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A terra, a agricultura, os movimentos sociais e os assentamentos rurais: questões e

1. CAPITALISMO E ECONOMIA SOLIDÁRIA: desigualdades sociais e resistência de

1.1. A sociedade da informação e a sociedade da informação para todas/os: na contradição as

1.1.1 A terra, a agricultura, os movimentos sociais e os assentamentos rurais: questões e

É preciso apontar que a resistência apareceu seguindo as dinâmicas e condições históricas próprias de cada país e região. No contexto da América Latina, com destaque para o Brasil, tomemos a questão agrária e os modelos de agricultura como pano de fundo da atuação de movimentos sociais pela reforma agrária. O Brasil, juntamente com o Paraguai e a Venezuela, ocupa o primeiro lugar no ranking dos países que mais concentram terra no mundo (FERNANDES, 2006) e no qual a propriedade do capital não se separa da propriedade da terra(INCRA, 2005, p. 10). Isto acirra nossas desigualdades de acesso à terra, tornando-as maior do que as de acesso à renda23. Temos a reforma agrária definida desde a ditadura, no Estatuto da Terra (Lei 4.504, 30 novembro de 1964), como “um conjunto de medidas que visa promover a melhor distribuição de terras, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios da justiça social e ao aumento da produtividade”. (LEITE & ÁVILA, 2007, p. 15)

Porém, o marco ideológico e político em que a lei se consolidou, distorceu a idéia de reforma agrária. Assim, segundo Tavares24 (1996 apud LEITE & ÁVILA, 2007, p. 24) e Fernandes (2006), o que há no Brasil é instrumento de política de terras, que não foi

23 Esse dado refere-se ao índice Gini, que mede a desigualdade social existente na distribuição de bens sociais.

De acordo com o Gini, São Paulo ocupa a décima terceira posição na concentração de terras no Brasil, sendo que, dos 84% das terras com vocação agrícola, estima-se que ¼ seja formado por grandes latifúndios improdutivos.

24 TAVARES, M. C. A questão agrária e as relações de poder no país. Folha de São Paulo. São Paulo, p. 5,

43 ultrapassado na direção de uma reforma agrária, mesmo com os avanços tecnológicos e as transformações econômicas que tivemos. Ao contrário, este processo de mudança demarcou o estabelecimento da “revolução agrícola”, sob parâmetros de dependência e alto custo energético. De sementes (híbridas ou transgênicas) a insumos e tecnologias, temos uma agricultura condicionada às multinacionais do ramo, aos subsídios na forma de crédito cedido pelo governo, o que configurou um padrão petroleiro de agricultura (ALTIERI, 1997). Segundo Fiamingues & Whitaker (2002), trata-se de um modelo fundado na razão cartesiana, que pauta a lógica industrial e urbanocêntrica na agricultura, promovendo processos de degradação do ambiente natural e das relações humanas no campo, de modo que este deixa de ser rural. O Brasil é o segundo país que mais consome agrotóxicos no mundo, obtendo a contaminação de 81% dos alimentos que consumimos, dos quais 22% estão acima do permitido. (ANVISA, 2008)

Diante desse cenário agrário, aumentou a exploração e violência no campo, degradaram-se as condições de trabalho25 e ambientais, piorando a qualidade de vida das populações rurais (PALMEIRA & LEITE, 199826 apud LEITE & ÁVILA, 2007, p. 43). Sob tal perspectiva, Fernandes (2000) considera que não tivemos até hoje uma reforma agrária no Brasil. Os avanços que tivemos neste campo são fruto das lutas e enfrentamentos por parte dos movimentos sociais desse âmbito, cujo resultado mais evidente se materializa nos assentamentos rurais. Estes, são formados mediante estratégias de ocupação de terras improdutivas por agentes dos movimentos, que pressionam à desapropriação de tais áreas para fins da reforma. Os assentamentos rurais27, juntamente com a divisão dos estabelecimentos decorrentes do fracionamento por herança, segundo Moreira e Targino28 (1997 apud VELOSÔ & WHITAKER, 2006), promoveram inclusive, ainda que modestamente, um crescimento nas taxas de “migração de retorno”.

A posse da terra, conquistada à base de muita resistência, permite que as pessoas assentadas ganhem autonomia em relação ao meio de produção, podendo cultivá-la conforme

25 Dados divulgados pelo vídeo-documentário “Migrantes”, dirigido por Beto Novaes, Francisco Alves e

Cleisson Vidal, revelam a cruel realidade que se implantou com o commoditie da cana-de-açúcar e que levou a óbito, por exaustão, 22 trabalhadores rurais, vindo do Piauí e Maranhão para ganhar a vida no complexo sucro- alcooleiro da região de Ribeirão Preto-SP.

26 PALMEIRA, M., LEITE, S. Debates econômicos, processos sociais e lutas políticas. In: COSTA, L. F. ,

SANTOS, R. N. (orgs.) Política e Reforma Agrária. Rio de Janeiro: Ed. Mauad, 1998.

27 Temos, atualmente, no Estado de São Paulo 76 municípios que abrigam 209 projetos de assentamentos em

diferentes estágios de desenvolvimento. Neles vivem 12.457 famílias, perfazendo o total de mais de 43 mil pessoas, entre homens, mulheres, jovens e crianças. (Dados subtraídos do projeto pedagógico do “Curso especial de bacharelado em agronomia com ênfase em agroecologia e sistemas rurais sustentáveis”, da UFSCar)

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MOREIRA E. R. F.; TARGINO, I. Capítulos de geografia agrária da Paraíba. João Pessoa: Universitária/UFPB, 1997.

44 seus projetos. De acordo com Whitaker & Fiamingues (2002), os assentamentos, formados em áreas geralmente degradadas por monoculturas, tornam-se, pelas mãos de assentadas/os, espaço de cultivos de alimentos diversificados, o que corresponde à própria diversidade cultural dos assentamentos. Nesse sentido é que as autoras entendem que assentadas/os geram um aumento da complexidade dos sistemas ecológicos, transformam a paisagem, com seu trabalho criativo, em um verdadeiro mosaico. Cada lote, enquanto síntese materializada das histórias de vida, das preferências alimentares, das estratégias adotadas pelas/os agricultoras/es familiares assentadas/os, constitui uma peça deste mosaico. E, numa composição caleidoscópica infinita, cada peça desse mosaico é o locus da produção de outro conjunto complexo de mosaicos. Desse modo, por exemplo, os tanques de peixe, os galinheiros, os roçados e os pomares, que assentadas/os estruturam de modos diversos nos lotes, são considerados moisaicos portadores de outros mosaicos. Ou seja, são sistemas de vida que se articulam a partir de sub-sistemas, os quais, embora próprios, harmonizam com outros sistemas, dependendo e dando base à eles, num processo adensador da teia da vida e impulsionado pelo trabalho como cultura.

Assim, os assentamentos prestam grandes contribuições à segurança alimentar29, não apenas de suas famílias, mas dos consumidores de seus excedentes. É importante ressaltar que isso se realiza mesmo em face das carências de políticas de assistência técnica e de créditos adequadas (ÁVILA & LEITE, 2007, p. 133). Conforme estes autores, a agricultura familiar (incluídos os assentados e pequenos proprietários) é responsável por 60% do total dos alimentos que consumimos no Brasil. Diferentemente do que propagam as políticas e meios de comunicação, a produção de alimentos não é façanha no agronegócio que, ao contrário, colabora muito mais para a acumulação de capital e devastação ambiental do que para a alimentação do povo brasileiro. (VELOSÔ & WHITAKER, 2006)

A perspectiva da agroecologia contribui não apenas para ampliar as análises sobre a contribuição dos assentamentos ao nosso panorama sócio-cultural e ecológico, como também para reconhecermos que, embora as práticas agroecológicas estejam se difundindo nos assentamentos, ainda é preciso que estas sejam parâmetro para a redefinição dos Planos de

29 Segurança alimentar é um conceito muito caro em nosso tempo, o que podemos confirmar a partir dos cinco

eixos que configuram a sua existência: “1) o da saúde humana (relacionado à composição nutricional balanceada); 2) o da boa higiene dos alimentos (relacionado ao controle de qualidade na produção); 3) o respeito às dinâmicas do ecossistema natural ( busca evitar a contaminação de solos e mananciais); 4) o da autenticidade (relacionado a valorização dos alimentos tradicionais/regionais); 5) o da solidariedade (relacionado a opção por alimentos “socialmente corretos”)” (ALMEIDA et al. 2006 apud DUVAL, VALENCIO & FERRANTE, p.110). Tratada desse modo, a segurança alimentar vincula-se profundamente com o tema da agroecologia, sobre o qual discorreremos adiante.

45 Desenvolvimento Sustentável dos Assentamentos (PDA). Sem isso, o modelo de agricultura convencional, difundido ideologicamente, pode se instalar nesses contextos de reforma agrária. Daí, a extrema relevância de práticas educativas nos assentamento pautadas na agroecologia30.

Tendo em vista o exposto, é importante recuperarmos o conceito de agroecologia, o qual, para Caporal e Costabeber (2004), tem sido articulado com pouco rigor, em função de um reducionismo conceitual, tático e estratégico, de que se valem certos enfoques alternativos ao modelo convencional de agricultura. Os autores se propõem a sair do equívoco gnosiológico, afirmando que a agroecologia não é apenas um modelo de agricultura ou um conjunto de técnicas oposto ao pacote da “modernização conservadora”. Isso fica nítido ao termos em conta que a agroecologia nasceu em resposta aos problemas sócio-ambientais, gerados pelo modelo convencional de agricultura, especialmente após a II Guerra Mundial, e que os vários sistemas de agricultura alternativa não puderam superar.

Segundo esse propósito, a agroecologia configurou-se como “um novo enfoque científico, capaz de dar suporte a uma transição a estilos de agriculturas sustentáveis e, portanto, contribuir para o estabelecimento de processos de desenvolvimento rural sustentável.” (CAPORAL & COSTABEBER, 2004, p. 5). Com isso, a agroecologia pode ser entendida como uma perspectiva teórico-metodológica, a qual recorre a diversas disciplinas científicas para um estudo da atividade agrícola de mirada ecológica, econômica e cultural. Esta abordagem multidisciplinar é que viabiliza, como conceito central da agroecologia, a transição agroecológica, caracterizada enquanto “busca de uma maior racionalização econômico-produtiva, com base nas especificidades biofísicas de cada agroecossistema, mas também numa mudança nas atitudes e valores dos atores sociais em relação ao manejo e conservação dos recursos naturais”. (ibid., p. 8) Dessa maneira, é contrária à agricultura convencional, agroquímica e exploradora, ao mesmo tempo, que nega os modelos de agricultura alternativos, como, por exemplo, a orgânica. É importante que fique bem claro a diferença entre práticas agroecológicas e de agricultura orgânica, pois, embora nesta não haja

30 Reflexão presente no projeto pedagógico do “Curso especial de bacharelado em agronomia com ênfase em

agroecologia e sistemas rurais sustentáveis”. Como exemplo, temos a situação narrada e analisada por Durval, Valêncio e Ferrante (2008, p. 104-105), que revela o assédio do setor agroindustrial canavieiro sobre os assentamentos da região de Araraquara-SP, culminando no arrendamento do lotes de assentadas/os para o plantio de cana. Segundo a lógica em que se implantam tais arrendos, além de não se satisfazem as necessidades financeiras das/os assentadas/os, gera-lhes inclusive prejuízos. Houve casos em que assentadas/os precisaram, inclusive, recorrer à linhas de créditos da agricultura familiar para a manutenção da lavoura da usina, plantadas em um esquema de “parceria” em seus lotes. Apesar disso, devido ao formato do contrato estabelecido, se vêem obrigados a permanecer no esquema desigual.

46 o uso de técnicas, insumos e sementes convencionais, emprega-se a mesma lógica capitalista, com o uso de insumos hexógenos, a exploração do trabalho e a super valorização dos chamados alimentos “limpos”, restritos a um setor privilegiado da população.

De acordo com Singer (1998, p. 181), os assentamentos prestam contribuições enormes à economia solidária, ao lutarem pela posse e uso da terra e adotarem formas de organização autogestionárias, em busca de reprodução ampliada da vida31. Entendemos que a contribuição dos assentamentos aumenta na medida em que, gradativamente, incorporam uma leitura agroecológica e suas práticas decorrentes.

Tendo em vista a consideração de Singer, é necessário lembrar que, em especial o MST, durante o final dos anos 1980 e início dos 90, viveu uma onda de grandes cooperativas, cuja manutenção logo se mostrou inviável devido à organização hierarquizada da produção e dependente do mercado. A percepção dessas razões fez emergirem, no MST, outras iniciativas de cunho cooperativista democrático, conectadas a uma educação nesse mesmo sentido. (CALDART, 1997) Gohn (2005) acredita que este enfoque na educação decorre de um avanço qualitativo pelo qual têm passado os movimentos sociais solidários: apesar dos avanços democráticos de nossa sociedade, a exclusão é a marca da vida da grande maioria, de modo que a educação passa a ser concebida como a principal via para a inclusão social e o acesso aos direitos de cidadania. Confirma-se, então, a observação de Flecha (1998, p. 35), de que as energias e referências para o processo de transformação se encontram nas mesmas pessoas que vivem a exclusão, nas relações entre seus membros, nos seus sonhos e sentimentos.