produção de uma mercadoria ou a realização de um serviço, objetivando – isoladamente ou em conjunto - a especialização, a diminuição de custos, a descentralização da produção ou a substituição temporária de trabalhadores.

A terceirização não é uma prática nova, embora o seu formato atual apresente peculiaridades estratégicas. Na França, na época do Rei Luis XVI, havia um grupo francês, denominado “Fermier”, que era de natureza privada e funcionava como uma instituição responsável pela cobrança de impostos. Em 1793, os coletores de imposto que atuavam como “terceirizados”, entre os quais Lavoisier, foram acusados de fraude e, em seguida, guilhotinados em praça pública.

A terceirização tem as suas origens vinculadas ao chamado putting-out- system57

, que é a forma de trabalho por meio da qual os tecelãos e fiandeiros – alguns com o auxílio de familiares, agregados e ou empregados - produziam, em seus domicílios e com os seus próprios instrumentos, as peças encomendadas pelos comerciantes que cediam àqueles a matéria prima e parte da remuneração. Esse

modelo, chamado de façonismo, foi empregado no Brasil ainda no final do século XIX (COLLI, 2000)58. A fação, originada do francês à façon, é a execução de um serviço sem que o prestador tenha a propriedade da matéria prima. O façonismo é uma demonstração de que o modelo flexível resgata velhas formas de exploração e de intensificação da força de trabalho. No plano internacional, a origem do façonismo coincidiu com a transformação do processo de trabalho na indústria têxtil, principalmente com a introdução da carda mecânica.

A carda mecânica foi a primeira máquina implantada no âmbito da indústria têxtil. Ela era constituída de dois cilindros e dentes de madeira ou agulhas, presos a uma haste, e servia para desembaraçar os tecidos. O equipamento existia desde a Idade Média, sendo que a sua utilização foi proibida entre os ingleses pelo Rei Eduardo VI que subiu ao trono em 1547. A máquina foi reintroduzida no século XVIII entre os comerciantes do oeste da Inglaterra, porém, como aprofundamento de um conflito de classes:

A ameaça da carda mecânica era apenas um elemento dentro de uma reviravolta generalizada contra os grandes patrões, que vinham rompendo com os costumes dos trabalhadores e destruindo um modo de vida estabelecido. (THOMPSON, 1987a, p. 96).

Para recrudescer esse quadro de conflito surgiram, nesse mesmo período, as máquinas cisalhadeiras que serviam para cortar e aparar o tecido, trazendo grande apreensão para os que tinham o ofício de aparadores de tecido. Já em 1758, segundo Abendroth (1977, p. 14), tem-se notícia de que trabalhadores ingleses destruíram as primeiras máquinas de aparar algodão. Para reprimir a revolta dos trabalhadores, o parlamento britânico aprovou, em 1769, a pena de morte para quem destruísse as máquinas. Em 1811, a Câmara dos Lordes editou nova lei para reiterar a aplicação da pena máxima.

No contexto do conflito entre o homem e a máquina, o trabalhismo inglês revela as origens da terceirização sob a égide capitalista. Thompson (1987a, p. 90 e

58 O façonismo no Brasil surgiu após a inauguração do sistema de ferrovia que liga São Paulo a Santa Bárbara e com a criação da Empresa Têxtil Carioba, fundada com o auxílio de técnicos norte- americanos trabalhadores que imigraram em 1873 para o Brasil por força dos conflitos que marcavam a Guerra da Secessão. A prática da fação nasceu, segundo Colli (2000), da iniciativa de um vendedor de sedas conhecido por Luiz Bertoldo que comprou à empresa Pavezzi 12 teares que se encontravam encostados e sem uso há considerável tempo. O Sr. Bertoldo conseguiu colocar os teares em funcionamento e pactuou com a Tecelagem Ítalo-Brasileira a prestação de serviços, desde que a empresa fornecesse matérias primas. O exemplo de Bertoldo fez com que outros empregados da Carioba alugassem teares para trabalhar em casa.

101) diz que no final do século XVIII alguns comerciantes compravam tecidos e encomendavam o acabamento às oficinas situadas em Leeds ou nas aldeias de West Riding. Os negociantes repassavam trabalhos para oficinas situadas em condados distantes, deslocando assim a produção até então situada nos grandes centros urbanos, nos quais existia a pressão dos “luditas”.

Atemorizava a população o fato de que os industriais, por um lado, utilizavam mais maquinaria e, por outro, os “luditas” respondiam com mais incêndio de fábricas, mais destruição de equipamentos e mais ameaças a empresários e a trabalhadores dissidentes.

Motivos não havia para que os luditas fossem considerados os “fora da lei”. Eles reivindicavam na Justiça a aplicação das leis trabalhistas vigentes, tais como: o Estatuto de Eduardo VI, que impedia a utilização das cardas mecânicas; o Estatuto dos Artífices Elisabetanos, que reconhecia o ofício somente aos que passaram 07 anos como aprendiz; e o Estatuto de Felipe e Maria que restringia a quantidade de teares em função do número de mestres. A resposta patronal foi forçar o Parlamento britânico a revogar essas leis protetivas, o que de fato aconteceu em 1809. Era o caminho aberto para o laissez-faire, para a exploração do trabalho fabril com mais máquinas, mais trabalho de crianças e a abertura para a adoção do truck system, artifício que admitia o pagamento integral do salário com mercadorias, ao invés de dinheiro (THOMPSON, 1987a, p. 100). Os salários eram fixados pelo patrão, sendo que em caso de conflito havia a possibilidade de um magistrado arbitrar o valor da remuneração.

Os luditas, que tinham a simpatia da opinião pública e até de alguns empresários que se sentiam atingidos pelo grau de concorrência introduzido com as inovações, foram protagonistas de um momento marcante na história de transição para o capitalismo. Invocavam a tradição legislativa e os bons costumes da sociedade inglesa. Embora com certo saudosismo, acreditavam na restituição de um protecionismo legal. Lutavam pela dignidade no trabalho. Reivindicavam direitos, tais como o salário mínimo, a proteção ao trabalho da mulher e do menor, o direito de sindicalização, a livre negociação com arbitragem e a estabilidade para os mestres. Segundo Thompson (1987a, p. 123), os luditas almejavam uma comunidade democrática, “onde o crescimento industrial seria regulado segundo prioridades éticas e a busca do lucro se subordinaria às necessidades humanas.”

O ludismo esfacelou-se e ruiu com as prisões e mortes de seus líderes e, ainda, com a obrigatoriedade da venda da força de trabalho sob as novas condições, que contribuíram para “naturalizar” o putting-out-system.

Até aqui o interesse desenvolvido no presente capítulo foi o de caracterizar as “origens remotas” da prática da terceirização sob o capitalismo. Uma recuperação histórica mais abrangente demandaria alguns estudos de casos no desenrolar de várias décadas. Porém, como a abordagem do tema adquiriu relevância a partir da década de 1970, em razão da reestruturação produtiva, o foco de análise doravante estará situado levando-se em conta os desdobramentos históricos das três últimas décadas.