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CAPÍTULO 2 CAPITALISMO, CRISE E PRECARIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE

2.3. O Estado Amplo: um potencializador das desigualdades sociais

O processo de acumulação capitalista envolve os antagonismos entre aqueles que buscam a extração de sobretrabalho e aqueles que, direta ou indiretamente, sobrevivem da venda da mercadoria trabalho. Essa tensão é em parte transformada em lutas políticas e regulada pelo Estado.

Não se tem o propósito aqui de reduzir-se a problemática capitalista a questões atinentes ao funcionamento ou ao poder das instituições (Estado, corporações, monopólios, etc). Tampouco se pretende transferir a discussão para questões puramente abstratas, posto que os modelos explicativos em relação ao Estado são relevantes à medida que tentam apreender a atuação concreta deste no contexto da dinâmica do modo de produção capitalista. Uma interpretação sobre o Estado é uma representação da realidade, não devendo ser tomado como um retrato absoluto do real. Ademais, em face do seu caráter histórico, embora não exista um modelo único para explicar a atuação estatal, há aquele referencial teórico

que se volta mais diretamente para as características recorrentes do Estado capitalista. É nesse sentido que o presente tópico é desenvolvido sob a premissa de que o Estado moderno, enquanto criação capitalista, instrumentaliza de forma recorrente a desigualdade social e as condições para a extração da mais-valia.

Ao se falar de Estado é importante destacar-se a atualidade da classificação do Estado (Amplo e Restrito) fornecida por João Bernardo (1998). Não serão esgotados aqui todos os aspectos da teoria do citado professor português, mesmo porque isso demandaria uma profunda análise explicativa que não cabe aos propósitos do presente trabalho.51 Mas é válido destacar que a teoria do Estado em Bernardo é em larga medida importante para o presente trabalho, posto que este autor apresenta categorias analíticas adequadas à explicação da relação atual do Estado diante do conflito entre o trabalho e o capital. O marxista português, ao elaborar as suas categorias analíticas inspirando-se na concepção de Marx, demonstra, portanto, que os interesses empresariais atuam na relação entre o Estado e as classes produtivas.

Para Bernardo (1998), o Estado Amplo é um mecanismo de poder utilizado pelos capitalistas para controlar os trabalhadores e garantir a disputa empresarial pela maior extração de mais-valia. Na competição interempresarial, o Estado - mais do que um mero agente regulador da concorrência – é a parte interessada que toma partido e atua como promotor das chamadas CGP (Condições Gerais de Produção). As CGP compreendem todos os recursos destinados à realização da produção, englobando a estrutura e o funcionamento dos estabelecimentos de ensino, o acesso da população à medicina, à saúde, etc. Em relação às categorias analíticas centrais de sua teoria, Bernardo (1996, p. 6) explicita:

O Estado Restrito é o aparelho político clássico, combinado com os poderes executivo, legislativo e judiciário [...] O Estado Amplo resulta da autoridade que cada patrão exerce no interior da sua própria empresa. Resulta ainda da hegemonia que as empresas detêm sobre a sociedade em redor. O Estado Amplo é constituído pelas empresas enquanto aparelho de poder.

51 Conforme demonstra Przeworsky (1995), um balanço da discussão sobre o Estado capitalista demandaria uma abordagem de no mínimo onze orientações teóricas, envolvendo as concepções clássicas (o Estado como ser parasitário; como epifenômeno; como fator de coesão; como instrumento; como conjunto de instituições; como sistema de dominação política) e as teorias contemporâneas (da desmercantilização; da autonomia relativa do Estado; da seletividade; da elite do poder; e da dependência estrutural).

O Estado Restrito, além de ser importante por dispor de poderes institucionais (o jurisdicional; o legislativo; e o de tributação), é estratégico por ser a instituição que influencia o fluxo de capitais e bens que transitam por suas fronteiras, além - e principalmente – de monitorar o movimento de pessoas e o seu impacto sobre o mercado de trabalho. Valendo-se do poder de legislar, o Estado Restrito impõe normas para disciplinar as relações sociais, destacando-se entre estas as relações de trabalho, as quais são reguladas por meio da constituição de direitos e obrigações dos sujeitos envolvidos no mundo do trabalho.

O Estado Amplo transforma o Estado Restrito numa longa manus. Ao atuar todos os seus “poderes” (tributário, regulamentar, jurisdicional, militar, etc), o Estado Restrito reproduz a concepção do Estado Amplo para permitir a acumulação. O poder de tributação permite ao Estado acumular riquezas e redistribuí-las ao capitalista em nome do “desenvolvimento” e mediante a concessão de favores e incentivos fiscais, empréstimos subsidiados e investimentos em infra-estrutura. O poder regulamentar transforma os vínculos políticos em compromissos com os grupos capitalistas. O Estado passa a ser o grande fiador dos negócios do setor privado, transferindo a regulação para as agências privadas e garantindo a cláusula de sucesso aos investidores.

Se por um lado Marx via o Estado como o comitê da burguesia, dando-lhe um caráter instrumental e parasitário, Gramsci, por outro lado, estudou o Estado conferindo-lhe um caráter relacional e ampliado, levando em conta o alargamento do espaço da política e da dominação. Para Gramsci, “por Estado deve-se entender, além do aparelho de governo, também o aparelho privado de hegemonia ou sociedade civil.”52 A dominação, portanto, poderia se dar tanto como o resultado da coerção de uma classe sobre outra quanto por meio do consenso. O autor italiano deu grande destaque à forma como essa dominação se reproduz ao nível do Estado, sendo este considerado o espaço da sociedade. Nesta se evidenciaria a hegemonia daquilo que ele denominou de diferentes grupos sociais (GRAMSCI, 1989).

Em que, portanto, assemelha-se ou diferencia-se o modelo gramsciano daquele construído por Bernardo? Os dois superam a noção de um Estado reduzida apenas à sociedade política. Ambos são convergentes naquilo que eles chamaram

de sociedade política e “Estado Restrito”, respectivamente. Porém, no que diz respeito ao aspecto do “Estado Ampliado”, Gramsci estava mais voltado para a compreensão de como se chegar à hegemonia, enquanto disseminação da ideologia dominante na esfera social, tendo em vista a situação histórica da Itália no momento da sua teorização. Embora a sociedade civil, em Gramsci, e o “Estado Amplo”, em Bernardo, ocupem o panorama ideológico, os dois autores estão se reportando a concepções e a realidades que não são iguais. O pensador sardenho deu acentuado destaque ao papel da cultura e voltou suas análises para as particularidades nacionais que culminaram na formação do Estado na Itália e em alguns países centrais. Gramsci, ao admitir uma autonomia relativa do Estado capitalista, concebe a possibilidade deste vir a ser autônomo em relação ao poder de influência dos capitalistas (PRZEWORSKY, 1995). Bernardo (1998) diverge nesse aspecto, posto que a sua concepção de Estado é instrumental. Outra diferença importante consiste no fato de Bernardo reportar-se a uma realidade histórica em que há a supremacia das empresas transnacionais e em que as relações de produção só são possivelmente compreendidas em sua dinâmica supranacional.

Embora não adote explicitamente os liames conceituais de Bernardo, Wallerstein reforça a importância explicativa dos referenciais que avaliam o poder instrumental do Estado. O autor citado (2001, p. 47) percebe a soberania como uma farsa, ou mito, e sustenta que as relações entre os Estados estão crescentemente hierarquizadas em função dos interesses capitalistas:

Ao longo da história do sistema capitalista, quanto maior o risco – e a possibilidade de perdas – mais provável se tornou a entrada dos governos nas operações, para evitar falências e até mesmo restituir prejuízos, de modo a evitar torvelinhos financeiros.

O conceito do Estado Restrito serve para reconhecer o aparato e a força repressiva do Estado Amplo. É através dessa coerção que o Estado busca assegurar a execução dos contratos que disciplinam a acumulação e a ordem necessária à reprodução do capital. O potencial militar, além de ser proporcional à capacidade de acumulação do Estado, exerce forte influência sobre as relações entre as nações, conforme esclarece Wallerstein (2001, p. 49):

De maneiras diferentes, o Estado tem sido crucial como mecanismo para otimizar a acumulação. Contudo, nos termos da sua ideologia, espera-se

que o capitalismo expresse a atividade de empreendedores privados, livres da interferência dos aparatos estatais. Na prática, isso nunca foi verdade em lugar nenhum. É ocioso especular se o capitalismo teria florescido sem o papel ativo desempenhado pelo Estado moderno. No capitalismo histórico, os capitalistas confiaram em sua capacidade de utilizar os aparatos estatais em seu benefício.

Na ótica de Wallerstein (2001, p. 51), o equilíbrio de poder entre os países centrais torna-se a obsessão para os capitalistas, visto que estes articulam relações internacionais que resultam num “império-mundo” e postergam as demandas sócio- econômicas dos representantes do trabalho. A rigor, se as máquinas estatais “[...] se tornassem fortes demais poderiam sentir-se livres para acatar pressões igualitárias, por razões de equilíbrio interno”.

O grande capital, ao controlar o Estado, “estimula” - sob uma perspectiva formal - as demandas burguesas por democracia e liberdade, ao sugerir a premissa de que todos são iguais e gozam dos mesmos direitos. Tais demandas, uma vez assimiladas nas relações sociais, tendem a ser propagadas como práticas universais de um “Estado neutro”, igual para todos. Assim, o Estado viabiliza uma das formas de o capital exercer o seu controle sobre os trabalhadores. Para Wallerstein, a necessidade de cooptar os trabalhadores faz com que os capitalistas procedam “aparentemente” de forma dúbia a estimular movimentos ou operações não necessariamente voltadas para a tarefa imediata da acumulação. Tais movimentos aprofundam a fragmentação da solidariedade entre os trabalhadores na medida em que atomizam suas lutas por meio de uma visão de mundo marcada pelas aspirações individualistas:

Em um sistema desigual há sempre duas maneiras de o grupo rebaixado buscar se ver livre de seu rebaixamento. Ele pode tentar reestruturar o sistema, de modo que todos passem a ter uma posição igual. Ou pode simplesmente querer se mudar para uma posição superior, mantendo a distribuição desigual. Não importa o quanto se concentrem em objetivos igualitários, os movimentos anti-sistêmicos sempre incluem elementos cujo objetivo, inicial ou final, é apenas ascender na hierarquia existente. Os próprios movimentos sempre tiveram consciência disso. Contudo, tenderam a discutir este problema em termos de motivações individuais: os de coração puro contra os traidores da causa. (WALLERSTEIN, 2001, p. 60).

A atuação dos empresários no controle do Estado é contraditória na medida em que ela se dissemina, na superfície, sob o pretexto de autopreservação do capital, mas sob a tendência de uma crescente concentração de poder nas mãos de

um número menor de capitalistas. Dessa forma, a tendência ao monopólio desestimula a corrida pelo progresso técnico e provoca a estagnação econômica. Por sua vez, esta só é superada com a decomposição do próprio monopólio. Essa decomposição será um tanto mais rápida quanto mais agressivo for o grau e a intensidade do investimento especulativo. Enfim, a dinâmica do processo de acumulação influencia a competição intercapitalista, na medida em que a corrida pela maximização do lucro encurrala o capitalismo para formas monopolistas, aprofundando o processo de desigualdades sociais e o controle sobre os trabalhadores. Esse controle exercido pelo Estado submete-se a variáveis históricas, a exemplo daquelas relacionadas às mudanças nas relações de produção. Assim, para se compreender como o Estado exerce sua influência sobre o cenário da reestruturação produtiva, importa analisar-se o nexo causal entre as transformações na economia mundial nas últimas décadas e o que se convencionou chamar de neoliberalismo.

2.4. O neoliberalismo: a contenção das demandas sociais e a dificuldade