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2. ABORDAGENS DA EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM DIALÓGICA: uma perspectiva

2.1. As bases teóricas da aprendizagem dialógica

2.1.2. Freire e a dialogicidade

Paulo Freire (1921-1997) é outro dos mais importantes filósofos e educadores do séc. XX, o qual também prestou imensuráveis contribuições à aprendizagem dialógica. Freire iniciou sua vida do Recife (Pernambuco/Brasil) e, ainda menino, brincando por entre as árvores com outras crianças de classes populares, experimentou o aprendizado de quem ocupa esse lugar no mundo. Sob o mormaço do nordeste, aproveitando de seus temperos, de sua cultura e formando-se em suas escolas, Freire iniciou uma caminhada de forte compromisso com a educação brasileira, tomando-a como via da humanização e da libertação de nosso povo. Devido a isso, foi obrigado ao exílio, durante nosso doloroso período de ditadura militar, o que tampouco o afastou de uma postura progressista de busca por coerência. Distanciado de seu contexto originário, Freire pôde ad-mirá-lo e, nutrido reflexivamente, aprofundou em outras práxis educativas, junto com “os deserdados da terra” e as/os intelectuais de suas novas moradas. Pelos lugares por onde passou, devido a seu exercício

95 humilde e profundamente dialógico, Freire ensinou e aprendeu a refazer-se no mundo, com as/os outras/os. Ao mesmo tempo, pôde criar parte importante de uma das mais relevantes teorias que temos hoje na educação, a teoria da dialogicidade, a qual seguiu aprofundando ao longo de sua vida.

Este feito deu-se por meio da obra “Pedagogia do Oprimido” (200555), na qual o autor, dialeticamente, por um lado, denuncia a base ideológica da educação bancária, feita de dominação e domesticação das consciências e dos corpos. Por outro lado, Freire anuncia o diálogo, como postura política e ética, estruturante da educação humanizadora, ao proporcionar a conscientização crítica, feita intersubjetivamente com as/os oprimidas/os. Ao tratar da educação dialógica, Freire entende o diálogo como capacidade ontológica humana, que pode ser assumida como práxis, diante de nossa condição humana de sujeitos inacabados, seres da escolha e da história. Neste horizonte, para Freire, se temos conduzido a história para uma realidade anti-dialógica, podemos fazer a opção por uma sociedade dialógica, buscando permanentemente ações coerentes com esta opção, ao lado das/os oprimidas/os.

Com todo esse acúmulo foi que Freire voltou ao Brasil, na década de 1980, podendo respaldar muitas outras iniciativas de educação libertárias, enriquecendo o nosso esforço de recuperação democrática. O testemunho que Freire deu, com sua vida e obra, nos ensinou a compatibilidade necessária entre a amorosidade, o compromisso social e a rigorosidade científica. Cheio de raiva justa com relação às atrocidades sociais, que condicionam e limitam a humanização de oprimidos (também de opressores), Freire colocou a exigência de uma mudança possível e difícil, que ainda não atingimos. Com essa tônica, Freire combateu o fatalismo imobilizador e, propagando idéias contagiantes, lutou por uma sociedade justa e democrática para todas/os, bem como por um mundo em que seja menos difícil amar. Dito isso, cabe irmos diretamente à dialogicidade em Freire a partir da “Pedagogia do Oprimido”, mas também de outras de suas obras.

Para Freire (2005), o diálogo compõe a natureza e a lógica da educação humanizadora, uma vez que é condição existencial humana. Nesse sentido, escreve Freire: “existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar” (2005, p. 90). Com isso, entrevemos que a matéria-prima do diálogo é palavra verdadeira, aquela portadora, simultaneamente, da ação e da reflexão. Se solapada alguma dessas dimensões, a palavra é ativismo ou verbalismo, não permite, assim, a humanização, pois é alienada e

96 alienante. Para que seja palavra verdadeira, esta deve promover a práxis, que é o trabalho e a transformação do mundo, deve permitir a denúncia das estruturas que oprimem as formas de superá-las, dando corpo à utopia. (ibid., p. 84)

Conforme Freire, o diálogo como ontologia humana e o compromisso histórico com a humanização nos dão elementos para pensar que a palavra é ainda um direito de todas/os. “Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais. (ibid., p. 91) Dialogar implica o falar com e nunca para ou sobre alguém, envolve a postura da escuta da/o outra/o e de si mesmo e a emissão respeitosa. Além disso, dialogar requer o engajamento para a superação dos problemas segundo caminhos escolhidos conjuntamente. Assim, o diálogo não se constrói no isolamento, nunca nasce da relação eu-tu; mas, sim, emerge do encontro entre seres humanos, da relação intersubjetiva eu-nós, que permite efetivamente que todas/os possam vivenciar o projeto infinito do humano, que todas/os possam buscar o Ser Mais, em comunhão. Esta perspectiva se fundamenta na compreensão de que ninguém educa ninguém, mas cada um educa a si mesmo, em todos os espaços da vida e a partir das mais diferentes relações com as/os outras/os, intersubjetivamente.

A postura crítica de Freire o impele a analisar que nossa condição de seres inconclusos, ao mesmo tempo em que nos permite escolher pelo diálogo, também nos projeta como opção o antidiálogo. Ao assumir esta última, opressores tornam a desumanização não apenas uma possibilidade, mas uma realidade histórica. (ibid., p. 32) Esta, elucida Freire, funciona a partir da contradição opressores-oprimidos, na qual opressores monopolizam a palavra, as riquezas, os bens culturais e os meios educativos. Segundo a lógica capitalista, os opressores entendem que o Ter Mais (como classe que tem posses), assumido como direito irrevogável, conduz ao Ser Mais. Porém, na “busca egoísta de ter, como classe que tem, se afogam na posse e já não são. Já não podem ser”. (idid., p 51). Isso porque, adverte Freire:

ninguém pode ser autenticamente proibindo que os outros sejam. Esta é uma exigência radical. O Ser Mais que se busque no individualismo conduz ao ter mais egoísta, forma de ser menos. De desumanização. Não que não seja fundamental – repitamos – ter para ser. Precisamente porque é, não pode o ter de alguns converter-se na obstaculização ao ter dos demais, robustecendo o poder dos primeiros, com o qual esmagam os segundos na sua escassez de poder. (ibid., p. 86)

97 compreensão de que o Ter Mais de poucos aciona mecanismos de exclusão dos oprimidos, obrigando a viverem a miséria, a fome, o racismo, o desemprego etc. Trata-se de mecanismos acentuados por um conjunto de idéias manipuladoras, que visa tornar naturais as desigualdades. Idéias estas que são incorporadas pelos oprimidos, por meio dos mais amplos processos educativos, promovendo que desacreditem em suas capacidades de aprender, de criar, de mudar o estado das coisas. Destes mecanismos de exclusão também fazem parte a perda da memória histórica da lutas das/os trabalhadoras/es contra a opressão, a desvalorização da experiência que já têm os oprimidos (saber de experiência feito) (ibid., p. 56) e há também a burocratização das instituições públicas como obstáculo para que acessem os direitos. Tudo isso requer dos oprimidos um grande esforço para continuar sobrevivendo; são lutas diárias por alimentação, moradia, saúde, as quais, na medida em que são falidas, geram um cansaço existencial, a sensação de que não há nenhuma possibilidade de melhorar a vida. Diante de tudo isso, oprimidos acabam por incorporar a ideologia da classe dominante, que diz que as classes populares não foram espoliadas, mas que são apenas uma classe de pobres incapazes. (FREIRE, 1986, p. 15) Este processo, para Freire, caracteriza que a sombra do opressor passou a habitar os oprimidos, o que os imobiliza e os faz reproduzirem também entre si relações de opressão. (ibid, p.36) Isso é que torna possível, por exemplo, a existência de lideranças comunitárias autoritárias, por exemplo.

Conforme Freire, esse processo pedagógico da dominação, coincidente com interesses necrófilos (matam a vida), se dá por diferentes meios e contextos de invasão cultural, manipulação e esmagamento das/os oprimidas/os. São a estes interesses e formas pedagógicas adestradoras que se contrapõe a pedagogia do oprimido, portadora de interesses biófilos (geram vida). A pedagogia do oprimido deve elucidar, pelo diálogo com oprimidos, sua condição de opressão e, ao mesmo tempo, instrumentalizá-los para lutar por sua libertação, o que passa pela aprendizagem, com rigorosidade metódica, do conhecimento instrumental já produzido e pela criação de novos instrumentos.

Isso indica que a pedagogia do oprimido propõe superar a tônica de reprodução do conhecimento, pela aprendizagem e criação do conhecimento. Também busca superar a reprodução da hierarquia professor-estudante: se, nesta, o educando é reduzido a quase-coisa, visto como absoluto ignorante, ao passo que quem ensina é considerada/o a/o única/o que sabe, sendo o sujeito, na relação educativa pautada pela pedagogia do oprimido, entende que ninguém é sábio ou ignorante absoluto, todas/os têm o que ensinar e o que aprender. Esta

98 condição de inconclusão é central para o processo educativo, que, dado em diálogo problematizador, desvela a realidade e proporciona a mudança de pensamento e de ação. Apenas esta relação crítica e comunicativa com o conhecimento e com as/os educandos permite que possam assumir-se como sujeitos no mundo e com as/os outras/os.

O que queremos elucidar com o dito até aqui é que, se oprimidos, não estão determinados por um sistema social que engendra e se mantém diante de desigualdades sociais e relações de opressão. Sim que este sistema condiciona oprimidos, mas estes também podem recuperar sua condição de sujeitos com os outros, intersubjetivamente, produzindo a emancipação da relação de opressão e mudanças sociais coerentes. Para Freire, as privações de ordem objetiva, os obstáculos sociais e os entraves subjetivos, que a ganância e a arrogância estruturantes da opressão impõem sobre as/os oprimidas/os, não subsumem sua capacidade de comunicação e de ação no mundo56, embora a limite. Nesse sentido, Freire esclarece que animais são seres determinados, mas as mulheres e os homens não, são inacabadas/os. Por isso, podem se refazer enquanto humanos durante toda a vida, na relação com os outros, mediante a comunicação, o pensamento e o trabalho. Dessa maneira é que os animais vivem no suporte, adaptando-se a ele, enquanto seres humanos transformam o “suporte em mundo e a vida em existência”. Isso ocorre na proporção em que o corpo humano vai virando corpo consciente – captador, apreendedor, transformador –, por meio das interações sociais. Se na pedagogia opressora o corpo é um “espaço” vazio a ser adestrado e preenchido por conteúdos (ibid., p. 51), na pedagogia do oprimido é a base para o “quefazer” humano.

Devemos ressaltar aqui, à luz de Freire, que, se em situação concreta de opressão há o impedimento da busca pelo Ser Mais, o Ser nunca deixa de existir. Daí que seja uma exigência, na pedagogia freireana, que o educador parteje o processo educativo com os oprimidos desde o início, com eles reconheça que a realidade é fruto da ação dos homens, e junto deles possa criar condições concretas para a transformação histórica. (ibid., p. 41) Esta transformação, reforcemos, depende de um processo de libertação que apenas pode partir do oprimido, pois, confortáveis na situação histórica em que se encontra, como classe, os

56 Boff (2007) nos fala de uma maneira muito bela desse processo humano, ao comentar que a leitura bíblica

pode gerar emancipação na perspectiva da teologia da libertação. Diz-nos que os homens e as mulheres são seres da transgressão; desde que decidem experimentar a maçã, a fruta proibida, se humanizam e se aventuram como humanos. Ninguém pode controlar o outro, mesmo mantendo encarcerado, porque o pensamento não se pode encarcerar. A imanência nos condiciona e não nos determina, porque somos seres da transcendência também e ao mesmo tempo. Projetamos, sonhamos, pensamos, dialogamos o passado, o presente e o futuro como forma de sermos transcendentes e de nos indignarmos e mudarmos as situações concretas, que limitam mas não findam essa nossa capacidade de transcendência.

99 opressores não se incomodam com a situação opressora, aliás, sentem-se beneficiados com ela. Porém, escreve Freire,

o opressor, retirando o direito de ser, não pode ser. Assim, na medida em que o oprimido, lutando por ser, lhes impede de impedir que outros sejam, lhes restaura a humanidade perdida, paradoxalmente, por isso é que somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os opressores. Estes, enquanto classe que oprime, nem libertam nem se libertam. (ibid., p. 48)

A partir disso, Freire enfatiza que “a conquista implícita no diálogo é a do mundo pelos sujeitos dialógicos”, não se tratando, pois, da inversão das relações de opressão, de poder, que passe acima os oprimidos. A pedagogia do oprimido busca que este recupere seu direito à palavra, com os outros, porque assim se promove um avanço dialógico universal, que é a libertação para todas/os por meio da “conquista do mundo” (ibid, p. 91).

Frente a tais reflexões, podemos compreender que as exigências da pedagogia do oprimido, postas a todas as pessoas comprometidas com a libertação dos homens e das mulheres, coincidem com as condições mesmas do diálogo, quais sejam:

Amor: pelo mundo e pelas mulheres e homens, dado como compromisso com a humanização e contrário à opressão. Exige ultrapassar o medo e aprender o exercício da coragem, com as/os outras/os (FREIRE, 2005, p. 92);

Humildade: que nos permite ver que ninguém sabe tudo e, ao mesmo tempo, que todos sabemos muitas coisas. Ser humilde significa incorporar esta compreensão e, por meio disso, abrir-se a aprender que, em comunhão com as/os outras, podemos mudar o mundo e Ser Mais. A humildade exige a superação da arrogância, que funda o sentimento de superioridade, de auto-suficiência e da crença de que “só um grupo seleto pode mudar o mundo”; (ibid., p.93) Fé: a fé exigida pelo diálogo não é, assim, ingênua, não é aquela fé na crença de que forças superiores operarão na transformação do mundo. O diálogo reclama a fé crítica, que é aquela que sabe que, se as/os oprimidas/os estão alienadas/os mediante a situação concreta, têm o seu poder de fazer e refazer prejudicados. Portanto, é preciso com elas/es criar condições para que possam recuperar sua capacidade de humanização “na e pela luta por sua libertação”; (ibid, p. 94)

Confiança: se inviabiliza quando as palavras não coincidem com os atos. Assim, a confiança nasce da relação em que as/os envolvidas/os dão o testemunho incessante da busca pela coerência entre o que dizem e o que fazem. (ibid., p. 94) Dessa maneira, a confiança não se dá a priori do diálogo, mas se instaura com ele, sendo sua conseqüência óbvia;

100 − Esperança: deriva de sabermos que somos imperfeitas/os, por isso seres da busca, e que não estamos sozinhos no mundo, nos refazendo com as/os outras/os. No imobilismo e no isolamento não existe a esperança. A esperança nasce da comunicação (ibid, p.95), pela qual as injustiças são percebidas e catalizam a ações esperançosas conjuntas. Assim, escreve Freire: “me movo na esperança enquanto luto, se luto com esperança espero”. (ibid., p. 95) Devemos salientar que a esperança que menciona Freire não é a apassivadora, mas, ao contrário, a mobilizador;

Pensar crítico: que assume a inquebrantável unidade mundo-homes/mulheres, entendendo que os seres humanos, ao mesmo tempo em que formam o mundo, se formam nele e com ele. Assim, o pensar crítico banha-se da temporalidade histórica e por ela modifica o espaço, superando o pensar ingênuo, o qual, destituído da historicidade, vê que a tarefa dos homens é se acomodar ao presente normatizado.

Tomar o diálogo, à maneira de Freire, como elemento estruturante da práxis educativa não significa que seja esta a essência de toda educação e nem que, em sendo dialógica, a prática educativa esteja ilesa dos supostos e das manifestações do antidiálogo. Nesse sentido, Freire escreve: “dialética e contraditória não poderia ser a educação só uma ou só outra dessas coisas. Nem apenas reprodutora nem apenas desmascaradora da ideologia dominante”. (FREIRE, 1996, p.98) Diante desta reflexão, além de elucidar que a educação possui politicidade e que pode ser ou não ética, Freire salienta a importância da busca por coerência na feitura da educação dialógica. Seria especificamente uma busca incessante pela possibilidade do Ser Mais, já que o contexto hegemônico, capitalista, sempre nos impulsiona a práticas educativas de dominação, que distorcem aquela possibilidade. (ibid., p. 32)

Em acordo com tal busca, Freire assinala que a educação dialógica torna-se dimensão da cultura (FREIRE, 1990, p. 33) e, enquanto tal, não pode ser prescritiva ou hierarquizada. A/o educadora/or deve ser também educanda/o e vice-versa, pois o aprender e o ensinar não existem ilhados; “foi aprendendo socialmente que mulheres e homens descobriram que era possível ensinar”. Por isso, Freire considera inválido o ensino que não se desdobre num aprendizado para quem ensina e que inviabilize a quem aprende recriar e refazer o aprendido. “Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito.” (id., p. 24)

Nessa relação igualitária é que conjuntamente se define o que aprender e como ensinar, num diálogo em que a/o educadora/or não perde o seu papel de orientação do espaço educativo. Pelo contrário, a partir do conhecimento pedagógico, a/o educadora/or precisa ser

101 autoridade, dominando os conteúdos em foco, e precisa construir liberdades, ensinando conhecimentos que sejam instrumentos de reflexão e ação no mundo. A/o professor não pode, na perspectiva dialógica, nem ser autoritário e nem licencioso, devendo comprometer-se politicamente, nos conteúdos e métodos, com a libertação de todas/os. (FREIRE, 1996, p. 92- 96)

Ao contrário das críticas infundadas que recebe a perspectiva dialágica, de Freire, esta não é uma visão romântica da educação: traz, sim, a busca pela amorosidade, mas atrelada ao sentido político que o verdadeiro amor requer, que é o sentido da emancipação, da liberdade. Por isso, vem atrelada a preocupação com o ensino rigoroso de conteúdo, com a organização coerente do espaço e do tempo educativo, ou seja, considerando a inteireza física e psíquica, cultural e social de suas/eus participantes. É importante detalhar as reflexões freireanas acerca do ensino rigoroso, para que o conceito de dialogicidade fique mais nítido.

Quando Freire aborda o ensino, argumenta que deve partir da problematização da experiência histórica das/os educandas/os, o que significa o acercamento crítico da sua realidade, em termos de passado e presente e de futuro como problema. Esse acercamento é possível quando educador e educandos partilham, intersubjetivamente, uma realidade cultural, econômica, social dos agentes educativos. Na perspectiva dialógica, não é retirando as/os educandas/os de seus contextos e não é afogando seus sonhos e desmerecendo suas relações que a educação libertadora se dá. Ao contrário, ela acontece quando a/o educadora/or penetra, com as/os educandas/os, na realidade destas/es e, num movimento de emersão, distanciando deste contexto para analisá-lo, instrumentaliza as/os educandas/os para voltar a sua realidade e transformá-la de modo justo e democrático. Conceitualmente, Freire (1979) define este movimento como o de ad-mirar: ir da parte ao todo, para compreendê-lo criticamente e para voltar às partes e transformá-las segundo aquela compreensão. A transformação do ato de ad-mirar sempre vai ao encontro da concretização dos sonhos, das possibilidades se Ser Mais, sendo, portanto, transformações éticas. Nesse sentido, escreve Freire: “educar é substantivamente formar” e formar demanda profundidade nas reflexões, na compreensão e interpretação dos fatos, de modo a facilitar que educadas/os empreendam ações e que superem as dificuldades enfrentadas cotidianamente. (FREIRE, 1996, p. 33)

A formação a que se refere Freire é aquela em que a ética, técnica e ciência tornam-se inseparáveis, pois são pilares do ato de conhecer gnosiológico (conhecimento verdadeiro), que, por sua vez, pauta o horizonte utópico de uma sociedade plenamente humanizada. Dessa forma, a criação da situação gnosiológica afirma-se como um eixo da educação dialógica. O

102 clima dialógico proporciona a passagem da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica (recorre à estética) em relação ao objeto do conhecimento, sem a qual não pode haver uma reflexão em termos de teoria sobre a prática. Tal passagem depende de uma mudança qualitativa quanto à rigorosidade metódica que se usa para conhecer, o que envolve ainda a distância epistemológica do objeto do conhecimento. (FREIRE, 2003, p. 74) Sem a curiosidade que nos torna seres da pergunta, da necessidade de conhecer para explicar “não haveria atividade gnosiológica, expressão concreta da nossa possibilidade de conhecer”. Contudo, no processo educativo como prática da liberdade, é preciso superar a curiosidade “desarmada”, que, de tão acoplada ao objeto mesmo do conhecimento, não pode compreendê- lo criticamente em sua função, relações e potencialidades de mudança do real. A compreensão