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CAPÍTULO 2 CAPITALISMO, CRISE E PRECARIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE

2.2. A “miséria” do capitalismo

O desenvolvimento capitalista, em países desenvolvidos ou em desenvolvimento, contribui para acentuar o crescente flagelo humano (fome, desemprego, guerras, desigualdades, injustiça, drogas, doenças, degradação do meio ambiente, etc), ao agravar as condições de subsistência e o padrão de vida das sociedades. Ao se constatar que, na década de 1990, um terço da população de New York vivia abaixo da linha de pobreza, as manchetes dos jornais estampavam para o mundo que a miséria não era mais privilégio dos países pobres. A instabilidade econômica tem sido o fato sinalizador de que a miséria atingiu a população dos países desenvolvidos, a ponto de o governo do Reino Unido chegar a reconhecer que já em 1989 sua população era composta de 400 mil sem teto. “O reaparecimento de miseráveis sem teto era parte do impressionante aumento da desigualdade social e econômica da nova era.” (HOBSBAWM, 1995, p. 396). É a era da mistura perversa: miséria e medo.

O desemprego persistente vem precipitando a formação do que Ianni (2001) chama de subclasse, ou seja, um estrato constituído das seguintes pessoas: sem qualificação47; desprovidas da perspectiva de inserção no mercado de trabalho;

47 A categoria analítica denominada qualificação, segundo Leite e Posthuma (1995), é caracterizada numa acepção mais restrita e numa acepção mais ampla. No sentido mais restrito ela retrata os saberes dos quais o trabalhador necessita para desempenhar o seu ofício. A deficiência dessa primeira percepção consiste em se colocar o saber como uma expressão da técnica, isto é, como algo externo ao próprio trabalhador e que este só obtém por meio da escolaridade e do treinamento. Negligencia-se assim a processualidade histórica na qual se insere o trabalhador por meio da sua prática social. Os conhecimentos demandados na prática de um trabalho não são necessariamente aqueles que a empresa exige do trabalhador a priori, no momento do seu recrutamento, ou a posteriori, por ocasião da avaliação do seu desempenho. As empresas nem sempre apresentam uma uniformidade em seus critérios, de sorte que umas podem estar voltadas para a disponibilidade imediata, outras para a disponibilidade futura do mercado. Há uma segunda percepção de qualificação que, por ser mais ampla, é a adotada no presente trabalho. Ela corresponde a um conceito socialmente construído e a uma prática social que enfoca o aspecto político e cultural da formação do trabalhador, evitando-se assim a ênfase exagerada conferida ao grau de instrução ou ao tempo de treinamento.

integrantes de minorias étnicas, raciais; moradores de rua; dependentes exclusivamente de obras caritativas ou beneficentes; dependentes químicos; etc.

Além dessa subclasse que avança em todos os pólos, os crescentes bolsões de pobreza nas metrópoles são influenciados pela precarização das condições e das relações de trabalho. Essa “onipresença da miséria” denota a tendência de crescente degradação material de grande parte da população. Essa tendência dá pistas para se perceber sobretudo que a expansão financeira contribui para a concentração de riqueza e para a extraordinária concentração do poder nas mãos dos grandes capitalistas. Com efeito, há nas relações institucionais globais a presença predominante de uma classe capitalista que controla grandes corporações transnacionais detentoras de um descomunal poder econômico, conforme dados analisados por Santos. Quarenta e sete empresas multinacionais estão entre as cem maiores economias mundiais. Quinhentas empresas multinacionais controlam mais de dois terços do comércio mundial. “As duzentas maiores megacorporações mundiais empregavam, em 1997, menos de 1% (um por cento) da população mundial e tinham suas matrizes em oito países.” (SANTOS, 2002, p. 31).

Não é novidade que essa concentração de poder econômico contribui para a desigualdade social, haja vista o aumento acelerado do número de pobres e de miseráveis. Segundo o Banco Mundial, a população global em 1998 era de 5,9 bilhões, sendo que destes 2,8 bilhões são pobres, eis que vivem com menos de 2 dólares por dia, e 1,2 bilhão são miseráveis que sobrevivem com menos de 1 dólar/dia. Essa quantidade de pobres se contrasta com a crescente concentração de renda no mundo. Assim, por exemplo, em 1990 os 20% mais ricos concentravam uma renda média 60 vezes maior que a dos 20% mais pobres. Em 1999 essa distância aumentou para 74 vezes. Outro dado que demonstra que tal riqueza se concentra fortemente nos países centrais é o de que os 10% mais ricos dos EUA possuem uma renda equivalente aos 47% mais pobres do planeta (BANCO MUNDIAL, 2003).

No Brasil48, o nível de concentração de renda pode ser relativamente esclarecido pela crescente redução da massa salarial em detrimento do capital (lucros, juros e aluguéis), conforme os dados dispostos a seguir:

48 O cálculo da concentração de renda ganhou visibilidade por meio do referencial GINI, que varia de 0 a 1. Segundo dados da PNAD-IBGE de 2005, apesar de uma tímida redução da desigualdade nos

Tabela 1 – Brasil. Participação do Trabalho e do Capital no conjunto da renda produzida

no Brasil (1960-1988) – em percentagem (%) (1960-1988).

Ano Massa Salarial Capital

1960 60 40 1970 40,8 59,2 1975 38,4 61,6 1980 37,9 62,1 1988 38 62 Fonte: Brum, 2005.

A miséria apresenta-se nos países centrais, notadamente EUA, Japão e Comunidade Européia, deparando-se com novos e velhos preconceitos de raça, de sexo e de idade. A concorrência no mercado de trabalho suscita a competição entre nativos e imigrantes, interferindo na solidariedade do coletivo operário. O nacionalismo torna-se em parte a base de xenofobias culturais que alimentam as diversas formas de rejeição e preconceitos contra aqueles que representam uma ameaça aos postos de trabalho dos nativos.

Sob o capitalismo, o que o homem produz e as condições sob as quais ele produz repercutem nas condições materiais e, em conseqüência, sobre a reprodução do trabalhador. Isso se dá porque este – enquanto desprovido dos meios de produção - é obrigado a vender a sua força de trabalho, em proveito do capitalista, visando auferir os meios de subsistência. A crise desse modelo de reprodução das relações sociais evidencia as desigualdades e os crescentes irracionalismos, colocando em xeque a existência do modo de produção capitalista, conforme explicita Mandel (1985, p. 399):

[...] a crise das relações de produção capitalistas se apresenta como a crise de um sistema de relações entre os homens, dentro e entre as unidades de produção [empresas], que correspondem cada vez menos à base técnica do trabalho, quer em sua forma presente, quer em sua forma potencial. Podemos definir essa crise como uma crise não só das condições capitalistas de apropriação, valorização e acumulação, mas também da produção de mercadorias, da divisão capitalista do trabalho, da estrutura capitalista da empresa, do estado nacional burguês e da subordinação do trabalho ao capital como um todo. [...] enquanto todo capitalista individual gostaria de restringir o consumo de ‘seus’ trabalhadores, a classe capitalista como um todo deve ampliar o mercado de bens de consumo e, ao mesmo tempo, assegurar a valorização do capital.

últimos quatro anos, o Brasil ainda figura entre os países com a pior distribuição de renda ao apresentar o índice GINI de 0,559.

A crise mencionada por Mandel coincide com aquilo que Marx (1994) já anteviu como ínsito ao capitalismo, ou seja, a queda tendencial da taxa média de lucros, a produção de excedentes e o aprofundamento das desigualdades sociais. Ao demonstrar que as desigualdades sociais e o capitalismo são incrustações monolíticas de uma mesma dinâmica, Marx afirma a impossibilidade da acumulação sem a exploração, sem o exército de reserva e, enfim, sem os perdedores e os vencedores. O modo de produção capitalista é, portanto, inconciliável com sistemas sócio-políticos equilibrados. Ilustre-se que a crise da década de 1974/5, considerada como um marco simbólico da implosão deliberada do welfare state, evidenciou o custo social da expansão financeira capitalista. Nesse sentido vale relembrar as palavras de Karl Brunner (1976), economista liberal suíço e um dos consultores mais abalizados do capitalismo internacional, transcritas por Mandel (1990, p. 162): ‘Se se quer eliminar a inflação, há um preço a pagar, que é o do desemprego. O desemprego é, portanto, o custo social para se acabar com a inflação. E não venham me dizer que existe uma outra saída, pois não é verdade.”

O desemprego e a precarização do trabalho crescentes são dois fatores que atordoam a sociedade atual, mas – conforme já afirmado - são inerentes à dinâmica da produção capitalista. Essa dinâmica vem marcada pela flexibilidade, interna e externa, com destaque para a terceirização. Reportando-se a este tema, Castel afirma que a flexibilidade, articulada sob a perspicaz propaganda de que é necessária para maximizar a competitividade e as habilidades do trabalhador, resulta em transformar a empresa numa “máquina de vulnerabilizar” e de excluir (CASTEL, 2001). A assertiva do autor procede, posto que as qualificações49 não são suficientes para a integração no mercado de trabalho. Um número cada vez maior de jovens qualificados, em sentido restrito, é levado a aceitar empregos que exigem menor qualificação. Isso provoca, em contrapartida, um massivo desemprego entre os não qualificados. A história, como diria Marx (1978), repete-se como farsa, conforme ilustra Castel (2001, p. 522):

[...] Toda a história das relações de trabalho mostra que, ademais, não se poderia pedir aos empregadores para ‘fazer social’ [quando o fizeram, como no caso da filantropia patronal do século XIX, foi no sentido exato e limitado da defesa dos interesses da empresa, é claro]. [...] Afinal de contas, as

49 Aqui, mais uma vez, utiliza-se o termo qualificação, observando-se a distinção entre as acepções ampla e restrita (LEITE; POSTHUMA, 1995).

empresas mais competitivas são também, amiúde, as mais seletivas e portanto, sob certos aspectos, as mais excludentes, e [conferir na indústria automobilística] a publicação de ‘planos sociais’ acompanha freqüentemente, a dos balanços comerciais positivos. É uma maneira de dizer que uma política que tem por objetivo controlar os efeitos da degradação da condição salarial e de vencer o desemprego não poderia apoiar-se exclusivamente na dinâmica das empresas e nas virtudes do mercado.

Castel (2001, p. 523-526) enfatiza que “buscar a salvação por meio da empresa é enganar-se de registro. A empresa expressa a lógica do mercado e da economia.” Assim, torna-se catastrófico pensar-se em atribuir a resolução da questão social a partir de uma iniciativa espontânea das empresas na medida em que elas paradoxalmente concorrem para a configuração do mercado de trabalho instável. Dito com outras palavras: O mercado de trabalho, “primário” (trabalhadores típicos) e “secundário” (trabalhadores atípicos), e a massa de desempregados não são acidentais, são meios de pressão sobre os trabalhadores. Dessa forma, numa economia mundializada e marcada por crescente taxa de desemprego, os trabalhadores “rivalizam-se”. Apropriando-se dessa disputa, ao capitalismo interessa controlar crescentemente a força de trabalho, reproduzindo a reserva “precária” e, simultaneamente, produzindo a “desestabilização dos estáveis”.

Sob o capitalismo, as pessoas, em considerável número, postulam ainda uma relação de trabalho típica. Tal postulação, embora não signifique a inevitabilidade de uma subordinação do gênero humano ao capitalismo, reflete o modo como historicamente este passou a controlar a vida das pessoas pela mediação do trabalho. Se a existência do homem depende de um grande eixo, este só pode ser o trabalho, uma vez que não há além deste uma referência tão essencial e tão capaz de modelar as demais esferas da sociabilidade (família, religião, escola, etc). Tal afirmação quer significar que dificilmente se explicará o ser social e suas relações – por exemplo, com a escola ou a família - se não houver uma compreensão do trabalho como mediação.

Dependendo do estágio da crise sistêmica do capitalismo, o aprofundamento da contradição das formas de apropriação do capital sobre o trabalho pode suscitar – como contratendência - um “processo de desproletarização”. Essa circunstância da processualidade – inseparável da relação material – aponta para as conseqüências subjetivas. Tanto é assim que considerável parte da academia, a exemplo de Castel, prefere enfatizar a importância dos aspectos subjetivos ao apontar uma

“desvinculação” ou “quase-desvinculação” dos trabalhadores da sua qualidade de proletários. Essa diversidade de enfoques dá origem a várias denominações que tentam se “aproximar” daquilo que Marx (1994) chamou de lupemproletariado, de modo que são recentes as referências aos supranumerários (CASTEL, 2001), à subclasse (IANNI, 2001) e aos excluídos (DUPAS, 2001).

A questão dos supranumerários envolveria – no dizer de Castel – três pontos importantes: a desestabilização dos estáveis; o aumento da precarização; um déficit de status ou lugares sociais que provenham sentido às pessoas. O referido autor diferencia a política de inserção da política de integração. Para ele, a primeira proporcionaria apenas um continuum provisório, ou seja, o trabalhador precarizado seria uma espécie de “interino permanente”. De outro lado, a política de integração tenderia a proporcionar ao trabalhador um emprego de caráter pleno, capaz de garantir-lhe estabilidade. À míngua de estabilidade, os supranumerários, denominados por Castel como “inúteis para o mundo”50, seriam os homens que, ao não se sentirem mais identificados pelo trabalho, enxergariam como uma das “alternativas” a violência ou tenderiam à resignação. Em suma, seriam os “desfiliados”, os não integráveis, “pelo menos no sentido que Durkheim fala da integração como o pertencimento a uma sociedade que forma um todo de elementos interdependentes.” (CASTEL, 2001, p. 527 e 530).

Essa distinção entre as categorias analíticas integração (inserção profissional) e inserção (inserção estrita ou social) é válida em seu sentido restrito, ou seja, enquanto contribuição teórica para explicar o estágio atual do processo de degradação material a que estão submetidas as pessoas sob o capitalismo. Ela permite sobretudo a compreensão do reflexo da crise capitalista sobre dois sistemas institucionais relacionados ao trabalhador: a seguridade social e a assistência social. A primeira direcionada a todos indistintamente. A segunda voltada para aquela categoria de pessoas que não tem meio para prover a sua subsistência. Ambas caminham para o centro da crise à medida que o capitalismo protagoniza a sua relação com aqueles que Castel denomina de “não integráveis”.

50 O termo “inúteis para o mundo”, empregado por Castel, tem um sentido hiperbólico e, por isso mesmo, deve ser relativizado. Para Wallerstein, o capitalismo necessita que o ser social seja histórica e permanentemente “útil”. Sob o capitalismo, “nenhuma relação social permaneceu intrinsecamente isenta de uma possível inclusão.” (WALLERSTEIN, 2001, p. 15).

Os “programas de inserção” tornaram-se incapazes de garantir a “integração” porque estão relacionados às políticas provisoriamente contínuas, não apenas como um reflexo limitado da precarização e da informalidade, mas como conseqüência da desigualdade social, condição que incompatibiliza a solidariedade, enquanto estágio de explicitação do gênero humano, e o modo de produção capitalista.

Essa crise das relações sociais só corrobora a importância do trabalho para o ser social. Em Marx já se compreende que a “centralidade” do trabalho abstrato é a condição de subsistência do capitalismo, pois sem a mais-valia inexistirá a reprodução do capital. “Antes de tudo, o motivo que impele e o objetivo que determina o processo de produção capitalista é a maior expansão possível de mais- valia, portanto, a maior exploração possível da força de trabalho.” (MARX, 1994, p. 380). Não se pode, porém, deixar de reconhecer que – contraditoriamente - o capitalismo acelera o processo cíclico de suas crises sistêmicas, ao tempo em que debilita o seu poder de legitimação social. Isso aponta – sem qualquer pretensão profética - para a possibilidade de uma crise terminal que resultará na derrocada do referido modo de produção.